29.5.06

Umbiguismo - mais...

O sonho e a memória

No que me concerne, a geografia dos sonhos é única. Remodelável... e sempre a mesma. Porque se a configuração, o aspecto, a visão muda, eu sei e continuo a saber que o lugar é o mesmo. Sempre. Vastidões de espaço, naturezas intocáveis. No sonho, eu vejo tudo do alto. O aspecto do solo, os rios que cortam o lugar fazendo caminho. É sempre uma viagem – não sei para onde –, no sonho, estou sempre em viagem, sempre num outro lugar.

À sua maneira distorcida, fruto dos deslocamentos e das condensações, o sonho, todo sonho, é mítico. Mitológico. Grandioso, fala das origens. O sonho fala dos lugares que, de fato, importam. É sempre a infância, é daí que os sonhos vêm. Minha infância é a casa de meus avós maternos. Não vou lá – me angustia aproximar. Mas eu sei que a casa está lá. A origem. Oriundo, originário, original, oriente. Entretanto, de ‘ori’, também vem aborto. E, no candomblé, ‘orí’ é a cabeça.

A casa: corredores, portas e muitos quartos. Vãos de toda forma: pequenos armários, grandes gavetas. A grande quantidade é enganadora: quartos onde não se pode entrar; corredores onde não se pode correr e, tampouco, andar; as portas são fechadas com você lá dentro. Tenho a sensação que posso sufocar se chegar perto demais destas lembranças, deste lugar – as lembranças podem sentar no meu peito, têm um ar envenenado, um cheiro de mofo, de coisa velha, de peido de velho, de comida ruim – este ar envenenado que, de fato, me sufocou. E é para lá que vou todas as noites. Ou, talvez, não.

Os sonhos, o sonho, é sempre com os arredores. O além da casa. É possível – e desejável – escapar: pode-se sair pelo portão principal, pode-se ir para os fundos do terreno e passar por baixo da cerca de arame farpado, terra de ninguém. De fato, no man's land. Nos sonhos, os arredores mudam de aspecto, porque é a liberdade que é sempre reconfigurável.

Neste momento – o espaço se confunde com o tempo, e os tempos do sonho com os tempos da memória –, saindo pelo portão, eu subo a pista de cascalho, dobro à esquerda na estrada de terra, chego à linha do trem. Em frente, um enorme terreno, decomposto em erosões. Basta um pequeno esforço, um pequeno esforço imaginativo, e este quilômetro quadrado de terra vermelha e corroída vira a face da Terra numa pré-história debilitada, retorcida por desfiladeiros, por princípios de vulcões, numa face tão árida e rígida e antiga que ainda não havia água ou vegetação.

Se eu fosse pelo outro lado, eu passaria pelos fundos, passaria pelas enormes mangueiras que, unidas pela copa cerrada, faziam do dia uma eterna meia sombra; a pequena plantação de café; a casa dos empregados (meus avós sempre respeitaram a configuração ‘casa grande-senzala’). Aqui, a coisa toda se confunde: picadas no meio do mato, pequenas pontes, e, finalmente, o córrego. Ou o ‘corgo’, como chamávamos todos.

A casa só existe, no sonho, para que eu possa sair de lá. Dentro da casa é onde se sufoca, onde a asma faz sua vítima, a asma ou o tédio – quando chove, eu ouço os exercícios de piano do avô, leio seus livros velhos e escuto, vindo lá de fora, os gritos da avó.



PS: Leio em Pontalis, em ‘Perdre de Vue’, a mesma origem, o mesmo princípio, inverso porém:

“Qu’a-t-il donc à conserver, à garder pour lui, bein au chaud, inchangé? Quel est ce bien si précieux et si fragile que le moindre mouvement lui est fragmentation, dépense nocive, apport de froid? Quel est cet air tiède qu’il respire, son souffle à lui?

On s’en doute: c’est l’enfance, c’est la grande maison de l’enfance. Qu’y trouve-t-il dans cette maison, dans ce temps-là? Déjà le sommeil, dèjá l’immobilité. Mais le sommeil régnait dans la maison, l’immobilité dans le temps.”


Pontalis fala de alguém que depende deste ar imóvel da infância. É deste ar que eu fujo – ou tento. Porque sei, também eu, no movimento nervoso do dia-a-dia, que a imobilidade é o preço desta aproximação.

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