"Quando Dostoievski ainda cursava a faculdade, ele andava assaltando e matando pobres velhinhas?", mas sim se você, leitor, pode experimentar se colocar no lugar de Raskolnikov para desse modo sentir em sua própria pele todo o horror, o desespero, a humilhação maligna misturada à arrogância napoleônica, as alucinações megalomaníacas, o aguilhão da fome e da solidão, o desejo, a exaustão e a nostalgia da morte para que se possa então fazer a comparação (cujo resultado será mantido em segredo) não entre o personagem da história e os diversos acontecimentos da vida do autor, mas entre o per¬sonagem da história e o seu próprio eu, o seu eu secreto, perigoso, infeliz, louco, criminoso, é esse o ser ameaçador que você mantém sempre bem preso, bem no fundo, dentro de sua masmorra mais tenebrosa para que ninguém no mundo jamais suspeite, D'us o livre, de sua existência, nem seus pais, nem as pessoas que você ama, para que não fujam tremendo de medo de você, como fugiriam de um monstro horrível - e então, quando você lê a história de Raskolnikov, e você não é o leitor fofoqueiro, mas o bom leitor, vai poder trazer esse Raskolnikov para dentro de si próprio, para dentro dos seus porões, para os seus labirintos sombrios, para além de todas as trancas, para dentro da masmorra, e lá poderá fazer que ele encontre os seus monstros mais indecorosos, mais obsce¬nos, e assim poderá comparar os monstros de Raskolnikov com os seus próprios monstros, aqueles que na vida civil você nunca poderá comparar com nenhum outro, pois nunca os apresentará a nenhuma alma viva, nem mesmo em sussurros, na cama, ao ouvido de quem se deita com você à noite, para que o outro não arranque no mesmo instante o lençol e nele se enrole, e fuja de você aos gritos de horror. Assim Raskolnikov conseguirá diminuir um pouco a infâmia e a solidão do calabouço em que cada um de nós é obrigado a trancafiar em prisão perpétua o seu prisioneiro interior. Assim os livros poderão de alguma forma consolá-lo pela tragédia dos seus segredos mais vergonhosos: não só você, meu caro, mas todos nós somos um pouco como você; nenhum de nós é uma ilha, mas todos somos penínsulas rodeadas por quase todos os lados de água muito escura, e ainda assim ligados às outras penínsulas. Rico Done, por exemplo, no livro O mesmo mar, pensa acerca do misterioso Homem das Neves que perambula pela encosta do Himalaia:Aquele que nasceu de mulher carrega seus pais nas costas. Não nas costas. Na dívida. Por toda a vida deve carregar a eles e a toda aquela legião, os pais dos pais e os pais desses pais, boneca russa grávida até a última geração. Por onde quer que ele ande, está grávido de antepassados, deita-se grávido dos pais e grávido dos pais se levanta, grávido dos pais vai perambular bem para longe, ou fica no mesmo lugar.Noite após noite e ele divide o berço com o pai e a cama com a mãe, até chegar o seu dia.E você, não pergunte: o que é isso? São fatos reais ? De verdade? É isso que se passa com esse autor? Pergunte a si mesmo. Sobre você. E a resposta, pode guardar para si.”
Amós Oz, "De Amor e Trevas"
Esta foi uma generosa contribuição de C. para este blog. Complemento com um pedacinho da obra de Bellemin-Noel: "O poema sabe muito mais que o poeta."
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