31.5.06

Lit-erótico...


A literatura é uma facilidade inata e uma dificuldade adquirida.

Irmãos Goncourt

O silêncio da obra

Coloco antes do nome da artista - Jenny Holzer - duas palavras: emoção e intelecção. Penso na emoção de ler a frase sobre o móvel de mármore, uma frase tão freudiana, que vai sacudindo meus afetos um a um (e afeto é, de fato, aquilo que nos afeta). Penso em intelecção porque passa pelas palavras, as atravessa no seu percurso de obra de arte, mas não de uma maneira racionalizante (acredito eu), como se Jenny Holzer fizesse poesia de sua maneira palpável, pegável mesmo, mais que concreta, como a frase-referência aos sonhos da razão de Goya (eu acho também) no outdoor do cinema.

Quando coloco estes dois termos antes do nome da artista, não estou querendo dizer o que a artista faz. Não estou qualificando sua obra, não estou lhe dando nenhum nome, nenhuma palavra - ela tem as suas mesmas e isso lhe basta. Estou lhe dando os meus nomes, as minhas palavras, os efeitos de sua obra sobre mim, o caminho, rasteiro, das associações afetivas, as reverberações que fazem de mim um instrumento oco para a ação da obra.

Penso em meu amigo Matias Monteiro, ele também um artista que já enraizou os efeitos de suas obras, sonhos construídos, sobre mim, que também me forçou a lhe oferecer algumas palavras para falar destes efeitos. Penso no que ele diz: "Se umartista quisesse dizer alguma coisa, ele teria dito". Linguagem e arte são, para Matias, excludentes. A interpretação pesa sobre a obra, tentando cercar seus mistérios, tentando lhe abrir as entranhas e mostrar seu funcionamento. Como Matias, muitas vezes, eu prefiro o silêncio - tarefa difícil demais quando se é viciada em palavras.

29.5.06

Umbiguismo - mais...

O sonho e a memória

No que me concerne, a geografia dos sonhos é única. Remodelável... e sempre a mesma. Porque se a configuração, o aspecto, a visão muda, eu sei e continuo a saber que o lugar é o mesmo. Sempre. Vastidões de espaço, naturezas intocáveis. No sonho, eu vejo tudo do alto. O aspecto do solo, os rios que cortam o lugar fazendo caminho. É sempre uma viagem – não sei para onde –, no sonho, estou sempre em viagem, sempre num outro lugar.

À sua maneira distorcida, fruto dos deslocamentos e das condensações, o sonho, todo sonho, é mítico. Mitológico. Grandioso, fala das origens. O sonho fala dos lugares que, de fato, importam. É sempre a infância, é daí que os sonhos vêm. Minha infância é a casa de meus avós maternos. Não vou lá – me angustia aproximar. Mas eu sei que a casa está lá. A origem. Oriundo, originário, original, oriente. Entretanto, de ‘ori’, também vem aborto. E, no candomblé, ‘orí’ é a cabeça.

A casa: corredores, portas e muitos quartos. Vãos de toda forma: pequenos armários, grandes gavetas. A grande quantidade é enganadora: quartos onde não se pode entrar; corredores onde não se pode correr e, tampouco, andar; as portas são fechadas com você lá dentro. Tenho a sensação que posso sufocar se chegar perto demais destas lembranças, deste lugar – as lembranças podem sentar no meu peito, têm um ar envenenado, um cheiro de mofo, de coisa velha, de peido de velho, de comida ruim – este ar envenenado que, de fato, me sufocou. E é para lá que vou todas as noites. Ou, talvez, não.

Os sonhos, o sonho, é sempre com os arredores. O além da casa. É possível – e desejável – escapar: pode-se sair pelo portão principal, pode-se ir para os fundos do terreno e passar por baixo da cerca de arame farpado, terra de ninguém. De fato, no man's land. Nos sonhos, os arredores mudam de aspecto, porque é a liberdade que é sempre reconfigurável.

Neste momento – o espaço se confunde com o tempo, e os tempos do sonho com os tempos da memória –, saindo pelo portão, eu subo a pista de cascalho, dobro à esquerda na estrada de terra, chego à linha do trem. Em frente, um enorme terreno, decomposto em erosões. Basta um pequeno esforço, um pequeno esforço imaginativo, e este quilômetro quadrado de terra vermelha e corroída vira a face da Terra numa pré-história debilitada, retorcida por desfiladeiros, por princípios de vulcões, numa face tão árida e rígida e antiga que ainda não havia água ou vegetação.

Se eu fosse pelo outro lado, eu passaria pelos fundos, passaria pelas enormes mangueiras que, unidas pela copa cerrada, faziam do dia uma eterna meia sombra; a pequena plantação de café; a casa dos empregados (meus avós sempre respeitaram a configuração ‘casa grande-senzala’). Aqui, a coisa toda se confunde: picadas no meio do mato, pequenas pontes, e, finalmente, o córrego. Ou o ‘corgo’, como chamávamos todos.

A casa só existe, no sonho, para que eu possa sair de lá. Dentro da casa é onde se sufoca, onde a asma faz sua vítima, a asma ou o tédio – quando chove, eu ouço os exercícios de piano do avô, leio seus livros velhos e escuto, vindo lá de fora, os gritos da avó.



PS: Leio em Pontalis, em ‘Perdre de Vue’, a mesma origem, o mesmo princípio, inverso porém:

“Qu’a-t-il donc à conserver, à garder pour lui, bein au chaud, inchangé? Quel est ce bien si précieux et si fragile que le moindre mouvement lui est fragmentation, dépense nocive, apport de froid? Quel est cet air tiède qu’il respire, son souffle à lui?

On s’en doute: c’est l’enfance, c’est la grande maison de l’enfance. Qu’y trouve-t-il dans cette maison, dans ce temps-là? Déjà le sommeil, dèjá l’immobilité. Mais le sommeil régnait dans la maison, l’immobilité dans le temps.”


Pontalis fala de alguém que depende deste ar imóvel da infância. É deste ar que eu fujo – ou tento. Porque sei, também eu, no movimento nervoso do dia-a-dia, que a imobilidade é o preço desta aproximação.

23.5.06

Super-heróis existem...

Não é minha política postar notícias ou mensagens deste gênero aqui. Na verdade, a minha política tem sido, em grande parte, postar apenas artigos e notícias... políticas.

Mas acho que este delicioso artigo - dá mesmo água na boca - é político, ao seu modo...

“Saímos voando”
Luiz Antonio Ryff

Com a violência reinante no Brasil, dá até para rir dessa história de roubo em Hamburgo, cidade com o maior número de milionários da Alemanha. Um grupo de 30 ativistas vestidos como super-heróis invadiu uma loja de iguarias finas e só levou o que havia do bom e do melhor. Roubaram garrafas de champanhe Ruinart, queijos, azeites, um pedaço de presunto Serrano, chocolate Valrhona e uma peça inteira de carne Wagyu Kobe australiana de 108 euros (as vacas são especialmente massageadas). Deve ter sido um dos assaltos mais engraçados da história. Mas, certamente, não para Carsten Sievers, o dono do estabelecimento que contabilizou o prejuízo, estimado em 1.500 euros (uns R$ 4.200).

O grupo, conhecido como a gangue de Robin Hood, é educado. Ao sair, entregou uma flor à mulher do caixa, com um bilhete amarrado que dizia: “Embora sejamos produtores da riqueza de Hamburgo, praticamente não a aproveitamos. As fontes da riqueza são muitas. As oportunidades de tomá-la, também”.

Em nota na internet, os ladrões afirmam ter distribuído a comida entre o que chamam de a nova classe desfavorecida da Alemanha _estagiários que trabalham durante meses em editoras glamourosas sem ganhar nada, funcionários de creches com salários baixos, mães forçadas a trabalhar meio período como faxineiras e “trabalhadores de 1 euro”, que desempenham trabalhos servis. O slogan do grupo: “Tudo para todos. E tudo de graça”.

O roubo aconteceu em 28 de abril e o bando _ com nomes como Spider Mum, Multiflex, Santo Guevara e Operaistorix_ ainda não foi preso. “Saímos voando”, disse Multiflex ao jornal britânico “The Guardian”. E depois dizem que alemão não tem senso de humor…

Le Cocq

Audiência na Assembléia Legislativa de São Paulo, 16 de maio de 2006.

22.5.06

Uma voz de sanidade

A matança dos suspeitos
Maria Rita Kehl

Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?

Alguém acredita que “voltamos à normalidade?” Ou se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?

Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de “tudo tranqüilo, tudo sob controle”. E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.

A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?

Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.

De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.

Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.

Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.

Assim a polícia vem “tranqüilizando” a cidade, ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.

Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.

Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".

14.5.06

Pode-se confiar nas palavras?...

Leio em ‘Se um viajante numa noite de inverno’, de Ítalo Calvino, em um dos romance-incipit:

"Estou convencido de que o mundo quer dizer-me alguma coisa, mandar-me mensagens, avisos, sinais.”

Este é “Debruçando-se na borda da costa encarpada”, o romance simbólico-interpretativo, segundo me diz o epílogo.

Esta frase me causa estranheza: é óbvio que o mundo está a me mandar mensagens, quer dizer, isto não é obvio, mas é obvio que todos se sentem deste jeito. A nossa atividade interpretativa dos fatos, das coincidências e das não-coincidências, do sofrimento, das palavras das pessoas, de seus gestos, das fases da lua, da posição dos planetas, do modo como a borra de café se acumula no fundo da xícara, do dia dos nossos nascimentos, etc e tal – isso me diz que estamos sempre buscando alguma razão, alguma explicação, algum sentido que, cremos, é inerente ao fato de estar no mundo, de estar vivo. A religião, então, levam isto ao seus graus máximos.

Quando o personagem diz isso, ‘tenho esta impressão de que o mundo quer dizer-me alguma coisa’ ao contrário de me assegurar algo, de me aproximar do personagem – eu também acho que o mundo está a dizer-me algo –, o efeito é contrário. Ao anunciar algo que me parece óbvio, sem compartilhar do meu sentimento de obviedade, sem parecer redundante, pelo contrário, apresentando espanto, as palavras perdem qualquer potencial assegurador. Se o personagem declara isso, quer dizer, então, que ele poderia não ter esta impressão, quer dizer que ele poderia pensar que o mundo não quer dizer-lhe nada, que não há mensagem inerente ao fato de se estar vivo. As palavras dizem: 'o mundo quer dizer-me algo', eu sinto: 'talvez o mundo não seja capaz de dizer nada, de enviar nenhum sinal, nenhum aviso, nenhum nada'.Eu fico desconfiada.

Estou bolando isto na minha cabeça, nas minhas anotações: como explicar a meus alunos que, ao contrário da linguagem tornar exato aquilo que é nebuloso – penso nos momentos primeiros de nosso aprendizado das palavras, as palavras dando ao infans as ferramentas para falar daquilo que sente –, as palavras tornam confuso aquilo que estava claro: a mãe sabia quando dar de mamar, quando limpar, quando agasalhar, quando apenas deixar ao colo um bebê que dormita. As palavras aqui, não são necessárias.

Mas Calvio explica isso melhor que eu:

“Primeiro vem essa língua sem palavras dos corpos vivos – é essa premissa que você gostaria que Uzzi-Tuzzi percebesse? –, depois as palavras com as quais se escrevem os livros e se busca inutilmente traduzir aquela primeira língua, depois...”

Fetiche II

Fetiche I


Kim Novak em 'Um corpo que cai' - o título original é 'Vertigo', mas eu prefiro esta queda, a queda de um corpo, um corpo que só é diferenciado dos outros corpos porque cai...

Evo Morales, a Petrobrás, o gás, a diplomacia brasileira, o Mercosul...

Para contextualizar a questão da nacionalização do gás boliviano e seus efeitos sobre a Petrobrás:

- A demanda, no Brasil, de gás boliviano foi construída, de maneira artificial, pelo governo FHC. Isso foi realizado com direito, inclusive, a esdrúxulas participações como a da senhora Rebecca Marques, estrela da Enron, que conseguiu a importação diária de até 30 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Para quem não lembra dos escândalos desta empresa, assista o documentário “Enron – Os mais espertos da sala” onde um dos traders da empresa liga para usinas de energia na Califórnia pedindo “sejam criativos e arranjem uma desculpa para parar a usina por 3,4 horas” - as ações da Enron passam de 30 para 400 dólares neste intervalo e a California elege o Therminator como governador.

- A Petrobrás fez um acordo take or pay com a Bolívia, ou seja, que pagaria de qualquer forma pelo gás mesmo se não o utilizasse – em 2001, por exemplo, perdia-se por falta de uso 8 milhões de metros cúbicos de gás boliviano. Para se ter uma idéia, o investimento inicial da Petrobrás na Bolívia do governo FHC foi de 74,30 milhões de dólares – apenas esse valor se aproxima da totalidade de investimentos do governo Lula: 49,7 milhões em 2003; 18,7 em 2004, e 18 milhões em 2005. Só em 2001 e 2002, o governo FHC investiu 178 e 218,4 milhões respectivamente. Ou seja, desde 2003, a política brasileira tem sido de precaução em relação aos investimentos na Bolívia. Sim, o prejuízo poderia ter sido ainda maior.

- Esta é a terceira tentativa de nacionalização do petróleo na Bolívia. Em 1937, expropriando a Standard Oil; e em 1969, agora com a Gulf Oil. A reabertura à iniciativa privada aconteceu em 1970, com uma ditadura militar que resultou na privatização total em 1996. O Brasil mesmo já teve a sua campanha de nacionalização do petróleo, em 1957 - "O petróleo é nosso!" - , assim como a Argentina, a Venezuela e o México. Ou seja, o que Evo Morales está fazendo agora, nós, entre outros, já realizamos: será que defendemos com tanto afinco os ‘direitos’ das multinacionais exploradoras de petróleo, então? Basta fazer um exercício mental: imaginemos que algum enoluquecido governo tivesse vendido parte da Amazônia – não seria legítimo uma ação para retomar nossa maior fonte de biodiversidade? O mesmo se passa com a Bolívia, em relação aos seus recursos energéticos.
-
Os contratos que passaram o controle do gás para a mãos das multinacionais deveriam ter sido aprovados pelo Congresso boliviano. Não foram. Os contratos com a Petrobrás previam a nacionalização do gás – contratos feitos por FHC, mas cuja conta ficou para ser paga pelo governo Lula. Não apenas Morales, como também seus concorrentes, tinham a nacionalização como bandeira principal, visando atender os anseios da população. Parece que lá na Bolívia, ao contrário do Brasil, tanto os governantes quanto a população não se esquecem das promessas de campanha...

E, o mais importante de todos:

- O gás responde à 8% da demanda total de energia do Brasil. Deste valor, metade é o gás boliviano. Ou seja, o gás boliviano responde por 4% da demanda energética do país inteiro.

A mídia tem feito um cavalo de batalha desta historia toda. Ter que buscar uma fonte de substituição do gás boliviano – 4% do uso energético total do Brasil – é inconveniente, mas não impossível. O escarcéu feito em torno disso corresponde, das duas, uma, ou à completa falta de senso dos jornalistas ou à uma tendencionismo cara-de-pau. Como ninguém se isenta do jogo político, mesmo que queira, eu fico com a segunda opção. Mais importante do que rever o uso do gás boliviano é a auto-suficiência do Brasil em petróleo simplesmente não discutida pelos grandes meios de comunicação. Pelo contrário, os números apresentados – estou pensando na Globo – dão a impressão de que, na verdade, São Paulo só anda se tivermos gás natural (estardalhaço em torno dos valores “75% da demanda energética de São Paulo depende do gás boliviano”). Ou a mídia é inocente, e incompetente – o que eu não acredito – ou está, para variar, fazendo seu jogo eleitoreiro de desestabilização do governo Lula.

Diz o Senador Arthur Virgílio em audiência pública: “Esse aumento não pode ser subsidiado pela Petrobras. Parece aquela velha disputa entre esquerda e direita, e a esquerda acha que os acionistas que se danem” (não estou achando o data). É, de fato, uma escolha feita pelo governo: fazer com que os novos custos que estão por vir sejam amortizados pela empresa e seus 400 mil acionistas e não pelos 500 mil donos de automóveis movidos a gás, não por usina termelétrica que depende do gás e não por 1.200 empresas brasileiras que também dependem do gás boliviano.

“Ao comentar a hipótese de o impacto nos preços ser absorvido pela Petrobras, o líder tucano mostrou uma preocupação especial com os investidores norte-americanos de Wall Street, detentores de cerca de 40% das ações da empresa. Só que os próprios investidores parecem nem ligar para a crise e suas conseqüências – talvez por saber que os efeitos serão mínimos e não merecedores de histeria.

Desde o anúncio da nacionalização do petróleo e gás pela Bolívia, em 1º de maio, as ações ON da Petrobras - o tipo mais importante de título de uma empresa - negociadas em Nova York subiram 7% até esta terça-feira (09) e as transacionadas em São Paulo, 5%. “As pessoas não gostam tanto das sinalizações do mercado? Para o mercado, está tudo certo”, afirmou Celso Amorim, em entrevista depois do debate no Senado. “Os capitalistas de Wall Street, que são muito espertos e bem informados, não se abalaram”, ressaltou o senador Roberto Saturnino (PT-RJ), presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, que realizou a audiência pública.” (Absorção de custo pela Petrobrás incomoda neoliberais, André Barracol, http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10831)

Ainda assim, apesar de criticada pela oposição como frouxa, foi a postura diplomática brasileira racional, que possibilitou um acordo nos últimos dias e fez Morales baixar o tom:

“Segundo o texto assinado, ‘as partes concordaram que a proposta de revisão de preços de gás seja tratada, de forma racional e eqüitativa, nos termos da Declaração de Puerto Iguazu, ao amparo dos mecanismos estabelecidos o contrato de compra e venda de gás natural’. Além disso, estabelece reuniões em nível técnico para tratar de uma fase de transição e formas de compensação negociada.

O documento também anuncia a criação de uma Comissão de alto Nível, composta pelos dois ministérios e pelas duas estatais, assim como de uma comissão técnica e três grupos de trabalho. O ministério de Minas e Energia do Brasil e a Petrobras reiteraram seu respeito pelas decisões soberanas do governo e do povo bolivianos. ‘Os métodos de trabalho estabelecidos na reunião refletem o interesse em aprofundar o diálogo bilateral’, conclui o texto” (Lula e Morales tentam acertar os ponteiros, Marco Aurélio Weissheimer, http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10859)

Entretanto, uma coisa é certa: o governo brasileiro não pode ter a ingenuidade de ignorar a instabilidade do presidente boliviano, por maior que seja o desejo de uma integração latino americana. Evo Morales não é confiável. Se suas ações nos últimos dias são, de fato, realização de um compromisso assumido com a população ou se ele, como foi chamado pela mídia, “marionete” de Hugo Chávez, não se tem como saber. Mas sabemos que ele acusou a Petrobras de manter ‘contratos ilegais’, chegando ao contrabando, que se utilizou de um fato histórico – a venda do Acre para o Brasil (http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10863) – de uma maneira não apenas tendenciosa, mas falsa; que, depois de pressionado pelo governo brasileiro, simplesmente declarou que não havia feito nenhuma destas acusações à Petrobrás, que tudo isso deveu-se à atitude da mída. (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.asp?id_blog=3&id={087A4B88-4F93-48C1-A442-7516C57FE74D})

(Retirei os dados da Carta Capital, edição do dia 10 de maio de 2006).

1.5.06

Não Veja II

Continuando meu trajeto dentro da revista, chego à coluna de Diogo Mainardi.

Mainardi foi desafiado por Franklin Martins, há algumas semanas atrás, a apresentar provas de suas acusações: de que mulher e irmão de Franklin tinham recebidos seus cargos no governo por conta de uma tal ‘cota’ que o jornalista tem. Não aceitou o desafio e nem apresentou provas. Pelo contrario, às já feitas, juntou mais umas outras, também não comprovadas.

Mas, enfim, a coluna da edição 03 de maio de 2006: ‘Pedi o impeachment de Lula’.

Depois daquele blá-blá-blá leviano, mal escrito (Mainardi, para quem não sabe, não é jornalista, não se formou em lugar algum), um arremedo de espirituosidade, ele escreve:

“O presidente da CUT avisou que, caso o pedido de impeachment prospere, os movimentos sociais como a CUT, a UNE e o MST tomarão as ruas em defesa do mandato de Lula. Duvido. Ninguém foi às ruas para pedir o impeachment. Mas ninguém irá protestar contra ele. O máximo que pode acontecer é que um punhado de arruaceiros quebre um ou outra vitrine. Ou seja, nada que umas cacetadas no cocoruto não resolvam.”

Para começar, ‘caso o pedido de impeachment prospere’, irei, ou melhor, iremos vários, para não dizer milhares, às ruas para protestar. Isso não faz de nós ‘um punhado de arruaceiros’. Entretanto, qualquer que seja a magnitude do protesto, o sr. Mainardi deve ter em mente que nada vai ser resolvido com ‘cacetadas no cocoruto’. Porque as pessoas que protestarão, ‘caso o pedido de impeachment prospere’, já tomaram muito mais que ‘cacetadas no cocoruto’ e não mudaram de postura política e ética por causa disso.

É estranho. O sr. Mainardi quer ter direito a pedir um impeachment do mesmo jeito que ‘compra um rabanete na feira’ – esta é sua reivindicação ao dizer que ‘Lula é um mau rabanete’. Agora, se alguém tiver uma postura contrário, é imediatamente tachado de ‘arruaceiro’ e ameaçado com ‘cacetadas no cocoruto’. Não vou nem comentar a subentendida justificativa da violência policial contida nestas frases.

Enfim, ele continua o texto dizendo que, simplesmente, repetiu – copiou e colou – o pedido de impeachment contra Collor e trocou o nome de Collor pelo de Lula. Ou seja, o sujeito admite, na maior cara-de-pau, o quão preguiçoso ele é. Continua dizendo que colocaria, no pedido de impeachment de Lula o nome dos mesmos autores do pedido contra Collor, mas só tem um problema (que não é, para o sr. Mainardi, o de direito autoral): um deles, Barbosa Lima Sobrinho, morreu, e o outro, Marcelo Lavenère, está ‘comodamente instalado no governo Lula’. Aí, o circulo calunioso de Diogo Mainardi se fecha: como presidente da Comissão de Anistia, Marcelo Lavenère ‘deu 100.000 reais de aposentadoria a José Genoino, um dos onze petistas denunciados pelo procurador-geral da Republica’.

Se o sr Mainardi fizesse sua pesquisa, seu dever de casa direitinho, saberia que se a Lei de Anistia foi promulgada em 1979, mas que foi só em 2001 que se estabeleceu uma Comissão de Anistia com o dever de ressarcir aqueles que foram prejudicados pelo regime com 25 anos de atraso, contando juros e correçoes. (http://www.correiodopovo.com.br/jornal/A109/N314/html/03ANISTI.htm) Ora, se as ações da Comissão de Anistia realmente incomodam o sr Mainardi, por que é que ele não lembrou o golpismo do Carlos Heitor Cony, que 'furou' a fila para ganhar uma bolada, mesmo já tendo empregos luxuosos como o de colunista da Folha de São Paulo? (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=284ASP007)

Que o Genoino deu a pisada na bola da vida dele e jogou no lixo umas das mais sólidas vidas políticas do PT ao deixar que Marcos Valério pagasse as contas do PT – por ignorância ou por corrupção, o erro não é menor –, é a mais absoluta verdade. Espero que seja investigado, espero que não se eleja deputado nas eleições de agora, como o PT quer. Nem ele nem Palocci. Agora, que Genoino foi preso e torturado na Guerrilha do Araguaia e que merece indenização por isso, como prevê a lei, é tão verdade quanto. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Mas eu sei que, tendo em vista a postura ética do sr. Mainardi, ou a falta dela, sua última preocupação é provar aquilo que, toda semana, insinua nas páginas da Veja.

Depois de tudo isso, vou desinfetar minhas mãos.

Não Veja I

Como o personagem da tirinha de Gilberto Maringoni - postei várias sátiras dele por aqui - quando eu leio Veja, lavo as mãos depois.

A edição de 3 de maio de 2006 traz, na capa, o pré-candidato à presidência Anthony Garotinho. Lista os 7 ‘pecados capitais’ do ex-governador: populismo, corrupção, gastança (provavelmente segundo os padrões neo-liberais da Veja, cabo eleitoral do PSDB), irresponsabilidade (aonde, a revista esquece de dizer), fraude, falsidade (?), intervencionismo (?).

O mais impressionante na capa da Veja é a demonização, literal, do pré-candidato do PMDB (que está mais para ex-futuro-candidato): chifres e um rabo são desenhados em Garotinho, que aparece sobre um escandaloso fundo vermelho.

Bom... Não preciso dizer da minha repugnância ao candidato Garotinho. Não preciso dizer de como a afetação religiosa dele é nojenta e francamente eleitoreira (falarei disso mais adiante). Agora, colocar uma pessoa que, bem ou mal, se diz religiosa e ‘professa sua fé’, como o diabo é desrespeitoso e mal-intencionado. Um político corrupto não é nenhuma manifestação do Diabo, pelo contrário, é o que mais se vê por aí. Por que a Veja não vai colocar chifres em ACM, conhecido pela sugestiva alcunha de ‘Toninho Malvadeza’? Eis porquê: ACM é da já ‘irreversível’ aliança PFL-PSDB. Eis porquê: a Veja quer que o bom-moço, o santinho desta historia, seja, é claro, o candidato-chuchu Geraldo Alckmin.

A resposta de Garotinho à esta historia toda, a tal falada ‘greve de fome’, é, como diz acertadamente O Globo, uma ‘greve de explicações’. Tudo espetáculo, pelas linhas abaixo em que o jornalista que descreve a cena parece até sentir um certo constrangimento pelo casal Garotinho:

"Garotinho escolheu a sede do partido do Rio como endereço para sua greve de fome. O pré-candidato sentou-se num sofá na antesala da presidência regional do partido, ao alcance das cameras de jornais e TV's, e pôs-se a ler um livro. Alguns minutos depois, a governadora Rosinha Garotinho sentou-se e abraçou o marido. Os dois, então, passaram um longo período na mesma posição, de olhos fechados, ainda diante das câmeras." (link: http://oglobo.globo.com/online/pais/mat/2006/04/30/247012693.asp)

Garotinho é um tremendo golpista e sabe fazer uma cena, quem quiser ver, a imagem está no mesmo site.

O que eu espero agora é que os meios de comunicação dêem uma resposta sóbria à ‘greve de fome’ de Garotinho. Não façam estardalhaço em cima disso, não se sintam chantageados – se ele quer fazer ‘greve de fome’ é porque há muito tempo que precisa de um regime. Qualquer resposta diferente disso é fazer exatamente o que Garotinho quer.