A vó me disse hoje que morreria no fim desta semana.
“Eu sinto nos ossos” – ela piscou, como se estivesse sentindo naquele exato momento, e disse.
Eu respondi que esperaria até a segunda-feira e, talvez, quem sabe, lhe daria razão. A avó é a única pessoa com quem falo na casa. Nas poucas ocasiões em estou aqui, me dirijo aos outros com solenes “com licença” e “você poderia, por favor, me passar o sal” para deixar bem claro o quanto os odeio.
Nas três vezes em que fui ao analista, foi isso o que ela disse. “Que a causa de tudo seria descoberta se fizéssemos uma investigação do meu histórico familiar”. Ela falou assim mesmo: “fizéssemos”, do plural, de nós – e “investigação”. Não estou mentindo.
Gostei do termo, da objetividade do termo. Da clareza: simples assim, saber me libertaria.
Paredes coloridas, sofazinho para espera, uma jarro de plantas de plástico que nunca pedem água. Revistas infantis – parece que ela também atendia crianças.
Revolvi a possibilidade de cura numa careta.
Tudo o que eu queria era um rosto psicanalizado assim, que nem o rosto da analista, os músculos impedidos de grandes movimentos, reluzindo, vez ou outra, muito sutilmente, aquela malícia de estar sempre interpretando seus pacientes em termos sexuais. E sem maiores pudores – eu, da minha parte, não gostaria de morar dentro da cabeça de um psicanalista.
Não voltei ao bem decorado consultório.
De qualquer forma, à guisa de negativa, contei para ela que, nos movimentos mais intelectualizados da esquerda francesa, entre os anos 60 e 80, havia, por parte das mulheres, uma deliberada apreciação do sexo com as classes trabalhadoras. Elas buscavam entre os estranhos, nas construções, nas praias desertas, particularmente os pedreiros, jardineiros, encanadores e toda a sorte de deliciosos proletários, com o cheiro específico do suor da tarde. Não raro, organizavam gang bangs.
Aqui, nós nunca tivemos isso. A esquerda se dividia entre discretos apelos neo-cristãos, apesar do discurso sobre as implicações da revolução, e uma sensibilidade estética francamente burguesa. Havia uma aura ‘guerrilheira’ e romântica, restrita aos espaços clássicos de luta, enquanto os europeus levavam uma proposta muito mais radical ao cotidiano, à sexualidade, às roupas, à comida. Pode-se dizer que indiferença religiosa moldou a esquerda francesa.
Aqui, nós sucumbimos a um nocivo catolicismo dos trópicos.
Eu queria impressioná-la.
Decidido, voltei à rua.
Debaixo dos viadutos, lá onde as garotas ficam no frio, enquanto os travestis se protegem da chuva embaixo dos pontos de ônibus – tudo bem exposto para que não se tenha dúvida do que é um travesti. Pensei em fazer um fogo dentro da tina de ferra, mas poderia afastar os clientes.
Sem hesitação, falei para o cara: “Trinta”.
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