3.4.06

O Umbigo I

Olá...

Seus comentários no último email têm muito pouco de crítica literária e se concentram numa reflexão mais pessoal (sempre tangenciando a questão de crítica?...) Acho este caminho bom – dá para pegar carona por aqui, mesmo que dê para sentir, nas suas colocações, alguns fiapos de hostilidade, mas, enfim....

Bom, as coisas que você escreveu me fizeram pensar outras coisas – sempre fazem, não é mesmo? – num contexto mais amplo, abrangendo tanto o espaço daqui-para-fora quanto o daqui-para-dentro. A questão centro – umbigo – destas reflexões que você despertou são muito claras para mim: a impossibilidade de construir um enfrentamento real das situações, para além das revoltas vazias, para além dos desprezos e indiferenças (acordos de isolamento), e, também, para além do desespero. Enfim, propor soluções de enfrentamento que subtraiam-se destas lógicas, que estejam alinhadas em outras órbitas, entende?

Alguns obstáculos se colocam no caminho deste projeto de viver fora das faixas de proteção. É muito fácil fazer um papel de vítima, mesmo que um espanto advenha ao perceber esta aquiescência masoquista e aguda em mim mesma, grudada nas costelas. É muito fácil solicitar pena ou simpatia: ficar sempre se despencando por aí, ficando doente ou quebrando coisas (o tipo de apelo específico que as pessoas que parecem ser uma ameaça – conscientemente ou não – à sua própria existência produzem). Resisto, reticente, aos aspectos práticos da existência: comida, dinheiro, a opção sexual do próximo. Sorrio aos balconistas, entabulo conversas mentirosas para agradar aos velhinhos, respondo às gracinhas dos frentistas e deixo que os homens segurem a porta para eu poder passar – quando não deixo mesmo que paguem meu almoço ou jantar.
Eu queria poder afirmar que se tratam de fragilidades cultivadas (e olha que eu estou apenas no primeiro nível das fragilidades, as que podem ser contadas para outro). Que eu quis assim, substituir selvagerias por estes desencantos, num processo iniciado na adolescência. Que, enfim, preferi ter pena – e algum enternecimento – por mim do que aversão...

Tentando uma síntese que não soluciona nada, posso dizer que minha relação com os fatos e acontecidos, esta tal ‘vida’ aí, é de uma profunda conivência, benéfica e meio mau-caráter, mais algumas ficções de rebeldia para acompanhar. As coisas têm sido assim, uma palhaçada, de cabo a rabo, uma pegadinha, algo que mesmo esta lucidez pontual mal pode abalar – é um projeto renovável de palhaçada. Até que alguns sujeitos perigosos como o Ezzio Flavio Chato – e outros, talvez você nesta horda – me puxam do País das Maravilhas pelo pé... de qualquer forma, prefiro estes períodos de maré baixa, quando os artifícios se vão e fica apenas alguma coisa mais essencial, mais monolítica, mais pedra à la João Cabral, esta insatisfação profunda que sobe à cara e a impede de expandir-se demais. Mas, enfim, provavelmente, coisas entre eu e eu (de tão próximo, um espaço infinito por mágicas cartesianas), ou eu contra eu mesma, como tem parecido ser o caso.Um ápice radical é sentir que, se algo pode ser dito, é porque não vale a pena dizê-lo.

Mas, no mais – “então tá, então” – as coisas estão muito bem, obrigada. Comprei cartucho para impressora e já imprimi seus textos. O que você prefere: apontamentos virtuais ou um cara-a-cara para amolecer a crítica?...

Não sei se esta minha insatisfação ecoa na tua – ou vice-versa – mas tenho a impressão de que, neste nosso engessado meio acadêmico, talvez você esteja exigindo demais de possíveis relações com os professores... talvez seja a idéia buscar outros espaços ou criá-los, não sei... De qualquer forma, acho você tem maiores possibilidades de um enfrentamento de tudo isso que eu – acho que existe um cerne duro por aí, bem resistente e válido.

Beijos, manifestações holográficas,

J.

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