31.8.08

Zeitgeist Americano, Gulag Russo

Em junho de 2007, este filme, Zeitgeist, foi “lançado” on-line – você pode assisti-lo no próprio site ou baixá-lo através do torrent - segue um site possível, mas não o único: http://www.mininova.org/tor/1163059. No site oficial do filme, é explicado que trata-se de um filme produzido por Peter Josehp e criado como “nonprofit expression to inspire people to start looking at the world from a more critical perspective and to understand that very often things are not what the population at large think they are”. No site, ainda: contato, perguntas e respostas, etc.

O documentario se divide em três partes: a primeira sobre a influência de outros sistemas místicos-religiosos sobre a construção do cristianismo; a segunda, sobre o 11 de setembro; e a terceira, sobre a criação do Federal Reserve, banco privado americano responsável pela emissão de cédulas e que determina os caminhos da economia estadunidense. Ao propor que o 9/11 foi um “inside job”, ou seja, que se tratou de uma ação do próprio governo americano no sentido de coagir a população em torno de um inimigo imaginário que justificasse a diminuição de direitos civis e liberdades individuais (o Patriotic Act), o documentário entra na lista do que chamamos de “mais uma teoria da conspiração”.

A primeira parte do documentário trata da desconstrução da religião cristã, que é apresentada como reapropriações de mitos religiosos anteriores pelos romanos. Para mim, a parte mais desisteressante e, não por acaso, a parte mais atacada do filme. Entretanto, mais importante que apontar similaridades entre sistemas místicos diferentes é perceber como o discurso religioso é uma poderosa ferramenta de dominação, que passa não apenas pela construção de nossa noção do que é certo ou errado, do que é pecaminoso e do que é justo, como pela a naturalização de guerras, invasões, crueldades (as cruzadas, a inquisição). Na verdade, este é o mote de todo o filme: os discursos de controle e sua sustentação na violência contra o “homem comum”, “the average man”, sem poderes de defesa e proteção.

O 9/11 se torna também uma poderosa ferramenta, cujos significados são ecoados em pulsos intermináveis na mídia: os valores do patriotismo, o sacrifício pela nação, o não questionamento, a aceitação. Se foi obra de um herdeiro do petróleo “de mal” com os EUA, arquitetando tudo de dentro de sua caverna ou se foi uma ação do próprio Estado, não interessa (cada teoria é tão estapafúrdia e cheia de buracos quanto a outra, mas, afinal, vivemos num mundo em que tudo é possível). O que interessa é o uso do fato, o que interessa é que tipo de discurso este evento faz proliferar, em que meios, visando o quê. Se as guerras em que os EUA se meteu (as guerras mundiais, Vietnã, Afeganistão, Iraque) são guerras patrióticas, guerras do terror ou guerras do dinheiro, o que fica é que são guerras decididas de cima para baixo, em que cidadãos obedientes não são mais que massa de manobra.

Coincidentemente, estou lendo “Arquipelágo Gulag”, do Soljenítsin, outra denúncia, desta vez, contra o comunismo russo. Ainda estou no começo do livro, mas há o suficiente para comentar, especialmente o sistema de aprisionamento e envio ao Gulag ("Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey", "Administração Geral dos Campos"), primeira experiência de campos de concentração.

O totalitarismo americano, sustentação da força de seu capitalismo, se faz através de mecanismos sofisticados: mensagens espalhadas pela mídia, o aproveitamento do 9/11 como justificativa para a retirada legal de direitos e liberdades, o patriotismo como obrigação (não se mata e morre no Iraque pelos EUA ou pelo Iraque, mas pela manutenção simbólica de um poderio decadente).

Já o totalitarismo comunista, apresentado por Soljenítsin num apanhado de informações recebidas de sobreviventes e em leituras, se mostra mais expressivo enquanto um relato individual. De início, em 1918, o sistema de encarceramento Gulag eram para os inimigos do Estado: os sociais-democratas, os socialistas-revolucionários, os remanescentes da nobreza, os intelectuais, até que começa a alcançar as etnias menores que compunham a União Soviética, os professores, os camponeses, os vizinhos. Qualquer um. De qualquer um para todos não há mais distinção.

As prisões se davam em inesperadas gestos na ordem do cotidiano. Um flerte poderia terminar em encarceramento; ao chegar à fábrica, você está preso após bater o cartão; no hospital, em meio à cirurgia de estômago; ao levar à polícia a filha dos vizinhos detidos; os visitantes tornam-se companheiros de cela. Diz o autor: “As prisões políticas em nosso país singularizam-se durante décadas precisamente pelo fato de serem detidas pessoas em nada culpadas e, por isso mesmo, de modo nenhum preparadas para oferecer resistência.” (p. 22) Ao sair de casa, cada soviético se despedia de sua família para nunca mais – e isto era apenas ser realista.

Tudo o que dava errado dentro da estrutura do sistema era creditado aos “sabotadores”: a falta de transporte, de educação, de saúde, a fome geral da população – tudo se devia aos sabotadores e os sabotares poderiam ser qualquer um. Conta Soljenitsi: “Em 1934, os agrônomos de Pskov semearam linho na neve, justamente como tinha ordenado Lissenko. As sementes incharam, cobriram-se de bolor e morreram. Vastos campos permaneceram incultos durante um ano. Lissenko não poderia dizer que a neve era kulak, ou ele próprio era idiota. Acusou os agrônomos de serem kulaks e de terem tergiversado na aplicação de sua tecnologia. E os agrônomos foram mandados para Sibéria.” O Estado detinha o poder de reconstruir a realidade com sua palavra, mesmo que a palavra atual fosse contrária à palavra anterior.

Era dever patriótico de cada cidadão soviético denunciar seu vizinho, seu parente, seu chefe, seu paroquiano nos casos de traição, inserido no artigo 58 que se tornou tão extenso a ponto de fazer caber qualquer ação. A não denúncia determina uma pena tão grave quanto o próprio crime e a prisão se torna um recurso contra aqueles que fazem e também aqueles que não fazem. Um encanador desligava seu aparelho de rádio quando se transmitia os infindáveis discursos de Stálin – foi denunciado por seu vizinho como “elemento socialmente perigoso” e pegou 8 anos. Um padeiro semi-analfabeto treinava uma assinatura no jornal, sobre o rosto do Grande Pai – agitação anti-soviética, 10 anos. Tampouco o s soldados, que lutaram pela URSS, durante a II Guerra, escaparam do Gulag: qualquer um que tivesse estado no exterior estava contaminado pela “ideologia burguesa” e mesmo que calasse sobre a prosperidade e liberdade de outros países, era perigoso aos olhos do Estado.

As acusações começavam com perguntar ao acusado: “O que foi que você fez?” ou “Fale, você sabe do que se trata!”. Este é principio, o ponto de partida e é possível contar com a cooperação – mediante torturas terríveis ou não – de que o cidadão contará os seus pecados. Se não, cria-se novos crimes, comuns ou políticos, que caibam, dos quais se possa dispor. Uma pessoa é acusada de utilizar um nome falso durante anos – mesmo que este seja seu nome verdadeiro! Obriga-se um trabalhador a fazer um ensaio sobre a “planificação na empresa”, sem nenhuma dúvida: algo ele escreverá que ira comprometê-lo!

Adendo ao código de traição, está a especificação: a intenção de trair ou a preparação para trair merecem penas tão ou mais duras que a traição em si – une-se à isso: “presunção de espionagem”, “presunção de espionagem”, “intenção terrorista”. A diferença entre intenção de delito e o delito é uma sutileza burguesa.

O clima de vigilância não apenas do Estado sobre o sujeito, mas dos cidadãos entre si ganha contornos risíveis, se não fossem trágicos. Após um pronunciamento de Stálin, todos se levantam para aplaudir. Após 1, 5, 10 minutos os aplausos continuam e os ouvintes se olham entre si, esperando que alguém pare. As mãos começam a doer, os braços, a formigar... No décimo primeiro minuto, um ouvinte, fingindo atarefamento, pára de bater palmas, no que é seguido pelos outros. Na mesma noite, ele é preso.

Entre os pólos da chamada “guerra fria” – que as teorias mais recentes questionam tratar-se de guerra ou de um pacto silencioso – esta semelhança extremada: o controle, o controle do sujeito através das mais variadas ferramentas, brutais ou sofisticadas.

Nenhum comentário: