13.10.06

São Paulo, Outubro 2006

Sonho com uma decisão que seja, de fato, tomada. Uma decisão decidida. E não uma decisão empurrada do estômago para a boca e da boca para o mundo… Como diz Guimarães Rosa, entender desta 'gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder'.

Meio melancólica (a melancolia é mesmo meio-a-meio), percebo que a cidade não me estranha mais (a via é de mão dupla). Ando sozinha e sem muito receio. Tento parecer apressada, atrasada, corrida, mas não convenço. Estou absolutamente disponível, as mãos nos bolsos, o passo vago. Sou turista e ser turista é propiciar o acontecer da literatura.

Afinal, Pontalis fala que toda geração deve encontrar para si uma literatura que faça de todo o resto literatura. Há momentos, então, em que o mundo se faz literatura. Em Brasília, o Beirute à noite é expressão máxima disso: olhar quem passa por lá é abrir um livro e seguir sua trama. Os freqüentadores se transvestem em seus próprios personagens, ficções pessoais que se realizam para que aquela faceta mais interessante responda pela totalidade de sua pessoa. (Escolhas, como a escolha que eu faço neste blog). São dandies e vamps meio fajutos, militantes do rótulo moderno, mas todos válidos de se olhar a pequenez. Patéticos e deliciosos... exatamente como eu.

Um mundo para ser lido é um mundo para ser escrito.

Sento neste café e fico curiando as pessoas (curiosidade em forma de verbo, um vocábulo da minha infância). Espero o começo do filme, o maître briga com o gerente, ouço a conversa das pessoas do café, um senhor destrata a moça do caixa, mas se desfaz em delicadezas para com sua filha adolescente, escrevo de trás para a frente do caderno. Quero prolongar este momento para sempre, apesar de ser um momento bobo, um momento trivial, besta demais gritam minhas raízes mineiras. Em Brasília também há cafés e cinemas e gerentes que brigam com maîtres e cadernos que se escrevem ao contrário. Mas quero estar aqui. Qual o fascínio de um outro lugar?...

Entro no cinema e embarco, sem saber, num filme de três horas. Durmo a primeira hora inteira, sem pudores ou arrependimento. Meu sono se mescla ao filme. Meu sono faz parte da experiência do filme. Tenho um sonho em preto-e-branco para acompanhar um filme monocromático (monocromáticos psíquicos, leio no artigo). Quando saio, a cidade foi lavada de cinza pela chuva, para acompanhar meu sonho.

Este blog mesmo é meio fajuto.

O que eu gostaria, deste blog, é que ele apresentasse uma qualidade específica, uma certa ‘essencialidade’, que não se deixasse levar por jogos de palavras banais, por constatações superficiais, que não se sustentasse em pequenos narcisismos imaginários. Que me acompanhasse no que me tem acontecido: alguns disfarces, por mais amados que sejam, acabam por cair; alguns enigmas, até então ignorados, emergem como possessões. Gostaria que também minha escritura tivesse esta qualidade de silêncio, crueldade e aceitação. Como se, ao contrário de ler as linhas do destino na palma da mão, lêssemos as veias, finas e arroxeadas, logo abaixo da pele mais transparente. Lidas tais veias, as linhas da palma da mão se desarranjam para sempre e pele, destino e personalidade, últimas fortalezas do narcisismo, se vão.

A alergia continua. Acordo todos os dias com cara de ressaca: nariz vermelho, olhos inchados, olheiras enegrecidas (o pó da fuligem se acumula sobre os móveis e sobre as concavidades do corpo). Sou proibida, por medida de segurança, de usar minhas estrelinhas vermelhas no peito. A cidade também parece ignorar as eleições. Atravessando a rua, ouvimos um grito desarranjar (estou apaixonada por este verbo, agora) a tranqüilidade do domingo. Do outro lado da rua, um homem cai, num ataque epiléptico. Os passantes desviam o passo, um carro pára de qualquer jeito e alguém desce para ajuda-lo.

Mais um tropeço na Paulista e volto para casa com o tornozelo torcido, meio mancando no aeroporto Juscelino Kubitschek...mancada, manquer, demi-manquer?..

15 comentários:

Anônimo disse...

E você fala do fascínio do outro lugar. Há outro autor que penso que fala sobre a experiência da análise com quase tanta propriedade quanto rosa - J.B. Pontalis (você o conhece?).
Diz ele, em "O Amor dos Começos":
"De onde vem o poder das palavras na análise? É raro que este poder resulte de uma construção complexa, da engenhosidade de uma hipótese, ele não passa de modo algum por termos eruditos nem por douta explicação. Mas s num dado momento faltam palavras, a um ou a outro, é desse oco, desse leve desnivelamento que faz tropeçar uma atividade verbal até então segura, que se pode dizer, na falta da língua, tanto o que fez falta como o que, ilusoriamente, a preencheu: o rosto de uma mãe, por exemplo, sob a luz, ocupada em sua costura, enquanto se brincava de dominó próximo a ela. 'Falar com minhas próprias palavras', acabam dizendo mais dia menos dia, cansados de tantas palavras ingeridas de empréstimo, incrustradas na carne. A reinvindicação é absoluta, eles sabem disso: as palavras são 'parte comum', como indicama os regulamentos de co-propriedade. No entanto tem de vir, em sua hora, esse voto impossível na virada da hora morta, aquela em que o uso do tempo e das palavras, em que a distribuição do espaço oscilam. Quando as palavras faltam, é porque, sem saber, preparamo-nos para tocar outro solo".
Lindo.
É mesmo aí,quando a palavra pensada, pegante, dada ou guardada, vai rompendo rumo, que a gente faz os sentidos que faltavam, e pode se livrar dos negócios gerais para pensar nos novíssimos.
(Diz Riobaldo: "Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais?)

Chega. Até qualquer dia.

Anônimo disse...

Voltei porque esqueci de algo. Falo sobre o fascínio do outro lugar porque sinto que, para mim, isso é a análise - estar em outro lugar. Na linguagem, no analista, quando estou no divã, no paciente, quando na poltrona. Num lugar sempre impossível, mas no único lugar em que o novo pode surgir. Acho que é disso o que fala Pontalis.

Até mais. Agora, sim.

Ana Janaina disse...

Eu adoro este livro. Comprado num sebo - meses depois, comprei 'Grande Sertão'. Não sei dizer ainda o que me fascina em 'Amor dos Começos'. Tentei dizer num post, aqui neste blog:http://omorto.blogspot.com/2006_09_01_omorto_archive.html

Leia e me diga se concorda.

Um abraço,

j.

Ana Janaina disse...

O post é 'Eu também, Jean-Bertrand...'

Anônimo disse...

Acho que falamos de coisas parecidas. Não sei se é um desassombro, ou um assombro, mesmo, do mesmo tipo do assombro de Rosa (“Tudo, nesta vida, é muito cantável”), um assombro que não imobiliza, mas que empurra. Sim, Pontalis está desnorteado pela falta de jeito dos outros, mas continua buscando – a palavra, o outro, o silêncio acompanhado (mesmo que do outro lado da linha telefônica). Um viajar para este outro lugar acompanhado desse outro sem jeito, mas que nos permite cruzar a rocha no meio do rio – quem sabe, até mesma, pisar seu solo, para então ir em frente.
Você diz que comprou este livro num sebo e – meses depois -, Grande Sertão Veredas, e fala deste desnível que ele produziu em você. Também em mim este livro teve um efeito violento. Eu havia (pela primeira vez, porque o fiz mais duas) interrompido minha análise, há poucos meses. Tinha cansado, estava assustado, não via sentido numa cura pela palavra, quando as palavras faltavam a mim e ao outro ou quando, no caso de surgirem, serem tão lancinantes. Pontalis me levou de volta ao divã, deu algum sentido para aquilo que parecia só sofrimento, e foi naquele momento que decidi que também eu daria à minha formação em psiquiatria o destino da psicanálise. Meu analista, Pontalis e Guimarães Rosa são meus “pais analíticos” (uma trindade secular).
O que me leva, como parece que acontece com você, a esta encruzilhada entre a psicanálise e a literatura. Para mim, uma encruzilhada que se juntou num único caminho, assim como aconteceu com Pontalis.
A literatura põe o mundo em risco. A psicanálise põe o sujeito em risco. E viver, afinal, não é mesmo muito perigoso?

Anônimo disse...

Você sumiu. Terei eu entendido mal seu comentário sobre JB?
Afinal, existe ainda, na intertessecção entre literatura e psicanálise, é claro, Omós Oz (e Dostoievski...):

“Quem procura a essência de um conto no espaço que fica entre a obra e o seu autor comete um erro: é muito melhor procurar não no terreno que fica entre o escritor e sua obra, mas justamente no terreno que fica entre o texto e seu leitor.
(...)
O fato é que no fim das contas toda boa obra literária nos convida a enfiar a cabeça dentro de alguma das figuras do repertório de Adi Rogoznik. Em vez de tentar enfiar lá a cabeça do autor, como costuma fazer o leitor banal, quem sabe se você poderia enfiar na abertura a sua própria cabeça, e ver o que acontece.
Isto é: o terreno que o bom leitor prefere palmilhar ao ler um bom livro não se encontra entre o texto e seu autor, mas sim entre o texto e o próprio leitor: a questão não é se "Quando Dostoievski ainda cursava a faculdade, ele andava assaltando e matando pobres velhinhas?", mas sim se você, leitor, pode experimentar se colocar no lugar de Raskolnikov para desse modo sentir em sua própria pele todo o horror, o desespero, a humilhação maligna misturada à arrogância napoleônica, as alucinações megalomaníacas, o aguilhão da fome e da solidão, o desejo, a exaustão e a nostalgia da morte para que se possa então fazer a comparação (cujo resultado será mantido em segredo) não entre o personagem da história e os diversos acontecimentos da vida do autor, mas entre o per¬sonagem da história e o seu próprio eu, o seu eu secreto, perigoso, infeliz, louco, criminoso, é esse o ser ameaçador que você mantém sempre bem preso, bem no fundo, dentro de sua masmorra mais tenebrosa para que ninguém no mundo jamais suspeite, D'us o livre, de sua existência, nem seus pais, nem as pessoas que você ama, para que não fujam tremendo de medo de você, como fugiriam de um monstro horrível - e então, quando você lê a história de Raskolnikov, e você não é o leitor fofoqueiro, mas o bom leitor, vai poder trazer esse Raskolnikov para dentro de si próprio, para dentro dos seus porões, para os seus labirintos sombrios, para além de todas as trancas, para dentro da masmorra, e lá poderá fazer que ele encontre os seus monstros mais indecorosos, mais obsce¬nos, e assim poderá comparar os monstros de Raskolnikov com os seus próprios monstros, aqueles que na vida civil você nunca poderá comparar com nenhum outro, pois nunca os apresentará a nenhuma alma viva, nem mesmo em sussurros, na cama, ao ouvido de quem se deita com você à noite, para que o outro não arranque no mesmo instante o lençol e nele se enrole, e fuja de você aos gritos de horror.
Assim Raskolnikov conseguirá diminuir um pouco a infâmia e a solidão do calabouço em que cada um de nós é obrigado a trancafiar em prisão perpétua o seu prisioneiro interior. Assim os livros poderão de alguma forma consolá-lo pela tragédia dos seus segredos mais vergonhosos: não só você, meu caro, mas todos nós somos um pouco como você; nenhum de nós é uma ilha, mas todos somos penínsulas rodeadas por quase todos os lados de água muito escura, e ainda assim ligados às outras penínsulas. Rico Done, por exemplo, no livro O mesmo mar, pensa acerca do misterioso Homem das Neves que perambula pela encosta do Himalaia:
Aquele que nasceu de mulher carrega seus pais nas costas. Não nas costas. Na dívida. Por toda a vida deve carregar a eles e a toda aquela legião, os pais dos pais e os pais desses pais, boneca russa grávida até a última geração.
Por onde quer que ele ande, está grávido de antepassados, deita-se grávido dos pais e grávido dos pais se levanta, grávido dos pais vai perambular bem para longe, ou fica no mesmo lugar.
Noite após noite e ele divide o berço com o pai e a cama com a mãe, até chegar o seu dia.
E você, não pergunte: o que é isso? São fatos reais ? De verdade? É isso que se passa com esse autor? Pergunte a si mesmo. Sobre você. E a resposta, pode guardar para si.”
Amós Oz, De Amor e Trevas

Ana Janaina disse...

Não sumi. É que demoro muito tempo digerindo coisas. Ainda estou pensando sobre seu comentario sobre Pontalis. Vou pensar sobre este novo comentário - posso colocá-los como post no blog?

Ah, é bom saber que existem outros noctívagos por aí...

Um abraço,

J.

Anônimo disse...

Qual novo comentário? Sobre Amós Oz? Claro! Todos merecem ler esta bela pedaço de literatura e de reflexão sobre a condição humana.

Em relação ao texto sobre Pontalis... Ele é um pouco mais pessoal, mas não sabemos, afinal, quem somos, não é verdade? Não sei porque lhe contei sobre minha análise. Talvez porque, depois de onze anos de análise com esse mesmo analista que suportou minhas idas e vindas, acabamos nos despedindo, de forma bastante emocionada, há poucas semanas - desta vez por comum acordo. E a evocação de Pontalis trouxe essas outras evocações, de um percurso tão duro, mas ao mesmo tempo tão rico. Claro que sou muito grato a Pontalis por ter surgido em minha vida no momento certo de me fazer tomar o telefone (como ela fazia com a mãe) e ligar para meu analista, pedindo para voltar à análise e acreditando no sentido do encontro. Das outras duas vezes que interrompi, sabia que voltaria, porque estava saindo em viagem. Mas da primeira foi muito mais difícil, porque havia interrompido unilateralmente, e foi Pontalis quem me ajudou a acreditar novamente no sentido daquela busca de palavras.

Penso também que foi a ruptura de Pontalis com Lacan que talvez tenha permitido recuperar essa crença na palavra, porque me parece que a relação de Lacan (e de muitos lacanianos) com a palavra é de uma ordem quase puramente intelectual, com pouco espaço para o afeto. E é o afeto que provoca esse desnivelamento, me parece, mas que também permite o acesso às possibilidades (mesmo que limitadas) da palavra. Você já leu "O psicanalista engajado", de Andre Green? Ele faz uma crítica a Lacan que me parece bastante pertinente (ainda que contaminada por questões pessoais). Pontalis também sofreu esse desencanto com Lacan e talvez por isso tenha sido capaz de me reencantar com a palavra. Para mim, outros autores, como Bion, Winnicott e - é claro! - Freud, fazem muito mais sentido tanto à luz de minha análise pessoal como em meu percurso clínico.

Chega de falar de minha análise. Falemos de literatura. Sándor Marai, em "As Brasas" fala de algo parecido ao que refere Amos Óz:

"E no coração do homem há um instante em que não é mais noite e ainda não é dia, quando as feras saem se arrastando dos esconderijos tenebrosos da alma, quando nosso coração é agitado por uma paixão que se transforma num gesto de mão, uma paixão que em vão educamos e domesticamos anos a fio, às vezes indefinidamente..."

Ana Janaina disse...

É estranho ouvir tudo isso no momento em que decidi interromper minha análise...

J.

Anônimo disse...

Bem, isso pode tornar toda a minha conversa inapropriada... Estive relendo nosso diálogo, e percebi que fiz suposições a seu respeito, a partir dos links do blog e de seu conteúdo. Suposição de que você é analista (você é?) e de que estava em análise, e de uma maneira muito engajada (acabei de ficar sabendo que isso não é verdade, pelo menos, que não é mais verdade).

Cada um tem seus motivos para interromper sua análise. Em minha clínica e na dos colegas com quem tenho mais contato isso é muito mais freqüente do que desejaríamos, o que acaba sendo um consolo para mim, ao pensar em minha interrupção intempestiva. De qualquer forma, se você me permite esse palpite intrometido, eu apostaria que você também vai retomar sua análise. Pelo menos, é o que parece, aos olhos que só têm acesso ao que você escreve por aqui.

Você gosta de Pontalis. Veja o que ele escreve sobre a transferência dita negativa, essa que nos faz romper a análise (para frequentemente retornar):

"Não é o fato de nossos pacientes repetirem ou reatualizarem suas experiências dolorosas de fracasso, cólera, raiva e vingança que nos parece 'negativo'. É difícil imaginar o que poderia ser uma análise que evitasse o surgimento, no presente, de tais experiências. Tampouco são os ataques, diretos ou indiretos, contra o analista - ataques que, vez por outra, tendemos a tomar ao pé da letra - que realmente nos põem à prova. São os ataques, na maioria das vezes silenciosos, contra a análise, contra a atividade de pensamento, tanto do paciente contra do analista. Diríamos, nesse caso, que o vínculo transferencial é tão maciço que proíbe qualquer ligação e desligamento. A transferência para o objeto passa a constituir um obstáculo às transferências das representações. Há transferências, qualificadas de positivas, que negam a análise, ou que a tornam sem fim e sem começo: sobretudo, não acontece nada! São essas as que mais legitimamente poderíamos considerar negativas."
Pontalis, Perder de Vista. Da fantaisa de recuperação do objeto perdido.

Não sei o que a fez interromper a análise, mas isso parece apontar para o primeiro tipo de transferência. Estou falando por mim, é claro, porque é somente do lugar da minha subjetividade que posso falar num blog anônimo e sem que eu mesmo me identifique. Mas se você (como eu imagino) é analista, sabe que para a transferência só existe um remédio eficiente: psicanálise...
Abraços,
C.

Ana Janaina disse...

Eu gosto mais desta daqui:

"Intemporalidade, alucição primitiva: motivos últimos do que chamei atração do sonho. Procura idêntica na transferência, mas em outro registro, e então, é uma força de atração mais poderosa que seria necessário invocar. À imposição exercida pelo analista: afaste-se da imagem, persiga os vestígios, verbalize, associe, em resumo, façamos uma análise - responde um outra imposição que, note-se, é menos repetição do que encarnação. Como se chegasse um tempo - um tempo necessário - em que não pudéssemos mais satisfazer com palavras e evocações, cadeias associativas, ligações e desligações, deslocamentos e condensações. Pedimos aquela 'libra de carne'. Exigimos ser pagos em objetos reais e em pessoa, sem moeda de troca. Estamos cansados de viajar, de ir de uma estação a outra, queremos permanecer. É preciso que a 'coisa' esteja lá, que o laço com ela esteja assegurado - laço de amor ou de ódio, mas o de ódio, como se sabe, é mais estável, pois institui e fixa para mim o objeto, em seu estatuto de não-eu. O paciente 'age suas paixões'. No presente."

"A Estranheza da Transferência", in "A Força da Atração", J.-B. Pontalis

Anônimo disse...

Eu também. Mas não penso que sejam muito diferentes.

Só discordo de Pontalis (mas acho que, ao tomar sua obra como um todo não é isso o que ele diz) porque a análise não invoca propriamente essa força - ela simplesmente abre espaço para ela. O que se impõe é a imagem, a encarnação. A transferência. Para mim, o que o analista faz não é impor a associação, mas oferecê-la como alternativa à transferência encarnada.

Entretanto, vejo poucas análises (entre meus analisandos e conhecidos) que se aventuram nos caminhos dessa encarnação. Faz diferença quando isso pode acontecer, mas é para poucos. Isso pode parecer meio presunçoso, porque eu acho que foi a emergência desse processo que me fez interromper a análise, e foi a análise desse processo que me levou mais longe. Para mim, é nisso que reside a radicalidade da psicanálise, e (você não me disse se era analista deve ser, para conhecer tanto Pontalis!) pode ser tão assustador passar por isso como analisando quanto como analista, quando o sujeito que está no divã vive esta situação. E aí, mais uma vez, faz diferença ter vivido uma situação dessas como analisando. Pelo menos, fez diferença para mim, como analista.

Estou me metendo onde não devia, não é? Mas acho que a escolha dessa passagem fala de suas razões para ter interrompido a análise...

Acenderam a luz. O convidado ao divã chegou. Volto depois.

Abraços,

C.

Ana Janaina disse...

Estou relendo suas palavras aqui no blog. É tão estranho que, de anônimo para anônimo, eu tenha um certo receio de lhe decepcionar e, por isso, tenho escrito muito pouco e não respondo suas perguntas. “Meu estranho, meu amigo”, “meu amigo, meu estranho”. Mas, enfim...

Não sou analista. Sou psicóloga aqui em Brasília. Na universidade, fiz minha supervisão de estágio com psicanalistas e estou trabalhando com psicanálise no meu mestrado. O que é a interpretação na análise, o que é a interpretação na literatura, o que é a palavra na análise, o que é a palavra na literatura... Penso em fazer um curso de formação, mas não sei qual. Ou quando, tampouco.
Como eu disse antes, é estranho ouvir suas colocações neste momento em que decidi interromper minha análise. Estranho porque elas cabem muito bem neste momento. O que me aconteceu, e suponho que esta seja mesmo a fórmula, é que, de repente, a própria intensidade da análise depôs contra o processo de análise. De repente, as palavras tomaram carne, viraram carne, mas carne sem palavras. E não deu para atravessar isso. A análise me fez resolver tanta raiva, mas se ergueu em mim de um jeito que eu não entendo. Me fez um enigma para mim mesma. E eu não sei se esta violência é certa.

Eu sei que voltarei à análise. Não com a mesma pessoa (obviamente, por motivos transferenciais, mas, também, por outros motivos, não transferenciais). Mas, parece que, agora, eu preciso fazer algumas escolhas – mortais – antes de voltar a este processo.

Abraço,

Ana.

Anônimo disse...

Conselho não se dá - menos ainda tratando-se de psicanálise. Desconheço os motivos não transferenciais (embora, pelo que você me fale, duvide de sua existência), mas se você pedisse um conselho a seu estranho amigo, que se reconhece no que você descreve, eu diria: volte. E volte com a mesma pessoa. E volte também para enfrentar essas tais escolhas mortais que eu apostaria que estão envoltas no mesma embalagem dessa transferência tão poderosa.

De uma transferência intensa, a gente não recua - uma transferência intensa é um presente amargo para ser vivido e atravessado. Um presente seu e de seu analista. E o mais duro, mas também o mais impressionante, é o surgimento dessa violência (de que nos fala Sandor Márai) tão humana, e por isso mesmo tão assustadora. Mas somos humanos, afinal. Eu acho isso bom. Também é por sermos humanos que essas situações surgem e podem ser atravessadas. O outro lado desse rio tormentoso (e, de novo, estou falando de mim, embora não o quisesse mais fazê-lo)é a possibilidade de sentir gratidão, depois de tanta raiva e violência. Não sou um kleiniano, mas nisso Mrs. Klein estava certa. A gratidão cura.

Mas estou mesmo me metendo mais do que devia... Tudo isso começou com Guimarães Rosa.

Espero não tê-la decepcionado...

Anônimo disse...

E peço a ele as palavras, emprestadas, para tentar dizer o que disse:

"Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?"

...

"o ódio – é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente."

...

"Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou amor?"

Mais uma vez, a luz acende. Será que esse que vem agora fica ou também me deixa, de raiva?

Um abraço,

Carlos