26.9.10

Descoberta

Estamos vendo a imagem da cidade.


Ela é captada pelo olhar de um pássaro notívago a sobrevoar bem alto no céu. A cidade, em perspectiva, é um ser vivo gigante; um aglomerado de vidas que se entrelaçam. Inúmeros vasos sangüíneos estendem-se às mais recônditas extremidades do corpo, circulando o sangue e substituindo células, ininterruptamente. Através deles, novas informações são transmitidas e as antigas, recolhidas; novos desejos de consumo são transmitidos e os antigos, recolhidos; novas contradições são transmitidas e as antigas, recolhidas. Esse corpo, ritmado pela pulsação, emite por toda a parte pequenos lampejos de luz, produz calor e se move discretamente. A meia-noite se aproxima e, apesar de o horário de pico já ter passado, o metabolismo basal – para a manutenção da vida – continua, sem sinais de desaceleração. O gemido da cidade soa como uma melodia em baixo contínuo. O gemido monótono e constante que incuba a percepção do porvir.

“Após o anoitecer",

Haruki Murakami.


Da mediocridade

O fato de um drama ser absolutamente medíocre não diminui sua intensidade para o sofredor, que o sente como uma disputa de forças extraterrenas, entre o mal e o bem, representado, obviamente, por ele mesmo.


Os dramas medíocres se multiplicam, infindáveis, férteis, estão a nossa volta, a cada vitrine que olhamos: a gravidez indesejada, a falta de dinheiro, a birra do filho único, o autoritarismo do chefe ou a insubordinação dos subordinados, o sobrepeso, a dieta que não funciona, as manchas da pele, as manchas nos dentes, o pneu furado, as contas atrasadas, as doencinhas (gastrite, rinite, enxaqueca, TPM), o ônibus lotado, a inveja dos amigos, a discussão ao meio dia, a vontade de morrer, o preço da passagem de avião, o preço do hotel três estrelas, o preço do dentista, o preço da escola, o xingamento do marido ou a histeria da esposa… E não faltam também as soluções medíocres: o porre do final de semana, o cheque especial, o anti-depressivo, o xingamento no trânsito, o site pornô, o financiamento de vinte anos, o coito interrompido, a mensagem anônima, as tardes no shopping, a novela das oito, o blog pessoal, o suborno dos filhos, a infidelidade ocasional, a lipoaspiração, o voto da Veja, um empreguinho, o meio tom da fofoca, a visita dominical aos pais…


E que não se ouse atacar os medíocres porque nós formamos uma massa representativa, apesar de silenciosa, e que se ergue na defesa do direito dos seus à mediocridade. E, se um de nós faz uma crítica a outro de nossos filiados, que fique claro que seu único intuito é uma saudável e impessoal eliminação da concorrência.


Mas meu objetivo é transformar os dramas medíocres em pequenos insetos: incômodos, mas não letais.


O grande inseto sou eu.