Nada une Juan José Saer a Marcel Proust.
Nada, a não ser a mão invisível do acaso, a não ser o fato de que estou lendo estes dois livros agora (é um segredo, mas... os livros se estendem numa corrente misteriosa ao meu redor, todos por ler, todos sendo relidos... numa conspiração amorosa...)
Então, que melhor justificativa para unir o que, a principio, parece irreconciliável, senão o prazer da leitura, a trajetória de uma vida, o gesto voluntarioso e ávido?....
Leio em Saer (“A Pesquisa”, Cia das Letras):
“(…) embora cada minuto que vivam os aproxime, como num jogo, do nada, no qual desaparecerá tudo o que é vivido, pensado e lembrado, desde a idéia do universo até a mais inconcebivelmente diminuta das partículas, passando por todas as variações intermediárias que existam entre as duas, e em particular nessa noite calorenta de fim de março, dão a impressão de ser maciços, sólidos e despreocupados, indolentes e sadios, concentrados no imediato, como o cirurgião numa operação delicada, o atleta no salto que se prepara para dar, ou o epicurista num gole de vinho fresco”.
[suspiro]
Se faltou fôlego para ler, penso em quanto fôlego requereu escrever...
Saer é capaz de nos dar maravilhosas composições. Ele, por exemplo, diz do mundo: “aquilo que se agita no exterior” e me toma, sempre, sua infinita delicadeza em manter a indefinição (‘aquilo’) ao mesmo tempo que a premência, que essa indefinição ainda não nos confunde: nesta única frase, sabemos que se trata da confusão do mundo, os acontecimentos incontroláveis e selvagens a que somos submetidos apenas por estar vivos.
Bom, voltando ao trecho mais longo. Cada termo é tão trabalhado, tão decantado, um ritmo de respiração tão alterado para que todas as idéias possam caber nesta longa frase; o peso da frase caída no chão é analisado, a metáfora destilada até seu ultimo detalhe. Isso faz do texto uma escultura, uma obra de pedra parada no meio da sala, esperando para ser tombada. Em Saer, o texto não ondula, não há uma brisa passando por aqui, as palavras estão ancoradas, acorrentadas entre si, e correm o risco de enferrujar-se. Coisa que, talvez, não ocorresse num texto mais ‘desleixado’, digamos assim, menos (re)trabalhado.
Então, eu lembro.
“Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida, a existência de nosso corpo, semelhante para nós a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa possessão.”
Marcel Proust, “Sodoma e Gomorra”
Um trecho não menos trabalhado. A mesma complexidade sintática, a mesma exuberância. Exuberância dos sentidos, aqui, ao contrário de Saer, onde encontraríamos uma exuberância de imagens.
Em Proust, tudo é fluído, é gozoso, gozoso de uma dor erótica, a dor como o bem mais precioso do sujeito. E não por falta de trabalho e retrabalho (eis aqui a desculpa para juntar alhos com bugalhos, Marcel e Juan). Proust tinha seus cadernos de trabalho e, ao fazer as correções, ia colando novas páginas às paginas já escritas, de tal forma que, desdobradas, as páginas de correção tinham metros de comprimento. (Interessante pensar que na relação com a escrita, com a produção que estes ‘grandes’ tiveram: as duas escrivaninhas de Freud, Marx antecipando o hiper-link na biblioteca de Londres, os quilômetros de correção de Proust...)
‘Sodoma e Gomorra’ é o livro da sexualidade em “À la Recherce du Temps Perdu”, tal como “No Caminho de Swann” é o livro do amor. Se o amor, então, é sempre o amor ciumento, a sexualidade, por excelência, é a homossexualidade. De um lado, a gomorreanas: lésbicas dissimuladas, cheias de segredo, reconhecendo-se entre si num código além dos homens, tal qual Albertine. De outro, os sodomitas, estes sendo reconhecidos de longe e abertamente, apesar da complexidade de seus jogos de engano, apesar do desejo de “aderir à realidade essas propriedades de invisibilidade”. O Barão de Charlus e, quem sabe, o próprio narrador.
“(…) a jovem não cessava de pousar em Albertine os fogos alternados e giratórios de seus olhos. (…) quando duas raparigas se desejavam dava-se como que um fenômeno luminoso, uma espécie de rastilho fosforescente que ia de uma a outra.”
Proust é o escritor do visível, porém não palpável. O narrador é um observador, mas um observador à deriva, sendo empurrado ou trazido pelo que vê. As palavras escorregam pelos dedos quando se tenta guardá-las; o desejo contamina a memória, ele é um freudiano, um psicanalista avant la lettre (será “Em busca do tempo perdido” a manifestação da psicanálise em ato de escritura ou será a psicanálise não mais que uma releitura de Proust?). Por exemplo, a pulsão e a marca que seu objeto deve portar, selon Proust: “sua música, sua chama, seu perfume (…) a satisfação, tão fácil em outros, de suas necessidades sexuais, depende da coincidência de muitas condições demasiado difíceis de encontrar”
Memória, linguagem, desejo. Proust ensina que uma obra não precisa ter um ‘conteúdo’ erótico para ser um ato máximo de erotismo. Seus leitores aprendem que este ato tem equivalente na leitura: ler um texto é fazê-lo entrar no catálogo pessoal de nossas sensualidades... ("O Prazer do Texto", Barthes).
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