Brasília é uma cidade terrível. Nos meses de calor, me dói do lado de fora – as coisas, as árvores, os bichos, os carros e as ruas parecem suar junto com a gente e reclamar, baixinho, da secura.
Nestes meses chuvosos, me dói do lado de dentro. Dói assim que, indo para o trabalho, eu atravesso o eixão e vejo o céu acinzentado lá no fundo. Como se eu não conseguisse mais me organizar - a obra de Kapoor, no CCBB, chama “Wounds and Absent Objects”, como se eu virasse objeto ausente também, ausência. Desfaz a “nossa pessoa”, como eu ouvi, dia desses, alguém lindamente se referir a si mesmo. Dá uma dormência lá dentro, não nos braços, não nas pernas – mais Guimarães Rosa – lá “nas peles de dentro, no sombrio do corpo, no arranhar dos órgãos”. A chuva anoitece o dia e o tempo do relógio não vale mais para nada. Este, com certeza, não é o mesmo registro que os compromissos, os atrasos, os cálculos, os números. Deve ser, provavelmente, o tempo da morte.
Não demora muito para eu perceber alguma coisa. Acho que já falei disso aqui. A grande Casa da Infância, e do Sonho. Me angustia o céu cinzento da cidade porque, na casa dos avós, era sempre chuva. Chovia e a gente não podia sair da casa, a avó não deixava ficar nem na varanda. Chovia e o único que eu podia fazer era ler. Ou chovia e eu asmava, arfante e quieta porque eu ainda era criança sem medo neste tempo. (Brincadeiras de Rosa).
(A leitura sempre foi extensão da minha asma.)
Vous comprenez? Est-ce que vous comprenez?
“Tudo o é dito, é dito para alguém.” “O que significa, significa para alguém”. “Mesmo quando falamos sozinhos, falamos para o Outro”. Acho que estamos, mais, falando para a linguagem mesma. Para dribla-la, corrompe-la, menti-la nela mesma ou fazer a verdade atravessá-la (mas nunca fixar-se na linguagem).
Mas será tudo linguagem? Será tudo literatura? Porque eu sei que não é tudo psicanálise.
“Viver é coisa perigosa.”
Perigosa mesmo quando se vive estas pequenas impressões, sugestões sussurradas, leve empurrão direção nenhuma: um certo ângulo, e um olhar pode acontecer. Chego ao trabalho e olho o Setor Comercial à noite, sob a luz amarela dos postes, o cheiro de queimado do prédio da frente, os policiais atravessando a rua, os travestis segurando vistosas sombrinhas contra o chovisco.
Um olhar literário ou cinematográfico, um olhar que pode encontrar alguma beleza ou sublime nestas cenas (o sublime que vai além da beleza, que encontra outra coisa, que pode ser o horror, mas que o prende mais do que aquilo necessariamente belo). O olhar de Proust. Quando ele está acamado e asmático, se alimentando de café, amorosamente cuidado por Celeste Albaret. Quem diria que aqueles grã-finos, a aristocracia perdida ao perceber que dinheiro vale muito mais que espírito, estas pessoinhas que, como nós, viviam sua vida e se tornaram literatura a despeito de si mesmas.
Estou preocupada com estas operações: tornar a linguagem vida (se bem que, cada vez mais, tenho certeza de que linguagem é condição sine qua non para qualquer vida), tornar a vida literatura. Um bom livro não faz mais que isso: escolher as palavras a serem assassinadas ao seu redor, no seu campo magnético. O mesmo faz um bom filme: escolher as imagens que serão transformadas em enigmas.
3 comentários:
Não é tudo psicanálise. Não é tudo literatura. Não é tudo linguagem. É tudo vida e nela, sim, estão a literatura, a psicanálise, a palavra. E o outro. Minúsculo, humano, feito de carne. E por isso ele é tão essencial, e é por isso que, apostando nele, se aposta na literatura, na psicanálise e na linguagem. Se não for assim, é só um exercício intelectual, que nem dói, nem sangra, mas que tampouco vive. Psicanálise de botequim, literatura de almanaque.
E é por isso (e não pela linguagem, ou pelo Outro [Lacan, Proust ou Amós Oz]) que vale a pena o risco de enfrentar os monstros da masmorra. Porque eles estão vivos e nos dão vida e porque só esse outro - assim minúsculo - pode ser companheiro na exploração desses subterrâneos. E também a esse outro faltarão, com frequencia, as palavras. Não importa. Ele não foge de nossos monstros, nos acompanha na jornada pelas masmorras. É para isso que se faz análise - para aprender que é possível mergulhar nesses labirintos acompanhado. Mesmo que frequentemente faltem palavras.
Há mais em JB.
E há mais em seu mail (o.o.morto@gmail.com).
Abraços,
C.
Afinal voltei antes do previsto. Mas lembrei das palavras de um compositor gaúcho, Nei Lisboa, que uma amiga me enviou há algum tempo (não sei onde ele escreveu isso). É sobre um disco seu, mas também sobre o assunto de nossa conversa...
“É de minha sobrinha Camila Maciel (casada com um compositor, o que a torna crítica abalizada!) este comentário que julgo dos mais pertinentes sobre Cena Beatnik: "O tio está menos lírico e mais cru". Quase ao final desse trabalho, cogitei batizá-lo de A utilidade das palavras, a última das letras que escrevi. Mas, ao deixar que o ouvinte decida se elas realmente lhe são úteis, espero que o disco para ele se desenrole como um roteiro de filme ao longo do qual se ilumina a pergunta de aonde se estava indo, afinal. Sendo essas tais palavras dedicadas a queridos brancaleones dos anos 60, não é com os destinos acontecidos e sonhados da época que mais me emociono, mas com a coragem deles de deles duvidar.
Fosse dedicado a Freud (e bem pode estar sendo, agora), não seria para afagar ou sequer discutir a idéia de que ele em tudo tinha razão, mas pela certeza de que a utilizava com compaixão e sem complacência.
À muita crueza me dediquei, sim - inclusive ameaçado por lirismos cruéis! -, ao escrever estas canções. Que seja cru, e vivo de tão cru, é o que espero hoje do pensamento, que ponha o pé na estrada e passeie corajosamente pela vida (como fazem as bicicletas, aos sábados), pedalando ao sabor do vento, dos pneus furados, do desejo e dos bons mecânicos, sob farta esperança de ter com quem dividir paisagens. E até de descobrir que a solidão vivida pode ser reparada, que se pode chegar a festejar um lamento, que se pode tornar cru o que parece malpassado - coisa que sublinha a palavra amor e chuta a pieguice prá escanteio. E que é melhor do que gravar um disco: é descobrir um caminho para o próximo.”
Abraços,
Carlos
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