18.5.08

Do Estadão (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080516/not_imp173658,0.php)
Ação propõe punição contra dois coronéis
Ministério Público pede que Justiça os declare responsáveis por torturas
Marcelo Godoy

O Ministério Público Federal entrou ontem com ação civil pública pedindo à Justiça que declare os coronéis do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos e os obrigue a ressarcir à União o dinheiro gasto com indenizações (R$ 7 milhões) a 64 famílias de mortos e desaparecidos políticos entre 1970 e 1976, período em que comandaram o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do antigo 2º Exército, em São Paulo.

É a primeira vez que o Ministério Público propõe uma ação civil buscando a punição de militares envolvidos com a repressão política no regime militar. Assinada por seis procuradores, a ação pede ainda à Justiça que as Forças Armadas revelem os nomes de todas as vítimas do DOI, não só os dos mortos e desaparecidos, mas também os das pessoas interrogadas, e informem as circunstâncias das prisões e demais atos de violência. Os procuradores pretendem que sejam tornados públicos os documentos relativos ao DOI. Por fim, desejam que os coronéis sejam proibidos de exercer qualquer função pública.

"Os nomes indicados na ação são os que constam do livro Direito à Memória e à Verdade, da Presidência da República. Em um segundo momento vamos propor ações contra os demais integrantes do DOI", contou a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero. Eugênia explicou que a ação civil não impede outras na área militar e criminal contra os réus. Ela sugere que seus colegas da área criminal processem os militares por ocultação de cadáver, pois se trata de crime permanente, ou seja, que ainda é cometido em relação aos desaparecidos. Também propõe que o Ministério Público Militar tente cassar as aposentadorias dos acusados, declarando-os indignos do oficialato."Só com a verdade, a justiça e a reparação se impedirá a repetição do que houve", disse Eugênia. Para Ivan Seixas, da comissão de familiares de mortos e desaparecidos, "pela primeira vez a Justiça terá de tomar uma posição sobre esses crimes".

"Vou esperar a manifestação do juiz sobre a ação antes de me pronunciar, mas é evidente que esta ação tem um peso maior, por ter sido proposta pelo Ministério Público, do que as outras contra meu cliente", disse o advogado Paulo Esteves, que defende Ustra. O coronel responde a duas outras ações movidas por ex-presos e seus familiares. Ele chefiou o DOI de São Paulo de 1970 a 1974. No período, 47 pessoas morreram sob a responsabilidade do órgão.Maciel, o outro acusado, sofreu um acidente vascular cerebral segunda-feira e está internado no Rio. Chefiou o DOI de 1974 a 1976, quando 17 pessoas morreram, entre elas o jornalista Vladimir Herzog. "Hoje ninguém sabe que ele (Herzog) era um jornalista como qualquer outro. Associou-se à sua pessoa uma figura de renome. Prêmio Vladimir Herzog - para um judeu, apátrida, que nem brasileiro era", disse Maciel ao projeto História Oral do Exército.


Do Conversa Afiada (http://www.paulohenriqueamorim.com.br/materias158.asp)

Paulo Henrique Amorim – Eu vou conversar agora com Amélia Telles. Ela é da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Amélia, você certamente viu essa notícia de que o Ministério Público Federal resolveu processar o coronel Ustra e mais um outros suspeito de ter sido torturador e obriga-los a devolver à União os recursos que a União pagou às vítimas de tortura durante os anos militares. Você viu isso?
Amélia Telles – Sim. Eu estou a par dessa ação promovida pelo Ministério Público Federal, não é isso?
Paulo Henrique Amorim – Isso.
Amélia Telles – Eu estou a par sim.
Paulo Henrique Amorim – Você foi torturada pelo Coronel Ustra?
Amélia Telles – Eu fui torturada pelo coronel Ustra. Eu acho extremamente importante que o Ministério Público, na defesa dos direitos humanos do povo brasileiro, tome essa iniciativa. Porque é preciso haver uma reflexão da história desse país, uma reflexão da tortura institucionalizada que foi na época da ditadura militar, para que isso nunca mais aconteça no nosso país. E eu fui torturada sim pelo coronel Ustra, inclusive eu sou uma das autoras de uma Ação Declaratória, junto ao Fórum de São Paulo, para que seja declarado o coronel Ustra como torturador, que seja declarado que o coronel Ustra é um torturador ou foi um torturador.
Paulo Henrique Amorim – Você foi torturada quando e sob que argumento?
Amélia Telles – Eu fui torturada no final de 1972, início de 1973 porque eu era uma militante comunista...
Paulo Henrique Amorim – De que organização?
Amélia Telles – Era do Partido Comunista do Brasil, que era um partido ilegal na época, era um partido que vivia clandestino, porque a ditadura proibiu os partidos políticos. E eu trabalhava na imprensa do partido e por isso eu fui presa, torturada para denunciar os contatos que eu teria como militante da imprensa, contatos importantes para o partido. Quer dizer que eu deveria entregar os nomes das pessoas com as quais eu me relacionava para que eles prendessem também essas pessoas ou para que eles torturassem também essas pessoas. Foi nessa situação que eu fui presa e torturada.
Paulo Henrique Amorim – Em que pé está sua Ação Declaratória contra o coronel Ustra?
Amélia Telles – A nossa ação já está nas alegações finais, já foram apresentadas nessa semana as alegações finais, tanto da parte da autoria da ação, quanto da parte dos acusados, ou melhor, o acusado, que é o Coronel. Então acredito que em dois ou três meses já estará concluída essa Ação Declaratória.
Paulo Henrique Amorim – E se o coronel Ustra for condenado nessa Ação Declaratória, o que vai acontecer com ele?
Amélia Telles – Ele vai passar a ter um título de torturador. É uma declaração de que ele é um torturador. Essa é a meta final dessa ação. É uma Ação Declaratória. O Estado reconhece que dentre os quadros dos seus funcionários teve o coronel Ustra como torturador.

Da Folha

Indústria farmacêutica financia ONGs
CLÁUDIA COLLUCCI, RICARDO WESTIN

Pelo menos nove entidades brasileiras de defesa de doentes são financiadas por fabricantes de remédios, revela um estudo recém-concluído da ONG (organização não-governamental) americana Essential Action.

Uma entidade que representa pacientes com linfoma e leucemia (tipos de câncer) com sede em São Paulo, por exemplo, recebeu R$ 1,5 milhão de oito multinacionais no ano passado -60% do orçamento total.O documento afirma que a relação financeira pode fazer com que "entidades aparentemente independentes" deixem de lado os interesses dos pacientes e adotem uma agenda "consoante com as prioridades da indústria".

No Brasil, os dois lados admitem a transferência de dinheiro, mas negam que isso interfira na independência das entidades de pacientes. Para chegar à conclusão, a Essential Action, que se dedica a estudar a saúde pública, analisou um manifesto internacional a favor da manutenção do sistema de patentes de remédios. Das 110 entidades de doentes que assinam o documento, 61 têm ligação com a indústria farmacêutica ou com fabricantes de equipamentos médicos, segundo a ONG. Nesse manifesto, os pacientes seguem o discurso dos laboratórios, que são contrários à licença compulsória de patentes. Esse expediente, que acaba com o monopólio da fabricação, é adotado quando o governo de um país pobre entende que está pagando muito caro por certas drogas.

O manifesto foi remetido à OMS (Organização Mundial da Saúde), que há dois anos estuda mudanças no sistema de proteção de patentes -incluindo a licença compulsória- e criou um grupo de trabalho intergovernamental para analisar formas de ampliar o acesso da população a medicamentos. O texto final deve ser votado nesta semana, durante a Assembléia Mundial da Saúde. Se aprovado, a OMS poderá dar assistência a países que queiram quebrar patentes. Países emergentes, como o Brasil, e fabricantes de genéricos pressionam para que o documento seja aprovado. Já multinacionais farmacêuticas tentam impedir o acordo.

Das 61 entidades signatárias que mantêm relações com a indústria, nove são brasileiras. Elas defendem hemofílicos, diabéticos e pacientes com câncer e hepatite. Jim Donahue, um dos responsáveis pelo estudo da Essential Action, diz que o problema não está propriamente no financiamento farmacêutico, mas no fato de essa relação não ser tornada pública. "As entidades precisam revelar quem são seus financiadores, que interesses estão defendendo, deixar as coisas claras", defende. O presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Osmar Terra, lembra que o milionário mercado de medicamentos é movimentado em grande parte pelas compras dos governos."É natural que se forme um lobby. O problema é que a indústria usa algumas associações de doentes para pressionar [o governo a comprar remédios]. Não há ninguém melhor que o doente para ser a vítima", afirma Terra, que também é secretário de Saúde do Rio Grande do Sul.

O estudo da Essential Action chegou à OMS, na Suíça, no início deste mês. Segundo a farmacêutica Gabriela Costa Chaves, do grupo de trabalho brasileiro sobre propriedade intelectual, a revelação causou "surpresa" na equipe."Agora estamos triplamente atentos. A questão do conflito de interesse é muito sensível quando a gente lida com medicamentos. O debate é polarizado. Você tem que definir de que lado está. Se recebe recursos da indústria, essa discussão está contaminada", afirma. Para o pesquisador Mario Scheffer, as ONGs têm autonomia para fazer as parcerias que desejarem, mas devem permanecer isentas. "É muito complicado que uma ONG que orienta os pacientes a ingressar com ação judicial para reivindicar um medicamento novo ou que atua junto ao governo para a introdução do remédio no SUS seja financiada pela indústria que fabrica esse remédio."