24.9.06

Da cama e suas carnes

Cadáveres Semânticos, 2005
InstalaçãoBibliofagia, Atos Visuais, Funarte.

Então, uma cama atravessada por uma viga de concreto. Da cama, a cabeceira escura e sóbria. Da colcha branca, fina, quase poeira, a limpeza, a imaculação. A viga segura a cama em seu lugar junto à parede.

Entretanto, se uma cama, amantes, com certeza. Penso o que devem ter sentido estes amantes, esta viga descida do teto, tal qual um meteoro estranhamento geométrico – será? –ou nascida do chão semelhante a uma árvore: sem remorsos, sem arrependimentos ou hesitações, convicta de sua direção – o alto – sob a cama. Me pergunto então o que sentiram estes amantes: alívio diante desta separação definitiva na forma de um metro por um metro de concreto? Ou horror, surpresa, dor, enquanto a viga rasgava suas carnes fantasmas?

Porque se trata, enfim, de amantes fantasmas, de um sangue ralo e espectral que não mancha a cama, de tendões e ossos de poeira que não ficaram presos na viga. Acho que se evaporaram. Acho que seus órgãos fantasmas se desfizeram, calmamente, docilmente, num adeus sem assombro. Talvez o que tenha finalmente morrido seja sua memória de fantasmas, que dormia naquela cama.

A cama mesma atravessada pela viga. Em sua existência prosaica de cama, em suas carnes.

Eu sou uma pessoa das palavras (elas me possuem, sem escapatória). Mas me percebo devastada pelo impacto da imagem. À sua grandiosidade. Mesmo que esta grandiosidade me perca no momento exato do aprisionamento – me perca deste pertencimento até então inequívoco às palavras (que não é um pertencimento tranqüilo, mas é sempre uma garantia).

"Incomunicabilidade”… Este é um nome grande. Se não é comunicação, se não é troca, alguma coisa deve ser. Não pode não ser não nada. Podemos dizer que é, então, um transporte, um deslocamento. Um arremesso através do espaço. Um ato de lançar para longe de si, com certo asco. Mais Proust: diz Deleuze que os signos da arte são superiores à filosofia. A filosofia se apóia numa certa boa-vontade de pensamento, numa disposição consciente para a reflexão. A arte, não. Trata-se de uma imposição, não há escolha, não há escapatória, linha de fuga ou rota de saída. Não há portas de emergência.

Vendo, então, a obra de Matias Monteiro, me aconteceu um certo milagre. Minha memória de exposições, mostras, instalações é feita, essencialmente, de sensações de sufocamento, de falta de ar (não há rotas de fuga), uma certa paranóia em relação à esta ou aquela obra que quer me invadir. Mas, então, eis que este movimento sofre uma inversão: se torna atração, magnetismo, tragagem. A mesmo força que expelia seduz até a hipnose, o movimento de lançar para fora quer agora trazer para dentro. Não houve esgotamento: eu poderia ficar horas e horas olhando para aquela cama e pensando naqueles amantes. Mesmo com tanto livros ao meu redor, eu só poderia olhar para aquela cama dilacerada.


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