24.11.06

Sou uma pessoa indignada. Desconfio dos que acreditam que construções do tipo “eu sou assim”, “eu sou uma pessoa assim”, “tenho uma personalidade assim”, “minhas características”, “meu signo no horóscopo chinês” fala algo sobre si mesmo (trair a forma é sempre trair o conteúdo). Mas, a verdade é que sou uma pessoa indignada. Para além dos bons conselhos que eu mesma me dou: fique mais calma, seja mais calma, um passo de cada vez, preocupe-se em mudar apenas aquilo que está ao seu alcance.

A publicidade me indigna. Carros importados, celulares com internet, carros com som MP3, viagens para a praia, casas magníficas. Beira a indecência o estilo de vida alardeado sobre um saldo obsceno: quantas crianças devem morrer por desnutrição para sustentar todo este conforto? depois, somando-se à isso, quantos devem ser os adultos, que conseguiram sobreviver à desnutrição, mas que morrerão de fome? mais quantos milhões devem compor um a massa de miseráveis? quantos farão o conjunto de desempregados definitivos, quantos os desempregados até empregáveis? quantos, desta vez empregados, devem receber não mais que um salário mínimo para sua família? quantos podem receber um salário melhor mas serão impedidos de receberem sua porção de bens simbólicos (ser capaz de ler um bom livro, assistir um bom filme, ouvir uma boa música) – enfim, qual o valor real do seu carro importado, da sua roupa nova, da sua assinatura de televisão a cabo?

A minha classe me envergonha. Os pequenos narcisismos, miseráveis. O morador reclama que o porteiro estava falando com uma empregada doméstica durante seu turno – o mesmo morador que não vê nada de estranho quando ele pára para conversar com uma colega em sua empresa, durante seu horário de trabalho. A ‘empresária’ que diz: “porque eu e o pessoal da periferia, nós somos iguais”, ignorando que, se é preciso anunciar tão solenemente esta semelhança é porque, obviamente, ela não existe. A adolescente pára no sinal com seu carro zero e pergunta, com ar de genuína inocência, apontando para a moça que pede dinheiro: “por que é que ela não vai procurar um emprego? nem que seja de empregada doméstica...” A classe média que se sente injustiçada porque está sustentando, através dos ‘programas assistencialistas’, estas pessoas ‘preguiçosas’, que ‘não querem trabalhar’, que ‘não querem saber do batente’.

Comportamentos de quem toma a diferença de classe como algo intrínseco – se eu tenho dinheiro, eu sou uma pessoa de outro tipo, com outras qualidades. Acreditam em merecimento pessoal, ‘eu mereço estar aqui’, ‘eu mereço esta vida’. Se eu tenho o que tenho, eu sou, obviamente, melhor do que aqueles que não têm – eu aproveitei as oportunidades, tive competência para isso. Ignoram que, no capitalismo, é a mão do acaso que ronda, é a regra da substituição: pode ser você, mas poderia ser qualquer outro, o seu emprego não é seu, é do seu patrão, e ele vai tirá-lo quando quiser, sem lhe dar nenhuma satisfação (diz um dos ‘meninos do tráfico’ que parece ter entendido isto bem mais rápido: ‘se eu morrer, nasce outro’). A justiça não estará do seu lado, ela está dos que têm ainda mais do que você e sempre tem alguém assim (disso eu falo de muito perto, mas basta pensar no que está acontecendo agora com Emir Sader). O seu lucro não é seu, é do sistema, o seu lucro nunca é alto o suficiente para comprar a sua segurança num país onde a luta de classes já virou guerra de classes e só a classe média finge não ver (penso na a ex-cunhada do empresário Gerdau, novo ministeriável do governo Lula, que foi morta no sinal há alguns dias).

Eu fico indignada comigo mesma. Com a minha profissão, tão necessária, mas, ao mesmo tempo, tão aquém das urgências do mundo. Já dizia o velho Freud: não podemos almejar mais do que tornar a miséria neurótica uma infelicidade ordinária. Minhas hesitações me angustiam: o que eu posso fazer? como eu posso fazer? qual o preço a ser pago? A burocracia partidária me deprime; o autoritarismo das militâncias me aflige e afasta; o vocabulário dos políticos é cheio de falsidades; e todo voluntariado tem uma face imperialista (eu ajudo você do meu jeito). Harold Bloom diz que Shakespeare construiu o humano e, mesmo que não concorde com ele, não há dá para não pensar na poderosa marca da hesitação hamletiana. A questão fica: qual o meu, o seu, o nosso preço em cadáveres? Quantas mortes pagam os nossos privilégios?

2 comentários:

Anônimo disse...

mas que chique. indignações sociais batidas com referências intelectuais.
só faltou uma cereja no topo.

Ana Janaina disse...

???