Por um erro de cálculo – eu deveria ir falar sobre ‘feminilidade’ na psicanálise – fui parar numa reunião de jovens alunos de Ciências Sociais onde pipocavam militâncias: contra o racismo, contra a homofobia, contra o machismo, assim mesmo, tudo num pacote só.
Não sei o que me acontece, mas a sensação estar perdendo tempo me corrói por dentro, é como estar perdendo tempo da vida, perdendo um precioso tempo para a morte, eu posso sentir os minutos despencando num abismo, caindo do meu corpo junto com o suor para nunca mais. Esta sensação me deixa irritadiça e impaciente – um traço obsessivo, claro, que entrará para a lista “50 temas para se trabalhar em análise antes de morrer”. Enfim, foi esta corrosiva sensação de absoluta perda do tempo que me acertava enquanto eu ouvia os clichês (exemplos pessoais, ‘porque no meu prédio’, ‘porque na minha escola, na minha família’) até as propostas de censura de sempre. Claro que, antes do final da reunião, dei minha opinião criando aquela já conhecida sensação de constrangimento e desconcerto entre os participantes da reunião. (Eu fui uma adolescente ‘do contra’).
Retomo aqui os pontos da minha argumentação.
Primeiro, não acredito em nenhum movimento contra a homofobia que não faça também uma análise profunda de como opera a militância gay. Como também não acredito em nenhum destes movimentos que não se alie a uma luta contra o capitalismo, senão, teremos uma solução estadunidense para nossos conflitos: você pode ser gay, desde que seja um bom consumidor. Se não for assim, apenas trocamos uma identidade heterossexual – coercitiva, controladora dos corpos e seus desejos, ditatorial – por uma identidade homossexual, que opera pelos mesmos princípios: o que vestir, para onde ir, como falar, o que desejar, como realizar os desejos. Dentro dos grupos homossexuais, opera também a vigilância, opera também uma construção rígida de identidades, assim como preconceitos (que vão direto naqueles que contrariam a norma dentro da dissidência da norma: as moças masculinizadas, os rapazes efeminados – e que são, na minha humilde opinião, gentes muito mais interessantes). Ora, nunca me esquecerei quando uma professora aqui da UnB, da História, Tânia Navarro, ligada ao movimento feminista, desconstruiu o conceito de lesbianismo numa palestra: quando uma mulher é lésbica? quando tem relações sexuais com outras mulheres? quantas vezes? uma vez? dez vezes? cento e vinte e sete? ou quando tem sentimentos e afetos por outras mulheres? isso deve ser exclusivo em relação às mulheres? Se vamos discutir a heteronormatividade, o conceito de identidade não pode ficar resguardado, não pode ficar a salvo: por que precisamos tanto de uma identidade? por que, para fugir de uma identidade rígida, construímos outra quase tão rígida quanto a primeira? qual é a função da identidade para o sujeito, para sua economia psíquica, para sua movimentação social? não somos capazes de ficar um tantinho à deriva, não somos capazes de abraçar nossa errância, deixando que o novo surja?
Como psicóloga e acreditando na psicanálise, não deixo de sentir que o movimento gay acabou alimentando uma visão simplória da sexualidade, que já estava aí antes, claro. De repente, a grande questão da sexualidade se tornou: em qual caixinha você entra? A caixinha ‘homo’, a caixinha ‘hetero’ ou a caixinha ‘bi’ (talvez os bissexuais sejam os únicos a não terem uma caixinha assim tão fechadinha quanto as outras, mas, enfim, não deixa de ser uma caixinha). Ora, a sexualidade é exatamente aquilo que põe o sujeito em questão, que é incontrolável, contraditória, enigmática, sofrida, desgovernada. Estamos falamos de um corpo pulsional, que estes nomes vão tentar tranqüilizar. E, do lado da história, pensar a sexualidade não como atividade mas como constitutivo de uma identidade é coisa bem recente (Foucault, “A Historia da Sexualidade I”).
Segundo, por mais que os movimentos feministas, gays e negros tenham travado uma necessária e importante luta e conquistado muita coisa nestes últimos tempos, é preciso lembrar que, a longo prazo, as políticas de diferença apontam para uma segregação social. Como assim?
Devemos lembrar que o argumento da diferença é, historicamente, um argumento da direita: ‘nós, aristocratas, somos diferentes de vocês, povão’. Bem ou mal, a argumentação de esquerda, especialmente com o marxismo, sempre foi uma argumentação de unificação: somos todos igualmente vitimados pelo capitalismo, eu, você, os brancos, os negros, as mulheres, os homens, o dono da fábrica, o gerente do banco, o presidente da empresa. Mesmo o movimento feminista não sustentou esta demanda por mais e mais diferença: nos anos 70, as mulheres negras se separam do movimento feminista e criam o movimento ‘womanist’. Não conheço, mas não duvidaria de um movimento para mulheres negras e homossexuais. Círculos de proteção não deixam de ser círculos de exclusão. O que eu tenho visto é que a eleição de uma diferença (o sexo, a sexualidade, a cor da pele) não tem nos ensinado a dialogar melhor com a diferença do outro. Saindo da zona de votação, no 1 de outubro, encontrei uma amiga que disse ter feito questão de votar apenas em mulheres: citou sua deputada federal, a distrital, a candidata a governadora, uma certa tristeza por não termos uma candidata ao senado, e, por fim, sua candidata a presidência, Heloisa Helena. Bom, esta é exatamente a candidata que é contra o aborto (todos são, mas cadê a simpatia que ela deveria ter pelas mulheres por ser, exatamente, mulher?), que é homofóbica (em Alagoas, HH chegou a abrir um processo contra uma concorrente por ‘conduta sexual atípica’, em outras palavras, porque sua concorrente era gay) e, mais, esta é a candidata cujo vocabulário político mais ecoa o grande mestre da direita, ACM: quem discorda dela é ‘canalhada’, ‘empregadinho’, 'vagabundo', ela sobe na tribuna para ameaçar fisicamente o presidente da república junto com ACMzinho. Ou seja, num desserviço à democracia, Heloisa Helena quis provar que política é coisa pessoalista, de ressentimento pessoal. Não acho que uma mulher deva perder um cargo por ser mulher, mas não acho que ela deve merecer um cargo apenas por ser mulher.
Fica me parecendo que estes movimentos pavimentam um caminho que toma a subjetividade como simplória, como possível de equacionar: se eu sou mulher, eu sou assim; se eu sou gay, eu já sou assim; se sou negra, vou ser, necessariamente, assim. As possibilidades de criação de novos afetos, novas formas de relação, de novos espaços, de novas formas de diálogo vão diminuindo, sustentada por moralismos e controles. Quando vamos perceber que a subjetividade é um processo que vai além disso? Que os atos são, sempre, multideterminados? Será que vamos esquecer as lições da psicanálise, o sujeito cindido, o sujeito do inconsciente, o sujeito que se desconhece para acreditar em equações lineares?
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