25.10.06

Brasilia - nonada!

Brasília é uma cidade terrível. Nos meses de calor, me dói do lado de fora – as coisas, as árvores, os bichos, os carros e as ruas parecem suar junto com a gente e reclamar, baixinho, da secura.

Nestes meses chuvosos, me dói do lado de dentro. Dói assim que, indo para o trabalho, eu atravesso o eixão e vejo o céu acinzentado lá no fundo. Como se eu não conseguisse mais me organizar - a obra de Kapoor, no CCBB, chama “Wounds and Absent Objects”, como se eu virasse objeto ausente também, ausência. Desfaz a “nossa pessoa”, como eu ouvi, dia desses, alguém lindamente se referir a si mesmo. Dá uma dormência lá dentro, não nos braços, não nas pernas – mais Guimarães Rosa – lá “nas peles de dentro, no sombrio do corpo, no arranhar dos órgãos”. A chuva anoitece o dia e o tempo do relógio não vale mais para nada. Este, com certeza, não é o mesmo registro que os compromissos, os atrasos, os cálculos, os números. Deve ser, provavelmente, o tempo da morte.

Não demora muito para eu perceber alguma coisa. Acho que já falei disso aqui. A grande Casa da Infância, e do Sonho. Me angustia o céu cinzento da cidade porque, na casa dos avós, era sempre chuva. Chovia e a gente não podia sair da casa, a avó não deixava ficar nem na varanda. Chovia e o único que eu podia fazer era ler. Ou chovia e eu asmava, arfante e quieta porque eu ainda era criança sem medo neste tempo. (Brincadeiras de Rosa).

(A leitura sempre foi extensão da minha asma.)

Vous comprenez? Est-ce que vous comprenez?

“Tudo o é dito, é dito para alguém.” “O que significa, significa para alguém”. “Mesmo quando falamos sozinhos, falamos para o Outro”. Acho que estamos, mais, falando para a linguagem mesma. Para dribla-la, corrompe-la, menti-la nela mesma ou fazer a verdade atravessá-la (mas nunca fixar-se na linguagem).

Mas será tudo linguagem? Será tudo literatura? Porque eu sei que não é tudo psicanálise.

“Viver é coisa perigosa.”

Perigosa mesmo quando se vive estas pequenas impressões, sugestões sussurradas, leve empurrão direção nenhuma: um certo ângulo, e um olhar pode acontecer. Chego ao trabalho e olho o Setor Comercial à noite, sob a luz amarela dos postes, o cheiro de queimado do prédio da frente, os policiais atravessando a rua, os travestis segurando vistosas sombrinhas contra o chovisco.

Um olhar literário ou cinematográfico, um olhar que pode encontrar alguma beleza ou sublime nestas cenas (o sublime que vai além da beleza, que encontra outra coisa, que pode ser o horror, mas que o prende mais do que aquilo necessariamente belo). O olhar de Proust. Quando ele está acamado e asmático, se alimentando de café, amorosamente cuidado por Celeste Albaret. Quem diria que aqueles grã-finos, a aristocracia perdida ao perceber que dinheiro vale muito mais que espírito, estas pessoinhas que, como nós, viviam sua vida e se tornaram literatura a despeito de si mesmas.

Estou preocupada com estas operações: tornar a linguagem vida (se bem que, cada vez mais, tenho certeza de que linguagem é condição sine qua non para qualquer vida), tornar a vida literatura. Um bom livro não faz mais que isso: escolher as palavras a serem assassinadas ao seu redor, no seu campo magnético. O mesmo faz um bom filme: escolher as imagens que serão transformadas em enigmas.

3 comentários:

Anônimo disse...

Não é tudo psicanálise. Não é tudo literatura. Não é tudo linguagem. É tudo vida e nela, sim, estão a literatura, a psicanálise, a palavra. E o outro. Minúsculo, humano, feito de carne. E por isso ele é tão essencial, e é por isso que, apostando nele, se aposta na literatura, na psicanálise e na linguagem. Se não for assim, é só um exercício intelectual, que nem dói, nem sangra, mas que tampouco vive. Psicanálise de botequim, literatura de almanaque.

E é por isso (e não pela linguagem, ou pelo Outro [Lacan, Proust ou Amós Oz]) que vale a pena o risco de enfrentar os monstros da masmorra. Porque eles estão vivos e nos dão vida e porque só esse outro - assim minúsculo - pode ser companheiro na exploração desses subterrâneos. E também a esse outro faltarão, com frequencia, as palavras. Não importa. Ele não foge de nossos monstros, nos acompanha na jornada pelas masmorras. É para isso que se faz análise - para aprender que é possível mergulhar nesses labirintos acompanhado. Mesmo que frequentemente faltem palavras.

Há mais em JB.

Anônimo disse...

E há mais em seu mail (o.o.morto@gmail.com).

Abraços,

C.

Anônimo disse...

Afinal voltei antes do previsto. Mas lembrei das palavras de um compositor gaúcho, Nei Lisboa, que uma amiga me enviou há algum tempo (não sei onde ele escreveu isso). É sobre um disco seu, mas também sobre o assunto de nossa conversa...

“É de minha sobrinha Camila Maciel (casada com um compositor, o que a torna crítica abalizada!) este comentário que julgo dos mais pertinentes sobre Cena Beatnik: "O tio está menos lírico e mais cru". Quase ao final desse trabalho, cogitei batizá-lo de A utilidade das palavras, a última das letras que escrevi. Mas, ao deixar que o ouvinte decida se elas realmente lhe são úteis, espero que o disco para ele se desenrole como um roteiro de filme ao longo do qual se ilumina a pergunta de aonde se estava indo, afinal. Sendo essas tais palavras dedicadas a queridos brancaleones dos anos 60, não é com os destinos acontecidos e sonhados da época que mais me emociono, mas com a coragem deles de deles duvidar.

Fosse dedicado a Freud (e bem pode estar sendo, agora), não seria para afagar ou sequer discutir a idéia de que ele em tudo tinha razão, mas pela certeza de que a utilizava com compaixão e sem complacência.

À muita crueza me dediquei, sim - inclusive ameaçado por lirismos cruéis! -, ao escrever estas canções. Que seja cru, e vivo de tão cru, é o que espero hoje do pensamento, que ponha o pé na estrada e passeie corajosamente pela vida (como fazem as bicicletas, aos sábados), pedalando ao sabor do vento, dos pneus furados, do desejo e dos bons mecânicos, sob farta esperança de ter com quem dividir paisagens. E até de descobrir que a solidão vivida pode ser reparada, que se pode chegar a festejar um lamento, que se pode tornar cru o que parece malpassado - coisa que sublinha a palavra amor e chuta a pieguice prá escanteio. E que é melhor do que gravar um disco: é descobrir um caminho para o próximo.”

Abraços,

Carlos