26.11.06

"Um certo desencanto e a consegüinte lucidez cética"

"As aparências enganam, mas é o mais sólido que existe. A aparência é a realidade, e ir além dela implica num esforço que quase ninguém precisa fazer, que quase sempre leva a evidências piores que as aparências substituídas. Sei disso por experiência própria. Durante aqueles anos em que quis ou julguei ser dono da verdade fundamental da vida e da História, descobri que cada uma das minhas viagens exploratórias conduzia a pontos originários de maldades fundamentais, e todas elas a uma maldade essencial e original, a crueldade de viver. Não há vida sem crueldade e não há História sem crueldade. Eu estava deslumbrando com a proposta de mudar a vida, como pedia Rimbaud, e de mudar a História, como pedia Marx, entre outros, e afinal minha viagem intelectual e culta descobria o motor incessante de crueldade que legitima tanto uma como a outra. O melhor é se conformar com a aparência da realidade e escolher suas facetas mais prazerosas e bonitas. Já é suficiente o nosso inferno íntimo, essas areias movediças internas em que nossos remorsos e as inseguranças engolem nossa própria entidade. Se fosse possível extirpar a capacidade de olhar para dentro de si mesmo!..."

"Quarteto", Manuel Vázquez Montalbán

Altruísmo Norte-Americano III

"A única segurança é a legitimidade aparente."
John Le Carré

24.11.06

Road to Guantanamo, O Prisioneiro da Grade de Ferro

A tecnologia da crueldade...

... o terror asseptico...

... e o Brasil.

Sou uma pessoa indignada. Desconfio dos que acreditam que construções do tipo “eu sou assim”, “eu sou uma pessoa assim”, “tenho uma personalidade assim”, “minhas características”, “meu signo no horóscopo chinês” fala algo sobre si mesmo (trair a forma é sempre trair o conteúdo). Mas, a verdade é que sou uma pessoa indignada. Para além dos bons conselhos que eu mesma me dou: fique mais calma, seja mais calma, um passo de cada vez, preocupe-se em mudar apenas aquilo que está ao seu alcance.

A publicidade me indigna. Carros importados, celulares com internet, carros com som MP3, viagens para a praia, casas magníficas. Beira a indecência o estilo de vida alardeado sobre um saldo obsceno: quantas crianças devem morrer por desnutrição para sustentar todo este conforto? depois, somando-se à isso, quantos devem ser os adultos, que conseguiram sobreviver à desnutrição, mas que morrerão de fome? mais quantos milhões devem compor um a massa de miseráveis? quantos farão o conjunto de desempregados definitivos, quantos os desempregados até empregáveis? quantos, desta vez empregados, devem receber não mais que um salário mínimo para sua família? quantos podem receber um salário melhor mas serão impedidos de receberem sua porção de bens simbólicos (ser capaz de ler um bom livro, assistir um bom filme, ouvir uma boa música) – enfim, qual o valor real do seu carro importado, da sua roupa nova, da sua assinatura de televisão a cabo?

A minha classe me envergonha. Os pequenos narcisismos, miseráveis. O morador reclama que o porteiro estava falando com uma empregada doméstica durante seu turno – o mesmo morador que não vê nada de estranho quando ele pára para conversar com uma colega em sua empresa, durante seu horário de trabalho. A ‘empresária’ que diz: “porque eu e o pessoal da periferia, nós somos iguais”, ignorando que, se é preciso anunciar tão solenemente esta semelhança é porque, obviamente, ela não existe. A adolescente pára no sinal com seu carro zero e pergunta, com ar de genuína inocência, apontando para a moça que pede dinheiro: “por que é que ela não vai procurar um emprego? nem que seja de empregada doméstica...” A classe média que se sente injustiçada porque está sustentando, através dos ‘programas assistencialistas’, estas pessoas ‘preguiçosas’, que ‘não querem trabalhar’, que ‘não querem saber do batente’.

Comportamentos de quem toma a diferença de classe como algo intrínseco – se eu tenho dinheiro, eu sou uma pessoa de outro tipo, com outras qualidades. Acreditam em merecimento pessoal, ‘eu mereço estar aqui’, ‘eu mereço esta vida’. Se eu tenho o que tenho, eu sou, obviamente, melhor do que aqueles que não têm – eu aproveitei as oportunidades, tive competência para isso. Ignoram que, no capitalismo, é a mão do acaso que ronda, é a regra da substituição: pode ser você, mas poderia ser qualquer outro, o seu emprego não é seu, é do seu patrão, e ele vai tirá-lo quando quiser, sem lhe dar nenhuma satisfação (diz um dos ‘meninos do tráfico’ que parece ter entendido isto bem mais rápido: ‘se eu morrer, nasce outro’). A justiça não estará do seu lado, ela está dos que têm ainda mais do que você e sempre tem alguém assim (disso eu falo de muito perto, mas basta pensar no que está acontecendo agora com Emir Sader). O seu lucro não é seu, é do sistema, o seu lucro nunca é alto o suficiente para comprar a sua segurança num país onde a luta de classes já virou guerra de classes e só a classe média finge não ver (penso na a ex-cunhada do empresário Gerdau, novo ministeriável do governo Lula, que foi morta no sinal há alguns dias).

Eu fico indignada comigo mesma. Com a minha profissão, tão necessária, mas, ao mesmo tempo, tão aquém das urgências do mundo. Já dizia o velho Freud: não podemos almejar mais do que tornar a miséria neurótica uma infelicidade ordinária. Minhas hesitações me angustiam: o que eu posso fazer? como eu posso fazer? qual o preço a ser pago? A burocracia partidária me deprime; o autoritarismo das militâncias me aflige e afasta; o vocabulário dos políticos é cheio de falsidades; e todo voluntariado tem uma face imperialista (eu ajudo você do meu jeito). Harold Bloom diz que Shakespeare construiu o humano e, mesmo que não concorde com ele, não há dá para não pensar na poderosa marca da hesitação hamletiana. A questão fica: qual o meu, o seu, o nosso preço em cadáveres? Quantas mortes pagam os nossos privilégios?

21.11.06

Mãe Palestina. Ataque de Israel. 9 de novembro de 2006.

Ego Schiele. Mutter mit zwei Kindern (Die Mutter). 1915-1917.

20.11.06

Entrevista de Ivana Jinkings à Carta Maior

Para a editora da revista Margem Esquerda e da Boitempo Editorial, Ivana Jinkings, o processo envolvendo Emir Sader não é um caso isolado e indica que está em curso uma campanha contra toda a esquerda. Em entrevista à Carta Maior, ela rebate críticas e acusações publicadas na Folha de S.Paulo e comenta o número crescente de ataques a intelectuais de esquerda. "A campanha é contra toda a esquerda e o que representamos. Por isso devemos ficar alertas", defende Jinkings.

Carta Maior: A Sra. foi mencionada num artigo na Folha de S. Paulo, a propósito do processo do Senador Bornhausen contra o Professor Emir Sader. O que a sra. tem a dizer sobre isso?
Ivana Jinkings: O que o colunista fez contraria todas as regras do bom jornalismo, inclusive as do manual de redação do seu (dele) jornal. Nosso manifesto não é contra a ação movida pelo Bornhausen. É contra a sentença do juiz, que menciona prisão e perda de cargo de professor da UERJ. É a segunda vez, no espaço de uma semana, que esse jornalista se dedica ao assunto. Com virulência espantosa, ódio. Primeiro, tentando desqualificar Emir Sader como o intelectual "zero à esquerda". Usando o nome de um livro de um intelectual da esquerda, Paulo Arantes, e pretensamente defendendo outro intelectual da esquerda, Chico de Oliveira, o que os conservadores pretendem é fragmentar, sempre e cada vez mais, a esquerda. Não reconheço nesse obscuro jornalista credenciais ou idoneidade para julgar currículos e estatura intelectual de quem quer que seja. Mas é certo que temos projetos que nos distinguem. Eles usam tudo o que podem para atacar os que resistem, enquanto nós abrimos espaço para a conscientização popular, seguindo princípios historicamente construídos.Em sua coluna, ele mencionou meu nome e o da Boitempo, sem que qualquer repórter tenha se dado ao trabalho de me ouvir. Um jornal que se pretende sério não faria isso. O jornalista usou um espaço nobre, abusou da posição e do cargo que ocupa (autorizado por seu patrão, certamente) para publicar uma denúncia de surpresa. Faz graves e levianas acusações, assumindo uma versão como fato, tomando uma posição no processo que ainda não foi concluído. Isso é não apenas mau jornalismo, mas configura um crime, salvo engano.

CM: Como a sra. analisa a repercussão desse processo do senador Bornhausen contra o professor Emir na presente conjuntura, com um manifesto com mais de 15 mil assinaturas?
IJ: As milhares de assinaturas, vindas de todos os continentes, falam por si. O mencionado colunista escreve também que o manifesto que lançamos é "hipócrita". Não que os interesse, ou faça diferença: mas dissidentes cubanos não foram executados por se expressarem, mas por seqüestrarem um barco. Pena de morte é abominável, mas não apenas em Cuba, deveria ser também abominável nos Estados Unidos. Seriam então hipócritas os quase 20 mil que assinaram o manifesto, entre eles Antonio Candido, Luiz Fernando Verissimo, Chico Buarque, Eduardo Galeano, Frei Betto, Perry Anderson, István Mészáros, Roberto Schwarz, Chico de Oliveira (para quem, aliás, não fizemos um desagravo no caso Delúbio Soares pelo simples fato de que o Chico não foi condenado), Paulo Arantes, Oscar Niemeyer, Ferreira Gullar, Augusto Boal, Tom Zé, Fernando Morais e tantos mais? Quem vai nos ensinar a pensar a partir de agora é a Folha de S.Paulo, talvez numa dobradinha com sua musa inspiradora, a revista Veja?

CM: Faz algum tempo têm surgido várias manifestações na imprensa criticando os intelectuais, ora o que é interpretado como seu "silêncio", ora o que é criticado como uma forma de "adesismo" a-crítico à reeleição de Lula. Como a sra. analisa essa tendência?
IJ: Talvez essa cruzada - personificada agora no Emir - não seja especialmente contra ele, ou contra o manifesto em sua solidariedade. O que incomoda a direita e seus porta-vozes é perceber que ainda existimos nós, os que resistem. Veja o tratamento desrespeitoso e truculento dado a Saramago, no mesmo jornal. Veja como foram tratados recentemente Marilena Chauí e outros que ousaram defender o governo Lula. A campanha é contra toda a esquerda e o que representamos. Por isso devemos ficar alertas.

Do blog Contrapauta

Oportunidade para moralizar a imprensa pode morrer no Senado

Manifeste sua opinião sobre a mudança da Lei de Imprensa que exige que alvos de denúncias sejam ouvidos antes da publicação

O leitor M. Iack chama a atenção para a convocação de um dos paus-mandados da revista Veja para inundar a caixa postal dos senadores contra o projeto de lei que combate a delinqüência editorial.

O projeto apresenta como justificativa a necessidade de “disciplinar a divulgação de informações lesivas à dignidade da pessoa humana”, e insere duas exigências na Lei de Imprensa:

“I - proceder à criteriosa investigação de sua veracidade, bem como da autenticidade dos documentos que porventura lhes sirvam de base;

II - levá-la ao conhecimento daqueles a quem ela se refira, dando oportunidade de manifestação, em tempo hábil antes de sua veiculação.”

O senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), dono de emissoras de rádio na Paraíba, pediu vistas ao processo e apresentou parecer contrário. A matéria precisa ser votada pela Comissão de Educação do Senado para ir à votação do plenário.

Íntegra do projeto em tramitação no Senado

e-mail do senador Antônio Carlos Valadares

e-mail da Secretaria-Geral da Mesa do Senado

Para defender o projeto, escreva no campo assunto do e-mail: “A favor da votação em plenário da PLS 00257/2005″

No campo reservado à mensagem, escreva seu nome, número de RG e órgão expedidor.

19.11.06

Dissertando...

Altruísmo Norte-Americano II

"Benevolente e brutal, sagaz e quixotesco, poderoso e inseguro, Carnegie era um homem de imensas convicções e contradições. Como escreve Nasaw em 'Andrew Carnegie' (Penguin), ele se tornou “mais implacável na busca de lucros quando decidiu que aqueles lucros deveriam ser distribuídos enquanto estivesse vivo”. Carnegie esmagou os sindicatos ainda com mais violência, baixou os salários e aumentou a carga horária dos trabalhadores siderúrgicos de oito para 12 horas diárias. Este literalmente foi o preço das bibliotecas públicas (2.800), bolsas de estudo, fundos para pesquisas, museus e salas de concerto (como o Carnegie Hall) que pipocaram graças à generosidade do magnata."

link: http://www.estado.com.br/editorias/2006/11/19/cad-1.93.2.20061119.18.1.xml

15.11.06

Maybe i've forgotten the name and the address...

Vimos o show do New Order no fim de semana passado. Devo admitir que, para uma moça provinciana como eu, o mundo ficou um tantinho menor depois de ouvir ‘Bizarre Love Triangle’ e, mais, ‘Love will tear us apart again’ ao vivo, cantadas pelos mesmos que as escreveram tantos anos atrás.

Mas, é claro, que não foi uma atitude lá muito rock and roll o vocalista usar uma camisa pólo preta durante a show. Ele me passou a impressão, muitas vezes, de um velhinho encolhido e meio alcoolizado. Será que o rock and roll pode envelhecer? Vai ver que era por isso que Elvis usava aquelas roupas ridículas nos anos 70, vai ver que é por isso que Mick Jagger continua se contorcendo todo ainda hoje: para desviar a atenção, para a gente não perceber.

O contrário do Bob Dylan, por exemplo, que faz da velhice um paroxismo, uma potencialização de sua música, de sua personalidade, aquelas longas rugas, aquele rosto dele parecendo que vai derreter num instante.

Eu e os 'ismos'

Por um erro de cálculo – eu deveria ir falar sobre ‘feminilidade’ na psicanálise – fui parar numa reunião de jovens alunos de Ciências Sociais onde pipocavam militâncias: contra o racismo, contra a homofobia, contra o machismo, assim mesmo, tudo num pacote só.

Não sei o que me acontece, mas a sensação estar perdendo tempo me corrói por dentro, é como estar perdendo tempo da vida, perdendo um precioso tempo para a morte, eu posso sentir os minutos despencando num abismo, caindo do meu corpo junto com o suor para nunca mais. Esta sensação me deixa irritadiça e impaciente – um traço obsessivo, claro, que entrará para a lista “50 temas para se trabalhar em análise antes de morrer”. Enfim, foi esta corrosiva sensação de absoluta perda do tempo que me acertava enquanto eu ouvia os clichês (exemplos pessoais, ‘porque no meu prédio’, ‘porque na minha escola, na minha família’) até as propostas de censura de sempre. Claro que, antes do final da reunião, dei minha opinião criando aquela já conhecida sensação de constrangimento e desconcerto entre os participantes da reunião. (Eu fui uma adolescente ‘do contra’).

Retomo aqui os pontos da minha argumentação.

Primeiro, não acredito em nenhum movimento contra a homofobia que não faça também uma análise profunda de como opera a militância gay. Como também não acredito em nenhum destes movimentos que não se alie a uma luta contra o capitalismo, senão, teremos uma solução estadunidense para nossos conflitos: você pode ser gay, desde que seja um bom consumidor. Se não for assim, apenas trocamos uma identidade heterossexual – coercitiva, controladora dos corpos e seus desejos, ditatorial – por uma identidade homossexual, que opera pelos mesmos princípios: o que vestir, para onde ir, como falar, o que desejar, como realizar os desejos. Dentro dos grupos homossexuais, opera também a vigilância, opera também uma construção rígida de identidades, assim como preconceitos (que vão direto naqueles que contrariam a norma dentro da dissidência da norma: as moças masculinizadas, os rapazes efeminados – e que são, na minha humilde opinião, gentes muito mais interessantes). Ora, nunca me esquecerei quando uma professora aqui da UnB, da História, Tânia Navarro, ligada ao movimento feminista, desconstruiu o conceito de lesbianismo numa palestra: quando uma mulher é lésbica? quando tem relações sexuais com outras mulheres? quantas vezes? uma vez? dez vezes? cento e vinte e sete? ou quando tem sentimentos e afetos por outras mulheres? isso deve ser exclusivo em relação às mulheres? Se vamos discutir a heteronormatividade, o conceito de identidade não pode ficar resguardado, não pode ficar a salvo: por que precisamos tanto de uma identidade? por que, para fugir de uma identidade rígida, construímos outra quase tão rígida quanto a primeira? qual é a função da identidade para o sujeito, para sua economia psíquica, para sua movimentação social? não somos capazes de ficar um tantinho à deriva, não somos capazes de abraçar nossa errância, deixando que o novo surja?

Como psicóloga e acreditando na psicanálise, não deixo de sentir que o movimento gay acabou alimentando uma visão simplória da sexualidade, que já estava aí antes, claro. De repente, a grande questão da sexualidade se tornou: em qual caixinha você entra? A caixinha ‘homo’, a caixinha ‘hetero’ ou a caixinha ‘bi’ (talvez os bissexuais sejam os únicos a não terem uma caixinha assim tão fechadinha quanto as outras, mas, enfim, não deixa de ser uma caixinha). Ora, a sexualidade é exatamente aquilo que põe o sujeito em questão, que é incontrolável, contraditória, enigmática, sofrida, desgovernada. Estamos falamos de um corpo pulsional, que estes nomes vão tentar tranqüilizar. E, do lado da história, pensar a sexualidade não como atividade mas como constitutivo de uma identidade é coisa bem recente (Foucault, “A Historia da Sexualidade I”).

Segundo, por mais que os movimentos feministas, gays e negros tenham travado uma necessária e importante luta e conquistado muita coisa nestes últimos tempos, é preciso lembrar que, a longo prazo, as políticas de diferença apontam para uma segregação social. Como assim?

Devemos lembrar que o argumento da diferença é, historicamente, um argumento da direita: ‘nós, aristocratas, somos diferentes de vocês, povão’. Bem ou mal, a argumentação de esquerda, especialmente com o marxismo, sempre foi uma argumentação de unificação: somos todos igualmente vitimados pelo capitalismo, eu, você, os brancos, os negros, as mulheres, os homens, o dono da fábrica, o gerente do banco, o presidente da empresa. Mesmo o movimento feminista não sustentou esta demanda por mais e mais diferença: nos anos 70, as mulheres negras se separam do movimento feminista e criam o movimento ‘womanist’. Não conheço, mas não duvidaria de um movimento para mulheres negras e homossexuais. Círculos de proteção não deixam de ser círculos de exclusão. O que eu tenho visto é que a eleição de uma diferença (o sexo, a sexualidade, a cor da pele) não tem nos ensinado a dialogar melhor com a diferença do outro. Saindo da zona de votação, no 1 de outubro, encontrei uma amiga que disse ter feito questão de votar apenas em mulheres: citou sua deputada federal, a distrital, a candidata a governadora, uma certa tristeza por não termos uma candidata ao senado, e, por fim, sua candidata a presidência, Heloisa Helena. Bom, esta é exatamente a candidata que é contra o aborto (todos são, mas cadê a simpatia que ela deveria ter pelas mulheres por ser, exatamente, mulher?), que é homofóbica (em Alagoas, HH chegou a abrir um processo contra uma concorrente por ‘conduta sexual atípica’, em outras palavras, porque sua concorrente era gay) e, mais, esta é a candidata cujo vocabulário político mais ecoa o grande mestre da direita, ACM: quem discorda dela é ‘canalhada’, ‘empregadinho’, 'vagabundo', ela sobe na tribuna para ameaçar fisicamente o presidente da república junto com ACMzinho. Ou seja, num desserviço à democracia, Heloisa Helena quis provar que política é coisa pessoalista, de ressentimento pessoal. Não acho que uma mulher deva perder um cargo por ser mulher, mas não acho que ela deve merecer um cargo apenas por ser mulher.

Fica me parecendo que estes movimentos pavimentam um caminho que toma a subjetividade como simplória, como possível de equacionar: se eu sou mulher, eu sou assim; se eu sou gay, eu já sou assim; se sou negra, vou ser, necessariamente, assim. As possibilidades de criação de novos afetos, novas formas de relação, de novos espaços, de novas formas de diálogo vão diminuindo, sustentada por moralismos e controles. Quando vamos perceber que a subjetividade é um processo que vai além disso? Que os atos são, sempre, multideterminados? Será que vamos esquecer as lições da psicanálise, o sujeito cindido, o sujeito do inconsciente, o sujeito que se desconhece para acreditar em equações lineares?

9.11.06

justiça tardia = justiça falha

Do JB-Online (http://jbonline.terra.com.br):

São Paulo. O Brasil esperou ontem para assistir pela primeira vez um acusado de tortura sentar nos bancos dos réus. Mas o fato histórico não se concretizou porque o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra não compareceu à audiência no Forum do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O coronel, conhecido como comandante Tibiriça, é acusado de tortura pela família Teles. Maria Amélia de Almeida Teles move a ação no Juizado Civil, porque a Lei da Anistia impede ações criminais. Ela quer provar que a família - Maria, César, Criméia Almeida e os filhos Janaína e Edson, com 5 e 4 anos à época que Ustra comandava o Doi-Codi - foi torturada à mando do coronel na década de 70.

Ontem, mesmo com a ausência de Ustra, o juiz Gustavo Santini Teodoro deu sequência ao processo e ouviu o depoimento de cinco testemunhas de acusação. As de defesa se pronunciaram por cartas, pois não moram em São Paulo. A assessoria de imprensa do TJ de São Paulo informou que o juiz não marcará nova audiência com a presença de Ustra, porque a família Teles não solicitou depoimento pessoal do coronel.

A família Teles também não pediu prisão ou indenização do ex-comandante do Doi-Codi. Os autores da ação querem que o julgamento tenha significado político. Maria Amélia sofreu perseguição durante o período da ditadura por fazer parte do Partido Comunista. Passou 10 meses na prisão. Os filhos, crianças à época, passaram alguns dias no DOI-Codi até o governo encaminhá-los à família em Minas Gerais.

De acordo com o juiz que cuida do caso, depois do depoimento das testemunhas, a ação entra na fase das alegações finais, seguida da sentença. O ex-comandante do Doi-Codi entrou com recurso pedindo a extinção do processo.

Uster é um personagem polêmico do período de chumbo que o Brasil atravessou do golpe militar de 1964 até o início da década de 80. Comandou o Doi-Codi, principal instância de repressão, mas não se envergonha da suspensão dos direitos democráticos. Ajudou, até mesmo, a fundar um grupo de discussão que encontra no combate aos ideais comunistas argumentos para a tomada do Estado brasileiro com mão de ferro. O site Terrorismo nunca mais hospeda artigos em defesa da atuação dos militares e se contrapõe à ONG Tortura nunca mais.

Altruísmo Americano

Estava lendo "A interpretação dos Sonhos" ontem à noite (começou o turno noturno, 22h-1h30, da dissertação). É um livro maravilhoso, mas é cansativo ler assim, de cabo a rabo, de uma vez só. E achei uma surpreendente nota de rodapé, adicionada em 1911 (a publicação do livro é de 1899-1900). Ei-la:

"Quando Ernest Jones fazia uma conferência científica sobre o egoísmo dos sonhos perante uma platéia norte-americana, uma senhora instruída se opôs a essa generalização não científica, dizendo que o autor do presente trabalho só podia julgar os sonhos dos austríacos e não tinha nada que falar dos sonhos dos americanos. No que lhe dizia respeito, ela estava certa de que todos os seus sonhos eram exclusivamente altruístas."

Sanguessuga, eu?!?!

Do blog do Josias (http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/):

O ex-ministro tucano da Saúde Barjas Negri declarou na CPI das Sanguessugas que não teve nenhum tipo de relacionamento com Luiz Antonio Vedoin, o chefão da máfia das ambulâncias. Deve-se à repórter Marta Salomon (assinantes da Folha) a revelação de que a coisa não é bem assim. Leia abaixo:

“A assinatura do então ministro da Saúde Barjas Negri (PSDB) aparece ao lado da assinatura do dono da Planam Darci Vedoin, apontado como chefe da máfia dos sanguessugas, em pelo menos sete convênios para a compra de ambulâncias com dinheiro da União. Vedoin aparece como procurador das prefeituras junto ao ministério.

Cópias dos convênios foram encaminhadas ontem ao procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, pelo ministro Jorge Hage (Controle e Transparência). "É um fato inédito em milhares de convênios que a Controladoria Geral da União auditou", disse Hage sobre o fato de o empresário que fornece bens aparecer como procurador das prefeituras.

Em depoimento ontem à CPI dos Sanguessugas, Barjas disse que assinou os documentos antes do responsável pelas prefeituras. A informação foi contestada por Hage. "Não há nenhum cabimento. Seria uma irresponsabilidade o ministro [da Saúde] assinar antes [do representante da prefeitura]. Ele normalmente assina depois".

Barjas disse ainda à CPI não se lembrar se assinou convênio cujo procurador fosse o empresário Darci Vedoin: "Assinava de 3 a 4 mil convênios por ano, não ficava olhando quem era o procurador. Se foi assinado, não tenho nada a ver com isso". Segundo Barjas, era comum as prefeituras passarem procurações a assessores parlamentares e que muitas vezes "assinava em primeiro lugar".

Os convênios submetidos pela CGU à análise do Ministério Público foram todos assinados na mesma data, 20 de dezembro de 2002, a onze dias do fim do mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O dinheiro referente à parcela da União no negócio -R$ 705 mil - só começou a ser liberado após a posse de Lula.

Os sete convênios foram vencidos por uma das empresas do grupo Planam, a Klass Comércio Representações Ltda., responsável pela entrega dos veículos às prefeituras, todas de Mato Grosso. Por meio de procurações, os prefeitos de Barra dos Bugres, Água Boa, Nortelândia, Nobres, Campos de Júlio, Tapurah e Cláudia dão amplos poderes a Vedoin para representá-los junto à União.

Os documentos assinados por Barjas e Vedoin foram localizados durante auditoria nas prestações de contas de convênios assinados pelo Ministério da Saúde entre 2000 e 2005 para a compra de unidades móveis. Nesse período, empresas do grupo Planam forneceram cerca de 30% das ambulâncias pagas com dinheiro da União”.

7.11.06

"Mire, veja..."


Projeto do videasta Álvaro Garcia mostra 50 anos de mudanças do sertão mineiro em mostra no CCBB Brasília

O CCBB Brasília recebe uma mostra interativa “do tamanho do mundo”, nas palavras do Vaqueiro Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa. Sertão: Casa de Imagem – Espaço, Tempo e Vida no Brasil Central, em cartaz de 24 de outubro a 26 de novembro apresenta documentário, videoinstalação e site, que proporcionam ao expectador um mergulho nas vidas, nas falas e nas paisagens dos povos dos sertões mineiros e as mudanças ocorridas em seu microuniverso nos últimos 50 anos, desde o retrato feito em Grande Sertão: Veredas.

Sertão: Casa de Imagem – Espaço, Tempo e Vida no Brasil Central
Até 26 de novembro
Horário: de terça-feira a domingo, das 12h às 19h
Centro Cultural Banco do Brasil – BrasíliaEndereço: SCES Trecho 2, lote 22 – Brasília/DFInformações: (61) 3310-7081
Entrada franca

6.11.06

Clipping

Do blog do Mino (http://blogdomino.blig.ig.com.br/):

Reações e reações
Notável, notabilíssima, a desfaçatez dos “grandes” (grandes? eu os enxergo mínimos) da mídia nativa, e dos seus costumeiros defensores, eminentes representantes da corporação. Todos se credenciaram contra a “intimidação” que teriam sofrido três repórteres da Veja por parte de um delegado da PF de São Paulo, a quem prestavam depoimento. Mas não percebo qualquer reação por parte dos mesmos “grandes” (mínimos) diante da inaudita condenação do professor Emir Sader por um juiz de primeira instância de São Paulo, por ter definido o senador Bornhausen como “racista” depois deste ter chamado o PT de “esta raça”. Sader foi condenado a um ano de detenção em regime aberto e à perda de sua cátedra. Do arco-da-velha. Mas quem protesta? Só mesmo na internet. Nada nas páginas dos jornais, nada no vídeo, silêncio parlamentar. Está claro que nada esperava da Associação Nacional dos Jornais, ou da Sociedade Interamericana de Imprensa, notórias entidades patrimoniais.



Do blog Contrapauta (http://blog.contrapauta.com.br/):

"O segundo caso de reportagem clandestina está numa das cartas de leitores da Veja São Paulo desta semana, assinada pelo dentista Mario Sergio Limberte.

A reportagem menciona meu nome na área de estética dental. Ser consultado anonimamente não me incomodou absolutamente. Mas a divulgação do meu endereço, telefone, diagnóstico e honorários deixa a impressão de que autorizei a publicação. O código de ética do Conselho Regional de Odontologia condena e pune o profissional que usa esse expediente. Solicito que a revista confirme que a matéria foi publicada sem o meu conhecimento e sem consentimento prévio.

Sua solicitação caiu no vazio. Não há palavra da revista reconhecendo que atropelou a ética que regulamenta o trabalho dos dentistas. "


Do blog AmigosdoPresidenteLula (http://www.osamigosdopresidentelula.blogspot.com/)

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado votará, na próxima quarta-feira, um projeto de lei que obriga a identificação dos usuários da internet antes de iniciarem qualquer operação que envolva interatividade, como envio de e-mails, conversas em salas de bate-papo, criação de blogs, captura de dados (como baixar músicas, filmes, imagens), entre outros.O acesso sem identificação prévia seria punido com reclusão de dois a quatro anos. Os provedores ficariam responsáveis pela veracidade dos dados cadastrais dos usuários e seriam sujeitos à mesma pena (reclusão de dois a quatro anos) se permitissem o acesso de usuários não-cadastrados.

O autor do projeto é o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), reconhecido no teste de paternidade do valerioduto.


Mais uma do blog do Mino:

Civita e o governo
Engana-se quem aponta a edição de livros didáticos como o centro das pendências da Abril com o governo federal. Roberto Civita, boss da editora, mira em negócio muito mais fabuloso, a internet sem fio. Especialistas falam em centenas de milhões de reais. Outros, em bilhão.

Ao enredo: Civita tem tido conflitos recorrentes com os capatazes da revista Veja. Há alguns meses pede moderação em relação ao governo Lula. Reportagens contra o PT e a administração federal teriam sido engavetadas. Nos corredores da empresa, o boss arriscou-se a afirmar que contrataria Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil, para administrar a Abril.

No início dos anos 90, a Abril ganhou de graça, e sem concorrência, concessões de MMDS no Rio, São Paulo e sul do País. A freqüência teve pouca utilidade até agora, já que a tevê por assinatura desenvolveu-se de outras formas. A internet sem fio deve, porém, utilizar essa faixa. As perspectivas do novo negócio são animadoras. Ou seja, as concessões que não valiam nada viraram ouro.

Em meados de abril passado, a Casa Civil solicitou que o Ministério das Comunicações fizesse uma consulta à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A ministra Dilma queria saber se as concessões dadas há mais de 15 anos estavam de pé ou, em nome da concorrência e da inclusão digital, não seria o caso de promover novas licitações de MMDS. Justamente nas áreas onde a Abril detém virtual monopólio.

Na Anatel, o placar foi 2 a 2. Os conselheiros indicados por FHC rejeitaram a proposta de nova licitação, o que atendia ao interesse da Abril. Os indicados por Lula foram a favor da consulta da Casa Civil. Pelas regras da agência, em caso de empate, vale a decisão anterior. Tudo ficou na mesma. Por enquanto.

O governo ainda precisa indicar mais um conselheiro. Nesse caso, uma nova consulta da Casa Civil poderia interferir nos negócios da família Civita. Diante dessa perspectiva, Civita foi à luta. Esteve reunido com Dilma Rousseff para tratar do assunto. Foi levado ao encontro por Sidnei Basile, Diretor de Relações Institucionais da Abril. Hélio Costa, das Comunicações, esteve duas vezes no prédio da Marginal Pinheiros que abriga o grupo. Enquanto isso, Civita exigia moderação dos subordinados, para não melindrar o governo.

Em tempo: os principais negócios do grupo sul-africano Naspers, que comprou 30% do capital da Abril por 422 milhões de dólares, são tevê por assinatura e, vejam só, internet.

3.11.06

Nota de Repúdio à condenação de Emir Sader

A sentença do juiz Rodrigo César Muller Valente, da 11ª Vara Criminalde São Paulo, que condena o professor Emir Sader por injúria no processo movido pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), é um despropósito: transforma o agressor em vítima e o defensor dosagredidos em réu.

O senador moveu processo judicial por injúria, calúnia e difamação em virtude de artigo publicado no site Carta Maior(http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2171 ), no qual Emir Sader reagiu às declarações em que Bornhausen se referiu aoPT como uma "raça que deve ficar extinta por 30 anos". Na sua sentença, o juiz condena o sociólogo "à pena de um ano de detenção, em regime inicial aberto, substituída (...) por pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, pelo mesmo prazo de um ano, em jornadas semanais não inferiores a oitohoras, a ser individualizada em posterior fase de execução". O juiz ainda determina: "(...) considerando que o querelante valeu-se da condição de professor de universidade pública deste Estado para praticar o crime, como expressamente faz constar no texto publicado, inequivocamente violou dever para com a Administração Pública, motivo pelo qual aplico como efeito secundário da sentença a perda do cargo ou função pública e determino a comunicação ao respectivo órgão público em que estiver lotado e condenado, ao trânsito em julgado".

Numa total inversão de valores, o que se quer com uma condenação como essa é impedir o direito de livre-expressão, numa ação que visa intimidar e criminalizar o pensamento crítico. É também uma ameaça à autonomia universitária que assegura que essa instituição é um espaço público de livre pensamento. Ao impor a pena de prisão e a perda do emprego conquistado por concurso público, é um recado a todos os que não se silenciam diante das injustiças. Nós, abaixo-assinados, manifestamos nosso mais veemente repúdio. (Quem desejar assinar, enviare-mail para solidariedadeaemirsader@hotmail.com )

palavra-imagem + afeto = LINGUAGEM?



1. Na obra de Roussel, há imagens construídas através do ‘procedimento’, em obras como Impressions d’Afrique e Locus Solus. São imagens ‘incompletas’, por assim dizer, imagens ‘inimagináveis’, onde o corpo se faz máquina e mecanismo, onde a imaginação fica exausta tentando figurar os detalhes de cenas históricas dentro de uma uva ainda não madura, ou tentando visualizar o movimento dos olhos da cabeça decepada de Danton quando as cavidades oculares estão vazias. São imagens fraturadas, por assim dizer, imagens que negativizam o próprio poder da imagem, que valem mais pelo que nelas faltam do que pelo que nelas há.

2. De onde vem o poder da imagem de fixar-se, de prender um sujeito em suas malhas, algo que a palavra não consegue realizar? Afinal, uma análise não passa sempre por uma libertar-se de imagens através de palavras? O trajeto da psicanálise, diz Pontalis, parte exatamente deste abandonar da imagem para buscar a palavra: do fascínio do sonho para o relato do sonho, da hipnose que fazia reviver a cena para a pulsão de morte (impossível de figurar): “A atração do recalcado está no mesmo barco que a atração do visual”, ou seja, sob o sonho e sob o sintoma, a insistência de uma cena infantil. Hervé Huot dirá, pensando nas pesquisas que Freud faz com a cocaína, vai dizer que ele sofreu uma – necessária – anestesia do olho.

3. Então... o que é que torna a imagem tão poderosa para o sujeito que ele precisa libertar-se dela? Há um reasseguramento da posição de sujeito? Nas imagens da narrativa da fantasia, o sujeito se incluiu; o quadro renascentista cria um sujeito cartesiano por conta de sua perspectiva, e há o ‘sujeito-que-olha-e-é-olhado’ dos incômodos objetos da arte contemporânea. É neste sofrimento (e gozo) de assujeitado, de sujeito, que se encontra o fascínio da imagem? Coisa que as palavras não conseguem reproduzir, coisas que as palavras apenas arremedam (eu falo, eu falo, eu estou falando, eu estou dizendo, sou eu quem diz, ouça o que eu digo... - uma insistente e ineficaz auto-afirmação). Estou pensando sempre que as palavras, como fala Foucault, Pontalis e outros, são vazias, são ocas, tentam estabelecer uma relação tão poderosa com o objeto aludido, mas esta relação é falsa. Aí, a cada vez, que o sujeito tenta afirmar-se pela linguagem, isto é denunciado.

4. A passagem entre as lembranças de Freud (“Lembrança Encobridora”) se dá através de palavras. Se o desejo se revela através de uma marca imagética (o amarelo das flores e do vestido), há ‘fio do desejo’ porque as palavras estavam ali para tecê-lo, para fazer as marcas de imagem deslizarem, associarem-se entre si e compor este fio. Mas não é possível excluir uma coisa da outra: nem as imagens que deram iniciam ao processo, nem as palavras que o colocaram em movimento. Então, palavra e imagem estão sob o regime da linguagem?

5. Quando penso 'palavra-imagem-afeto' e 'linguagem', não quero dizer que haja uma regra tão clara quanto a gramática coordenando os caminhos da imagem no inconsciente. Mas quero dizer, tomando a definição mais abrangente possível da linguagem e a mais reduzida também, que a imagem não cai no vazio, que ela vai se associar a alguma coisa, que vai criar relações e que estas relações são, como tudo o mais, relações de linguagem: associações, disseminações, metaforizações, etc… (No inconsciente, para se criar tanto o registro da representação-coisa como o registro da representação-palavra, é preciso que a linguagem esteja ali, antes, prévia, coordenando estas relações).

6. Na fala do analisando, no inconsciente do sujeito, trata-se, absolutamente, de linguagem. Tudo o que ele traz, seja uma imagem, seja uma palavra, seja um fonema, tudo se encontra articulado como linguagem. As imagens do sonho são articuladas em operações de linguagem, os limites entre objeto psíquico e palavra são nebulosos, um precisa do outro para acontecer. Agora, a obra de arte, fora do sujeito, acontecida, esta é objeto sem imagem ou imagem fora da linguagem. Apenas nos grandes, é claro: Mallarmé ao escrever ‘o odor da flor que não existe num buquê’, Joyce no Finnegas, alguns momentos mínimos de Guimarães Rosa. (Porque Guimarães utiliza a linguagem para conformar - dar forma e sustentação - à vida, juntando a beleza da linguagem ao dolorido da vida, ou o contrário: a dor da linguagem ao vivo da vida. Mallarmé e Joyce querem a vida irrompendo dentro da linguagem e dilacerando a linguagem por dentro, tornando impossível o processo de significação). Aí, o objeto é em si mesmo, ele não se refere a nada, ele não está associado a nada – quando vista pelo sujeito, este objeto realiza um choque porque faz referência a um mundo anterior, em que ainda não vivíamos na (da-para-pela) linguagem, até que a imagem do objeto seja tragada para dentro da linguagem novamente e faça marcas no inconsciente, mas só aí. O grande trunfo do artista é este sortir, é conseguir realizar algo que se coloque fora, fora das articulações prévias, um objeto em si, fora do mundo da linguagem e dentro do mundo das coisas.