3.11.06

palavra-imagem + afeto = LINGUAGEM?



1. Na obra de Roussel, há imagens construídas através do ‘procedimento’, em obras como Impressions d’Afrique e Locus Solus. São imagens ‘incompletas’, por assim dizer, imagens ‘inimagináveis’, onde o corpo se faz máquina e mecanismo, onde a imaginação fica exausta tentando figurar os detalhes de cenas históricas dentro de uma uva ainda não madura, ou tentando visualizar o movimento dos olhos da cabeça decepada de Danton quando as cavidades oculares estão vazias. São imagens fraturadas, por assim dizer, imagens que negativizam o próprio poder da imagem, que valem mais pelo que nelas faltam do que pelo que nelas há.

2. De onde vem o poder da imagem de fixar-se, de prender um sujeito em suas malhas, algo que a palavra não consegue realizar? Afinal, uma análise não passa sempre por uma libertar-se de imagens através de palavras? O trajeto da psicanálise, diz Pontalis, parte exatamente deste abandonar da imagem para buscar a palavra: do fascínio do sonho para o relato do sonho, da hipnose que fazia reviver a cena para a pulsão de morte (impossível de figurar): “A atração do recalcado está no mesmo barco que a atração do visual”, ou seja, sob o sonho e sob o sintoma, a insistência de uma cena infantil. Hervé Huot dirá, pensando nas pesquisas que Freud faz com a cocaína, vai dizer que ele sofreu uma – necessária – anestesia do olho.

3. Então... o que é que torna a imagem tão poderosa para o sujeito que ele precisa libertar-se dela? Há um reasseguramento da posição de sujeito? Nas imagens da narrativa da fantasia, o sujeito se incluiu; o quadro renascentista cria um sujeito cartesiano por conta de sua perspectiva, e há o ‘sujeito-que-olha-e-é-olhado’ dos incômodos objetos da arte contemporânea. É neste sofrimento (e gozo) de assujeitado, de sujeito, que se encontra o fascínio da imagem? Coisa que as palavras não conseguem reproduzir, coisas que as palavras apenas arremedam (eu falo, eu falo, eu estou falando, eu estou dizendo, sou eu quem diz, ouça o que eu digo... - uma insistente e ineficaz auto-afirmação). Estou pensando sempre que as palavras, como fala Foucault, Pontalis e outros, são vazias, são ocas, tentam estabelecer uma relação tão poderosa com o objeto aludido, mas esta relação é falsa. Aí, a cada vez, que o sujeito tenta afirmar-se pela linguagem, isto é denunciado.

4. A passagem entre as lembranças de Freud (“Lembrança Encobridora”) se dá através de palavras. Se o desejo se revela através de uma marca imagética (o amarelo das flores e do vestido), há ‘fio do desejo’ porque as palavras estavam ali para tecê-lo, para fazer as marcas de imagem deslizarem, associarem-se entre si e compor este fio. Mas não é possível excluir uma coisa da outra: nem as imagens que deram iniciam ao processo, nem as palavras que o colocaram em movimento. Então, palavra e imagem estão sob o regime da linguagem?

5. Quando penso 'palavra-imagem-afeto' e 'linguagem', não quero dizer que haja uma regra tão clara quanto a gramática coordenando os caminhos da imagem no inconsciente. Mas quero dizer, tomando a definição mais abrangente possível da linguagem e a mais reduzida também, que a imagem não cai no vazio, que ela vai se associar a alguma coisa, que vai criar relações e que estas relações são, como tudo o mais, relações de linguagem: associações, disseminações, metaforizações, etc… (No inconsciente, para se criar tanto o registro da representação-coisa como o registro da representação-palavra, é preciso que a linguagem esteja ali, antes, prévia, coordenando estas relações).

6. Na fala do analisando, no inconsciente do sujeito, trata-se, absolutamente, de linguagem. Tudo o que ele traz, seja uma imagem, seja uma palavra, seja um fonema, tudo se encontra articulado como linguagem. As imagens do sonho são articuladas em operações de linguagem, os limites entre objeto psíquico e palavra são nebulosos, um precisa do outro para acontecer. Agora, a obra de arte, fora do sujeito, acontecida, esta é objeto sem imagem ou imagem fora da linguagem. Apenas nos grandes, é claro: Mallarmé ao escrever ‘o odor da flor que não existe num buquê’, Joyce no Finnegas, alguns momentos mínimos de Guimarães Rosa. (Porque Guimarães utiliza a linguagem para conformar - dar forma e sustentação - à vida, juntando a beleza da linguagem ao dolorido da vida, ou o contrário: a dor da linguagem ao vivo da vida. Mallarmé e Joyce querem a vida irrompendo dentro da linguagem e dilacerando a linguagem por dentro, tornando impossível o processo de significação). Aí, o objeto é em si mesmo, ele não se refere a nada, ele não está associado a nada – quando vista pelo sujeito, este objeto realiza um choque porque faz referência a um mundo anterior, em que ainda não vivíamos na (da-para-pela) linguagem, até que a imagem do objeto seja tragada para dentro da linguagem novamente e faça marcas no inconsciente, mas só aí. O grande trunfo do artista é este sortir, é conseguir realizar algo que se coloque fora, fora das articulações prévias, um objeto em si, fora do mundo da linguagem e dentro do mundo das coisas.

Um comentário:

Anônimo disse...

esfinge: eis que finjo
a linguagem dentro e
para a linguagem. ex-
finge, língua além
do objeto aquém.

sortir de sorteio
- ou soslaio -
não há trunfo na
arte, há êxtase
de palavra: vivência
de objetos em sig-
no.

piero