8.12.06

Imigrantes do Desejo

‘Novo documento’ é o nome que me sugere o computador. Posso chamá-lo assim, como Lacan chamou seus textos de ‘Escritos’, torcendo a obviedade, para que ela passasse a demonstrar algo bem além de si mesma… Um outro nome, “Imigrantes do Desejo” me ocorre quando estou rememorando um sonho. Não sei muito bem o que quer dizer e decido não forçar um sentido sobre isso.

Um gesto cruel ou um ato erótico. Literatura vale para um e para outro. A crueldade para se fazer avançar além de si mesmo nos jogos de escrita (abandono: caracteres individuais, marcas positivas, narcisismos); erotismo para, ao mesmo tempo, não se esquecer do corpo (pessoal, sempre; exigente e rigoroso).

Diz Barthes: “Como se da escritura, ato erótico forte, não restasse mais do que a fadiga amorosa.” Erotismo tem muito pouco a ver com literatura erótica ou pornográfica. Proust não precisa descrever explicitamente as noites do protagonista com Albertine e a cena sexual mais forte de La Recherche, em sua sétima parte, é a surra comprada por Charlus num bordel.

Como Proust, Barthes consegue manter um equilíbrio entre erotismo e escritura, erotismo e crítica. Acho que tem a ver com sua homossexualidade (leio Incidentes, seu diário póstumo). Não a sexualidade biográfica, vivida, mas uma outra relação com o mundo, no sentido de exigir outros olhos – sejam as Gomorreanas que se reconhecem, sejam os Sodomitas dispersos –, exigir uma constante decifração dos gestos do mundo, pela via do desejo: eu posso contar com contar com a cumplicidade desta pessoa do mesmo sexo que eu? Ou mais, com a sua aquiescência? Será esta a base do erotismo: outros signos debaixo de um signo? Outros signos insuspeitos, debaixo de um gesto que pode negá-los? A quantidade – ou qualidade – de risco que o erotismo exige?

Ou, atravessando todos os possíveis arranjos amorosos, quando apaixonado-apaixonada fala a amado-amada: ‘o modo específico como a camisa de botões cai mais para um lado que para o outro quando você a veste’, ‘a matiz indefinível de seus olhos quando você está com raiva’, este dedinho torto, esta marca de nascença, a sombra deste osso sobre a carne. Isso também é erotismo: a eleição de um único signo para ser interpretado. Um signo que, parecendo mínimo, pode caber todo um novo mundo, pode reordenar a escala de importância e hierarquia de tudo a seu redor. Por isso, Proust é o mago dos gestos mínimos, por isso o tropeço e a madeleine são suficientes para reenviar à memória lembranças de tempos há muito idos. Não à toa, a decifração das palavras de Albertine é gesto de amor e de desconfiança, é decifração erótica e tormento da linguagem.

...estes eflúvios sexuais constantes (acabei de olhar no Houaiss o que significa ‘eflúvio’ – faço isso de bôbera porque tenho um dicionário muito mais interessante aqui no peito, na memória, nas lembranças de todas as coisas que eu li, de como uma palavra se coloca entre as outras, de como adivinhar seu sentido ou inventar um bem melhor, mais próprio – e, de repente, eis o que diz o Houaiss: “emanação sutil que se desprende dos corpos organizados”... estou encantada com esta idéia: o que será um ‘corpo organizado’? o que será um ‘corpo desorganizado’?)

[A escritura é a armadura de fantasia do neurótico]

Um comentário:

Anônimo disse...

olá, achei seu blog por um comentário no do piero... bisbilhotices virtuais.
adorei este texto, e acho que um corpo organizado só o é exatamente porque houaiss assim pregou, ou seja, é como um verbete também, mas os corpos da memória são como você gostaria de definir 'eflúvio'...

conversa fiada à parte, sou ex-aluna do curso de piero. muito prazer, maíra.