24.4.08

cat power - the greatest

compondo uma crítica a uma psicanálise normativa e autoritária

Ando matutando aqui, há certo tempo, alguns incômodos em relação à psicanálise, ou melhor, a alguns discursos que se apresentam e se nomeiam como psicanalíticos e, de certa forma, são aceitos assim. Escuto isso aqui e ali, de fontes diferentes, transfigurando a psicanálise como uma prática e um discurso normativo e autoritário e senti nesta entrevista do Melman o impulso para uma sistematização destas questões que nem sei se estão maduras o suficiente para serem expostas, mas, enfim, coloco aqui para vocês, como o início de um diálogo.

Primeiro, por que normativa e por que autoritária? Normativa porque se coloca num papel de ignorar as mudanças históricas, julgando-as como boas ou más não em relação ao sujeito histórico, mas em relação apenas aos valores psicanalíticos; autoritária porque parece atraída a posições de saber-poder inquestionáveis – nem mesmo o paciente/cliente/analisando pode questioná-las.

Li a entrevista do Melman e sua colocação, alarmista, de que a “instituição familiar” está desaparecendo. Bom, a “instituição familiar” está sendo ameaçada desde sempre – pelo menos, este é um discurso já antigo e, na maioria das vezes, utilizado com vistas à repressão e ao controle (“a pílula ameaça a instituição familiar”, “a liberdade sexual ameaça a instituição familiar”, “o casal homossexual que quer adotar uma criança e, logo, fazer uma família, ameaça a instituição familiar”). Me pergunto se a “instituição familiar” não deve mesmo ser ameaçada: afinal, o que ganhamos todo este tempo com instituições familiares não-ameaçadas? Se a esta é a primeira vez na história que a instituição familiar está sendo ameaçada, posso colocar na conta da instituição familiar não-ameaçada o século XX (com duas guerras mundiais, Vietnã e Auschwitz)?
Isto se a institução familiar estiver sendo, de fato, ameaçada, o que eu duvido muito. Talvez não se devesse perguntar porquê a sociologia e a antropologia não estão interessadas neste “fenômeno”, mas porquê a psicanálise ciclicamente produz discursos cheios de pânico e alarme sobre a possível desaparição da família. Talvez eu possa adiantar alguma coisa simples: acho que antropologia e sociologia não estão interessadas no “dissolução do grupo familiar” porque desde Levy-Strauss, que bebeu nas obras freudianas, estas disciplinas perebem: o parentesco é uma estrutura essencial dos grupos humanos, do qual a família, conforme a entendemos no ocidente, é apenas uma conformação possível. Não é a “instituição familiar” que está desaparecendo, é a família que está tomando outras formas, são os espaços de socialização que estão se deslocando. Não entendo por que isto deve ser uma coisa negativa. Nem Édipo nem a Lei dependem de um pai carnal – basta ver a força da Lei (em termos psicanalíticos) em meios completamente sem lei (jurídica), como o tráfico ou as prisões (a força da Lei, mesmo que numa ética brutal; a força da Lei protegendo exatamente esta família que se diz em vias de extinção).

Parece haver aqui uma equivalência entre “instituição familiar” – seja lá o que Melman entende por isso – e Édipo, entre a “instituição familiar” e a Lei. Freud fez uma teoria sobre a estruturação psíquica, com marcos na história individual do sujeito. Acho que estes marcos podem mudar – especialmente porque já estão mudando há décadas – mas a estrutura psíquica se mantém. Melman dá a impressão de que, se ele pudesse parar a roda da história, o faria, dizendo que o faz pelo bem da humanidade – e não a partir de um lugar de poder que a psicanálise se dá.

Acho que nosso futuro é sombrio, mas não por conta de mudanças na instituição familiar (já que não acredito que esta esteja desaparecendo). Se há uma ameaça a ela, deveríamos nos perguntar de onde vem esta ameaça, o que a sustenta, se não é uma ameaça devida, se não pode advir disso uma reconfiguração mais positiva, menos repressiva de forças. E, antes de tudo, como pessoas que refletem através dos moldes da psicanálise, nos perguntar por que nos apegamos tanto a esta “instituição familiar” da forma como a conhecemos.

Isto é o que defino como normativo: se determina o certo e o errado para o outro, numa postura de pitonisa moral, profetizando futuros pessimistas à humanidade, em previsões que se não tem como avalizar. Como aquela psicanálise que repete ad infinitum: “os pacientes de hoje em dia não conseguem simbolizar”, sem perceber que, se isso acontece, é porque algo está acontecendo fora dos limites do consultório e é preciso escutá-lo.

De outro lado, há este autoritarismo implícito na condescendência com que Melman diz: “para os outros (não psicanalistas), eu só posso desejar boa sorte”. Para um saber que se vê como o legítimo, há uma estranha preocupação da psicanálise em desqualificar todos os outros saberes, quase que um ‘esporte psicanalítico’ (a crítica ao behaviorismo, aos medicamentos psicofarmacológicos, às psicoterapias breves, nesta ordem). Afinal, que autonomia é esta que a psicanálise oferece ao sujeito? Ele é autônomo, desde que tenha escolhido a psicanálise? Não é uma decisão legítima do sujeito, pautada pelo seu sofrimento psíquico e pela ação da transferência, se ele busca este ou aquele psicanalista, uma análise freudiana ou lacaniaca, a gestalt-terapia ou o behaviorismo? Cabe a psicanálise determinar ao sujeito o que ele deve fazer e não apenas oferecer uma outra opção, uma possibilidade diferente, lembrando que a responsabilidade da escolha é dele? Que retirar esta responsabilidade é infantilizá-lo?

Enfim, são questões que estão me incomodando, questões que não são críticas individuais (nem conheço o trabalho do Melman e questiono sempre, sempre, sempre a boa fé da Veja), mas críticas que atravessam práticas e discursos disseminados por vários que se autorizam pela psicanálise em suas falas e seus gestos.

Abraço,

J.

Link para entrevista de Charles Melman à Revista Veja: http://pontolacaniano.wordpress.com/2008/04/19/melman-proxima-edicao-de-veja/

20.4.08

A turba do pega-e-lincha
CONTARDO CALLIGARIS, na Folha

NA ÚLTIMA sexta-feira, passei duas horas em frente à televisão. Não adiantava zapear: quase todos os canais estavam, ao vivo, diante da delegacia do Carandiru, enquanto o pai da pequena Isabella estava sendo interrogado.

O pano de fundo era uma turba de 200 ou 300 pessoas. Permaneceriam lá, noite adentro, na esperança de jogar uma pedra nos indiciados ou de gritar "assassinos" quando eles aparecessem, pedindo "justiça" e linchamento.

Mais cedo, outros sitiaram a moradia do avô de Isabella, onde estavam o pai e a madrasta da menina.

Manifestavam sua raiva a gritos e chutes, a ponto de ser necessário garantir a segurança da casa. Vindos do bairro ou de longe (horas de estrada, para alguns), interrompendo o trabalho ou o descanso, deixando a família, os amigos ou, talvez, a solidão -quem eram? Por que estavam ali? A qual necessidade interna obedeciam sua presença e a truculência de suas vozes?

Os repórteres de televisão sabem que os membros dessas estranhas turbas respondem à câmera de televisão como se fossem atores. Quando nenhum canal está transmitindo, ficam tranqüilos, descansam a voz, o corpo e a alma. Na hora em que, numa câmera, acende-se a luz da gravação, eles pegam fogo.

Há os que querem ser vistos por parentes e amigos do bar, e fazem sinais ou erguem cartazes. Mas, em sua maioria, os membros da turba se animam na hora do "ao vivo" como se fossem "extras", pagos por uma produção de cinema. Qual é o script?

Eles realizam uma cena da qual eles supõem que seja o que nós, em casa, estamos querendo ver. Parecem se sentir investidos na função de carpideiras oficiais: quando a gente olha, eles devem dar evasão às emoções (raiva, desespero, ódio) que nós, mais comedidos, nas salas e nos botecos do país, reprimiríamos comportadamente.

Pelo que sinto e pelo que ouço ao redor de mim, eles estão errados. O espetáculo que eles nos oferecem inspira um horror que rivaliza com o que é produzido pela morte de Isabella.

Resta que eles supõem nossa cumplicidade, contam com ela. Gritam seu ódio na nossa frente para que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo que eles representariam: "nós", que não matamos Isabella; "nós", que amamos e respeitamos as crianças -em suma: "nós", que somos diferentes dos assassinos; "nós", que, portanto, vamos linchar os "culpados".

Em parte, a irritação que sinto ao contemplar a turma do "pega e lincha" tem a ver com isto: eles se agitam para me levar na dança com eles, e eu não quero ir.

As turbas servem sempre para a mesma coisa. Os americanos de pequena classe média que, no Sul dos Estados Unidos, no século 19 e no começo do século 20, saíam para linchar negros procuravam só uma certeza: a de eles mesmos não serem negros, ou seja, a certeza de sua diferença social. O mesmo vale para os alemães que saíram para saquear os comércios dos judeus na Noite de Cristal, ou para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora, cada vez que desse: queriam sobretudo afirmar sua diferença.

Regra sem exceções conhecidas: a vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles. Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.

Nos primeiros cinco dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi. Sem contar as crianças que morreram de dengue. Se não bastar, leia a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo passado.

A turba do "pega e lincha" representa, sim, alguma coisa que está em todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de estatutos e leis, as crianças podem ser e continuam sendo vítimas dos adultos.

10.4.08

"A vida como experiência dela mesma"

"Eu estava na esquina da avenida Bel-Air com a praça de la Nation. Estava sozinho, via aproximar-se a maré dos manifestantes, debaixo dos cartazes, de bandeiras vermelhas. Escutava o rumor dos cantos antigos.

Eu voltara, estava vivo.

Contudo, uma tristeza comprimia-me o coração, um desconforto surdo e pungente. Não era um sentimento de culpa, de jeito nenhum. Nunca entendi por que era preciso sentir-se culpado por ter sobrevivido. Aliás, eu não tinha sobrevivido de verdade. Não tinha a certeza de ser um verdadeiro sobrevivente. Tinha atravessado a morte, ela fora uma experiência de minha vida. Há idiomas que têm uma palavra para esse tipo de experiência. Em alemção diz-se Erlebnis. Em espanhol: vivencia. Mas não há palavra francesa para captar de uma só vez a vida como experiência de si mesma. Temos que empregar perífrases. Ou empregar a palavra 'vivido', que é aproximativa. E contestável. É uma palavra chocha e frouxa. Antes de mais nada, e sobretudo, é passivo, o vivido. E depois, é no passado. Mas a experiência da vida, que a vida faz dela mesma, de si mesma enquanto está vivendo, é ativa. E é no presente, necessariamente. Quer dizer que ela se alimenta do passado para se projetar no futuro.

Seja como for, não era um sentimento de culpa que me apunhalava. Esse sentimento é apenas derivado, vicariante. A angústia nua de viver é-lhe anterior: a angústia de ter nascido, saído do nada confuso por um acaso irremediável. Não há nenhuma necessidade de ter conhecido os campos de extermínio para conhecer a angústia de viver.

Eu estava vivo, portanto, de pé, imóvel, na esquina da avenida Bel-Air com a praça de la Nation."

Jorge Semprun, "A Escrita ou a Vida"

1.4.08

"Neve", Orhan Pamuk


Une psychose lacanienne – Présentation de Malades

Dr. Lacan: Asseyez-vous, cher monsieur. Vous avez suscité ici le plus intérêt. Je veux dire que nous nous sommes réelement profondemment penchés sur votre cas. J’ai parlé avec vos psychiatres. Nous avons éclairé pas mal de choses. Parlez-mois de vous. (Silence de Monsieur Primeau). Je ne vois pas pourquoi vous ne parleriez pas ; vous savez très bien ce qui vous arrive.
Mr. Primeau: Je ne parviens pas à me identifier.
Dr. Lacan: Vous ne vous identifiez pas ? Expliquez-moi ce qui se passe.
Mr. Primeau: Je me sens un peu detaché par rapport au langage. C’est une division entre le rêve et le réalité. Il y a une équivalance entre deux... deux mondes de mon imagination, et pas de prédominance. Entre le monde et le realité – ce qu’on appelle réalité – se produit une division. Je me trouve constamment du côte de l’imaginaire que s’écoule.
Dr. Lacan: Parlez-moi de votre nom. Parce que Gérard Primeau n’est pas...
Mr. Primeau: Oui, je l’avais décomposé avant de connaître Raymond Roussel... Il y 20 ans que j’étudiais les mathématiques supérieures... Puis je me suis interessé aux faits physiques, et on parlait beaucoup de strates et sous-strates intellectuelles. Le langage pourrait présenter ces mêmes assises. Par exemple, mon nom se décomposa en GEAI, l’oiseau, et RARE, la rareté.
Dr. Lacan: Geai rare...
Mr. Primeau: PRIME AU (Premier au). J’avais decomposé mon nome avec une telle lucidité, que je l’avais « mis en morceau » pour créer. Ce que je dois vous dire c’est... (silence)