31.8.08

Confissão

Me pergunto se esta tentativa de ler o mundo, de fazer do mundo literatura, como determinou Pontalis, não esconde uma condescendência com o outro ou mesmo um certo medo do mundo. Uma tentativa de ler a vida e nem sempre vivê-la. Afinal, o grande desafio não é revestir o mundo com palavras, por mais árduo que isso se apresente muitas vezes, mas despir o mundo das palavras, enxergá-lo antes do nascimento da linguagem, e, se não for possível fazê-lo, pelo menos manter isso em vista. (Lembrando que alguns, Joyce, por exemplo, conseguiu este feito: o mundo sem palavras, a palavra destruída, assassinada, apresentando um mundo de ruína).

Antes de ler o mundo, eu o ouço, eu o tateio, e, admito, uso os sentidos para decompor, decompor tudo o que vem do outro: palavras, sons, tons de voz, sotaque, conteúdo, escolhas, muita atenção para o lugar de termos como “eu”, “meu”, “eu sou”, “para mim” nas frases, quais são os cheiros, se há perfume, a direção do rosto, as rugas, os sinais de sofrimento, piscadelas, volteios, são como jogos de luz. Vejo o outro não apenas porque me interessa em si, mas porque quero me esquecer de mim. Espero ter alcançado aquele estágio monástico em que ter a mim mesma como assunto não faz mais que me provocar desinteresse e uma certa sonolência. Não se trata de abandonar a auto-reflexão, este meu vício sincero, mas de abrir mão de sintomas mais óbvios do narcisismo ou de seus usos mais clichês.

Agora, não faço muita coisa, apenas espero, espero que os momentos me cheguem, que o momento chegue, o mágico momento em que, ainda no agora, acontece a concepção, se dá a gestação dos vários futuros possíveis. Esta experiência temporal ínfima, um insignificante segundo diante da vastidão sem tempo do universo, em que passado e futuro se alinham, sem se revelar, à ignorância do presente.

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