26.11.08

Aula de Literatura


No curso de extensão, Psicanálise e Literatura, a aula introdutória à psicanálise, mais associativa do que organizada, parece encantá-los. Com uma surpresa adicional, eles parecem duvidar de que é possível sistematizar todos estes assuntos do nosso cotidiano, aquilo sobre o qual não nos damos ao trabalho sequer de discutir (o sonho, o ato falho, as crenças das crianças) e ainda defender seu direito de permanecer no quadro das ciências.

A aula sobre literatura – “O que é literatura?”, usando o texto de Umberto Eco sobre as funções da literatura – provoca um inusitado silêncio. A literatura, para estes alunos do curso de letras de uma faculdade privada de uma cidade satélite de Brasília, é um objeto estranho, inanimado, imóvel, não mais que o motivo de sabe se lá quantas reprimendas – “Como? Vocês não lêem?”. Para eles, a literatura é silenciosa.

Tento falar-lhes não sobre a obrigação, mas sobre a escolha. “A literatura é um facilidade inata e uma dificuldade adquirida”, sugerem os irmãos Goncourt. Enfatizo não a facilidade porque isto acarretaria a idéia de um “dom”, de uma “questão de gosto” e de nada que se possa fazer sobre isso. Enfatizo a aquisição, aqueles que querem adquiri-la. Insisto que trata-se de uma escolha: ou nos abrimos à experiência estética ou não o fazemos.

Digo a eles: “Escolham. Escolham deixar a literatura agir. Deixem-se, sejam alvos fáceis, deixem que a literatura dê o tombo. Caiam. Aceitem a queda. A queda é movimento e o centro da experiência estética está neste deslocamento, no transporte para longe de si, para uma região nova dentro de si, nova porque até então inexistente. A literatura, nos diz Umberto Eco, nos ensina a morrer. Morrer a morte real e morrer a morte falsa. Ela ensina a não ser. Você escolhe a literatura. Ou o cinema ou a música ou a dança ou qualquer coisa. Escolhe e sustenta esta escolha, aprofunda esta escolha. Até que, desvirando posições, chega o dia em que você se percebe não mais escolhendo e sim escolhido, o dia em que a literatura lhe escolheu, lhe tomou e você, que tanto se obrigou a dizer ‘sim’, não consegue mais dizer ‘não’. ”

Eles escutam, mudos ainda. Insisto, sabendo que minha ânsia, o tanto da minha própria relação com a literatura que transparece neste discurso, é bem mais eloqüente que qualquer poder retórico.


Musicálidos...

"só mesmo com você
quero ver o baque da vida virar"

17.11.08

A Mistake - Fiona Apple


I'm gonna make a mistake
I'm gonna do it on purpose
I'm gonna waste my time
'Cause I'm full as a tick
And I'm scratching at the surface
And what I find is mine
And when the day is done, and I look back
And the fact is I had fun, fumbling around
All the advice I shunned, and I ran
Where they told me not to run, but I sure had fun
So I'm gonna fuck it up again
I'm gonna do another detour
Unpave my path
And if you want to make sense
Whatcha looking at me for
I'm no good at math
And when I find my way back
The fact is I just may stay, or I may not
I've acquired quite a taste
For a well-made mistake
I want to mistake, why can't I make a mistake?
I'm always doing what I think I should
Almost always doing everybody good
Why?
Do I want to do right?
Of course!
But do I really want to feel I'm forced to answer you?
Hell, no!
I've acquired quite a taste
For a well-made mistake
I want to make a mistake, why can't I make a mistake?
I'm always doing what I think I should
Almost always doing everybody good
Why?

16.11.08

"fundir-se com os mortos e os sobreviventes"

Ao completar vinte e sete anos, antecipei uma pequena e histérica crise dos trinta. Foi como me tornar subitamente consciente da minha idade ou de que tenho uma idade que, antes, existia apenas no papel – a certidão, a carteira, o 30 de janeiro. Dá para lembrar de Rosa Montero, repetindo, com estranha incredulidade, no Roda Viva: “Eu tenho cinqüenta e cinco anos! Como isso é possível?!?” Antes – vinte e cinco, vinte e um, dezesseis – a idade não existia, porque eu estava muito ocupada vivendo para asseverar sua importância. Hoje, a passagem dos anos exige de mim uma mudança difícil porque eu só consigo medir o tempo pelas minhas fragilidades e a marca mais consistente da vida adulta é a possibilidade de desgraças cotidianas.

Então, esta estranha sensação de ter perdido alguma coisa, de ter faltado a algum encontro há muito tempo marcado, mas que eu não consigo lembrar claramente com quem. A certeza de ter abandonado alguns projetos, mas não qualquer projeto, projetos muito específicos, nada de planos de viagens ou comprar um carro com quatro portas ou morar numa casa de campo. Tratava-se de “projetos de ser” (projetos de diferença, de juventude, de desgaste), quem eu gostaria de ser, quem eu me exigia ser, do que eu precisava viver e agora é tarde, os projetos não são mais realizáveis porque agora eu sou uma outra pessoa, uma pessoa que é uma outra coisa, uma coisa que não comporta mais estes projetos.

É nos atendimentos que eu encontro um sentimento de apagamento me tranqüiliza, um “círculo branco”. Todas estas questões – ser, a quem ser, mas quem realmente é? – desaparecem. Eu desapareço, por mais que certa ansiedade se mantenha, residual, sobre o que dizer ou como dizer, mas o eu, esta minúscula célula de eu, encapsulada pelo narcisismo, desaparece. Eu me torno olhos para ver e ouvidos para ouvir, deixoando de ser coisa que possa ser olhada ou até mesmo pessoa que deveria ser ouvida. Eu busco por este desaparecimento, por esta imobilidade, esta invisibilidade. Eu me torno pedra, rocha, terra, algum material resistente, mas ainda vivo, ondulante, com poros sensíveis aos sopros que vêem não se sabe de onde (são estes sopros as únicas intervenções que valem a pena serem compartilhadas - não, não é mística, é só o inconsciente). Preservo este lugar de vazio, de tranqüila ausência e chego a estranhar a curiosidade dos pacientes, as perguntas pessoais, quase esquecendo: curiosidade é sempre investimento libidinal...

o dia seguinte

Uma estranha paz, tendo em vista como eu normalmente me sinto quando atravesso o território pulsante (bouleversant) de ontem à noite (a verdade de um corpo – ou uma das verdades, pelo menos).

É difícil tentar combinar duas origens de uma mesma ação, mesclar duas linhas de causalidade, saber o peso de cada uma delas na sorte de alguém. De um lado, este gesto meu, pessoal e intransferível, de pôr, com esta mão, parte deste braço, sobra deste corpo, de pôr a roda em movimento e sabe-se lá o que ela vai arrastar com seu giro. De outro lado, aceitar o inescapável, o inelutável, o inevitável porque eu não consigo – ou não quero? – parar, este sentido trágico de se abandonar a um destino anterior, já traçado, depois de recusas reticentes – um oferecimento melancólico a algo maior que a pequena vontade individual.

Esta tranqüilidade é reconfortante. Ela diz que eu não preciso mais sofrer tanto. Ela diz que pode haver uma simplificação. Ela diz que eu posso pacificar um território em guerra (soldados mutilados, batalhas sangrentas, disputas corpo-a-corpo, catástrofes naturais, acidentes inomináveis, dívidas imperdoáveis, culpas insanáveis, bombas à espera, terrores noturnos, agentes duplos, demônios). A angústia que normalmente me vinha após qualquer invasão deste espaço, me deixando desolada ou vigilante, não me encontrou desta vez.

É preciso perceber que as incursões a este território são feitas com muito cuidado e, ao mesmo tempo, muito desastre. Elas unem prudência e auto-destruição. Trata-se de chegar muito vagarosamente à borda, à fronteira, olhar com calma, com estudo, mapear o solo, simular conseqüências – mas, no momento da ação, simplesmente se lançar, se jogar, se escorregar ladeira abaixo, esquecendo a queda (mas à espera).

No entre tempo, fora deste território em descontrole, eu decido pela auto-indulgência, pela proteção absoluta, uma dedicação a vigiar, a não fazer nada que possa me colocar em risco. Nestes períodos, o mutismo é minha língua materna e eu exijo invisibilidade, exijo manter separados os dois registros da vida, que fantasia e realidade corram paralelamente sem se tocar, uma protegida da outra.

Mas, agora, em busca de reparação, tento acreditar na possibilidade de alegres encontros entre desejo e fatalidade e não apenas angustiantes disputas.

12.11.08

Erotismo, cultura, sedução...

“Baudrillard propõe que a sedução representa um deslocamento na ordem positiva e orientada para um fim da sexualidade. Nessa perspectiva, seria a contrapartida da racionalidade falocrática, baseada em uma orientação objetiva e voltada para a reprodução ou para a realização do desejo.

Se a sexualidade é definida por um conteúdo físico, orgânico (em que a anatomia é o destino, na concepção freudiana), a sedução pertence à dimensão do simbólico e está sujeita à indeterminação, tendo, portanto, um caráter anárquico, libertador. Ou seja, reduzi-la a um complemento da conquista amorosa significa empobrece-la, instrumentalizando-a de acordo com as demandas do imaginário masculino, que Baudrillard atribui á estrutura materialista da cultura.

Para o filósofo, ‘a sedução é sempre mais singular e sublime que o sexo’, pois a sexualidade se caracteriza como função, ao passo que seduzir (cuja raiz etimológica se-ducere equivale a afastar ou desviar do caminho) é jogo, como em um ritual, e será conduzida pela incerteza, pela flexibilidade e pelo imprevisto. Por essa razão, Baudrillard vê na sedução ‘o poder do feminino’, não como reverso da masculinidade, mas como um modo alternativo de organização das identidades e das relações sociais, pois ‘implica tudo, e não apenas a troca dos sexos’. Afinal, ele nos lembra, historicamente a sedução é um estratagema da feminilidade.

Por outro lado, a pornografia, na acepção de Baudrillard, corresponde à ‘exacerbação realística’ do sexo, essa obsessão pelo material que está no cerne da atual sociedade do consumo e que seria exatamente o contrário da sedução, que, segundo o filósofo, transcende o primado da objetividade, a instância da mercadoria e do valor, para exercer o pleno ‘jogo com o desejo’.”

Sexo, identidades e sentidos: tramas da cultura, Vol II


O beijo da fênix, Franz von Stuck


“O erotismo pertence ao domínio daquilo que a mística entende por experiência. Tal acontecimento não pode ser conhecido racionalmente, porque excede todo conhecimento, todo discurso sob o primado do logos. A experiência erótica, portanto, via do excesso e do impossível, pertence ao reino do não-saber, esse manancial silencioso e sombrio, de onde fluem outras formas heterogêneas, como o riso, a violência, a poesia e o êxtase.

O que é experiência? É o espaço, a zona de ocorrência dos fenômenos heterogêneos que vigoram em regime de excesso. Em suma: tais fenômenos, transgressores por definição, como o erotismo e a violência, são ocorrências nas quais os princípios da lógica se mostram inoperantes. (…)

Em pleno século XVII, em uma época já tomada pelo sonho da razão, Espinosa ousou perguntar: “O que pode um corpo?”. Sabemos que um corpo pode matar e morrer (ou ser morto); pode desejar um outro, atirar-se sobre ele e voltar a si mesmo. O corpo que pensa e trabalha (mais trabalha do que pensa) de repente é então atingido pela febre do erotismo. Ele quer então exceder. Dança no ritmo dionisíaco de Zaratustra, girando convulsivamente para consumar-se no gozo do homem total. O corpo erótico dança para acasalar-se, mas também para deixar de ser contínuo e dissolver-se no outro. Tal dança é um ritornello, um devir permanente, que sempre retorna porque nunca acaba de se exceder. Se há alguma lógica no erotismo, é a da desmedida, gerada pela figura da hybris. A razão, reino do logos e da sociedade utilitária, fica assim à deriva. O erotismo arranca o homem do fundo de si mesmo e o arregimenta em uma comunidade de corpos em desespero e angústia causados pela experiência da morte. Essa é também a via do êxtase, no qual Santa Tereza de Ávila sentiu um gozo tão divino que a fez ‘morrer de não morrer’.”

Contardo Borges, “Corpos que excedem”