7.9.06

Bispo do Rosario e Anish Kapoor

Não sei dizer exatamento o que me provoca a obra de Anish Kapoor. Ele me foi apresentado por alguém cuja opinião sobre artes (e outros assuntos) me guia e me intriga também porque une contrários, a mais fina delicadeza não fecha os olhos à crueldade (afinal, como é possível gostar tanto de Kapoor quanto das imagens sanguinolentas de Orlan se fazendo operar?)

Mas, como ia dizendo, não posso dizer que gosto de Anish Kapoor. Ele não me emociona. Estimula, talvez, alguma lembrança tátil – tenho vontade de escorregar a mão por suas peças e desrespeitar a lei que nos impede tocar as peças – ou gustativa (algumas peças têm uma textura porosa - eu intuo olhando as imagens - que dá vontade de morder). Me impressiona a qualidade técnica de suas peças, bem acabadas.

Às vezes, Kapoor me ofende também. Me ofende porque, através de suas obras, ele parece ter encontrado a forma perfeita e silenciosa e implicar que este é também o estado do mundo. É este silêncio que me dói: o mundo não é silencioso, o mundo está estalando o tempo todo e se quebrando e ruindo e se desfazendo o tempo todo. Não me admira que ele tenha eleito a círculo como grande referência, quase que como paradigma de suas obras. Uma obra que se faça em volta de um buraco. Um círculo perfeito, um mundo que escorregue do começo para o final e de volta ao começo, confundindo e tranqüilizando os dois. E, para mim, o mundo é cheio de quebradas, cortes, esquinas, lâminas, ângulos dolorosos, reentrâncias, há pedaços do mundo dos quais eu desconheço o começo, que terminam abruptamente e sem uma palavra de consolo. Eu posso escorregar pela obra de Kapoor, não me prende. A superfície lisa dos objetos criados para este fim estético me parece auto-envolvida demais, narcisista demais. Meio boba. Prefiro, muito mais, a superfície rugosa das longas patas da aranha de Louise Bourgeois (e esta eu vi ao vivo).

Tateando o mundo e tentando melhor estruturar meu pensamento, apelo para uma comparação (como entre a palavra super-trabalhada de Saer e a palavra erótica de Proust). Penso em Kapoor e penso em Bispo do Rosário.

A primeira imagem que vi de Bispo do Rosário (imagem porque era um fotograma preto-e-branco num jornal) foi a Cama de Romeu e Julieta. Um leito estreito, precário, de madeira, parece meio bambo, parece que ninguém pode deitar lá, um tecido branco e leve fazendo às vezes de mosquiteiro, linhas e fios coloridos cruzando o suporte de madeira no alto da cama. Nada mais distante da Inglaterra de quinhentos anos atrás, este leito para um casal morto (não houve leito para Romeu e Julieta).

Penso nos estandartes, no barco, no Manto da Apresentação. A obra de Bispo do Rosário me faz sentir ao contrário da obra de Kapoor. Em Bispo do Rosário, o mundo está berrando, a forma é incompleta, a urgência com que ele vai unindo pedaços de fios, fios coloridos, penduricalhos sobre seu leito fala de uma obra que nunca vai estar completa, ele precisa ir buscando objetos como quem procura palavras para algo que não é dizível.

Os objetos de Bispo do Rosário tem reentrâncias e são objetos do mundo, objetos desgastados pelo uso de uma mão humana, objetos que têm memória e lembrança, a gente é que ainda não aprendeu a língua correta para acessá-la. Penso nas coleções: a coleção de canecas, a coleção de chapéus. Quanto mais objetos ele recolhe, mais objetos do mundo se apresentam para serem catalogados. Sem sucesso, sem descanso. O espaço do tecido é apertado para tudo o que ele quer dizer em seus estandartes, uma mensagem precisa urgentemente ser escrita, precisa ser apresentada a Deus. Não há tempo para pensar ou escolher, há tempo para convulsionar (entendo agora a ultima frase do livro de Breton: a beleza será convulsiva ou não será nada).

Prefiro Bispo do Rosário porque suas obras estão gritando comigo. Suas obras estão em pânico, estão sofrendo porque o mundo e as coisas do mundo são um enigma. Cada objeto busca outros, pequenos objetos, porque tudo é insuficiente para dizer o que quer que Bispo do Rosário queria dizer (o Fim do Mundo, a roupa de ver Deus?).

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