Me pergunto se esta tentativa de ler o mundo, de fazer do mundo literatura, como determinou Pontalis, não esconde uma condescendência com o outro ou mesmo um certo medo do mundo. Uma tentativa de ler a vida e nem sempre vivê-la. Afinal, o grande desafio não é revestir o mundo com palavras, por mais árduo que isso se apresente muitas vezes, mas despir o mundo das palavras, enxergá-lo antes do nascimento da linguagem, e, se não for possível fazê-lo, pelo menos manter isso em vista. (Lembrando que alguns, Joyce, por exemplo, conseguiu este feito: o mundo sem palavras, a palavra destruída, assassinada, apresentando um mundo de ruína).
Antes de ler o mundo, eu o ouço, eu o tateio, e, admito, uso os sentidos para decompor, decompor tudo o que vem do outro: palavras, sons, tons de voz, sotaque, conteúdo, escolhas, muita atenção para o lugar de termos como “eu”, “meu”, “eu sou”, “para mim” nas frases, quais são os cheiros, se há perfume, a direção do rosto, as rugas, os sinais de sofrimento, piscadelas, volteios, são como jogos de luz. Vejo o outro não apenas porque me interessa em si, mas porque quero me esquecer de mim. Espero ter alcançado aquele estágio monástico em que ter a mim mesma como assunto não faz mais que me provocar desinteresse e uma certa sonolência. Não se trata de abandonar a auto-reflexão, este meu vício sincero, mas de abrir mão de sintomas mais óbvios do narcisismo ou de seus usos mais clichês.
Agora, não faço muita coisa, apenas espero, espero que os momentos me cheguem, que o momento chegue, o mágico momento em que, ainda no agora, acontece a concepção, se dá a gestação dos vários futuros possíveis. Esta experiência temporal ínfima, um insignificante segundo diante da vastidão sem tempo do universo, em que passado e futuro se alinham, sem se revelar, à ignorância do presente.
31.8.08
Traduções para Nina
Ain’t Got No …/ I Got Life - Nina Simone
Ain’t got no home, ain’t got no shoes,
[eu não tenho morada, estou fora da Casa, sem andança, eu tenho apenas meus pés
Ain’t got no money, ain’t got no class,
[sem moedas, eu estou fora da luta de classes, fora das classes, nem o Marxismo me acolhe
Ain’t got no friends, ain’t got no schoolin’,
[não tenho amigos, isso não me serve, estou fora das salas, não tenho escolaridade, a Escola não me cabe
Ain’t got no wear, ain’t got no job,
[sem roupas, eu não tenho emprego nem Trabalho, nem carteira, estou fora dos sindicatos
Ain’t got no money, no place to stay
[sem Dinheiro, sem lugar para ficar, sem passagem, sem lugar para ir, estou fora da Geografia
Ain’t got no father, ain’t got no mother,
[sem pai, sem mãe, sem filhos ou irmãs ou irmãos
Ain’t got no children, ain’t got no sisters or brothers
[fora de Família, da instituição, da Cultura, a cultura não me cabe
Ain’t got no earth, ain’t got no faith
[não tenho terra nem Terra, sem fé, estou fora da Religião,
Ain’t got no church, ain’t got no God
[não tenho igreja, eu estou fora de Deus, Deus não me cabe
Ain’t got no love …
[sem nome, sem Amor, este amor não me cabe
Ain’t got no wine, no cigarrettes
[sem vinhos ou cigarros, os vôos da Classe Média não me fazem feliz
No clothes, no country
[sem classe, nem País, eu não tenho língua pátria
No class, no schoolin’
[sem classe, nem escolaridade, eu não tenho diplomas
No friends, no nothing
[nem amigos, nem nada, mas eu tenho Nada
Ain’t got no God, ain’t got one more
[sem Deus e ainda há mais, bem mais que eu não tenho
Ain’t got no earth, no water,
[eu não tenho terra ou água ou motivos para ter um ou outro
no food, no home,
[ou comida ou casa, eu não quero um teto e não quero um chão
I said ain’t got no clothes, no job
No nothing, ain’t got no believes,
[eu não tenho Crenças
and ain’t got no love
But what have I got?, What have I got?,
[o que eu tenho? onde estou?
Let me tell you what I’ve got
[me diga o que eu tenho, se estou viva, afinal
cause nobody is gonna take away
[algo que ninguém me tire
unless I wanna to
[a não ser que eu queira perder isso
I got my hair, and my head
[eu tenho meu cabelo negro, espesso, uma cabeça curva
my brains, my ears
[meu cérebro, exatamente como o seu, meus ouvidos e meus sons
my eyes, my nose
[meu olhos, meu nariz, meus cheiros
and my mouth, I got my smile
[minha boca, meu sorriso, meus dentes
I got my tongue, my chin
[minha língua cheia de palavras, meu queixo aponta o caminho
my neck, my bubbies
[meu pescoço, meus peitos
my heart, my soul
[meu coração e minha alma, que não valem tanto
and my back, I got my sex
[minhas costas, minha bunda, meu sexo
I got my arms, my hands
[meus braços e minhas mãos que avançam pela multidão, que tocam o piano
my fingers, my legs
[meus dedos e pernas
my feet, my toes
[meus pés e meus dedos
and my liver, Got my blood
[fígado e sangue
I got life , I got lifes,
[eu tenho minha vida e nenhum sistema (teológico, marxista, patriótico), nenhuma rede de sustentação, nenhuma faixa de proteção
I got a headache, and toothache,
[e dores de cabeça e dores de dente e dores do corpo
and bad times too, like you
[e dores da alma, como você
I got my hair, my head
[e este meu cabelo preto que sobe para o alto da cabeça
my brains, my ears
[e meu cérebro e orelhas aos lados da cabeça
my eyes, my nose
[e olhos diretos, objetivos, e nariz
and my mouth, I got my smile
[boca, sorriso...
and is my smile
I got life, I’ve got my freedom,
[tenho minha vida e minha liberdade – eu não posso fazer tudo, mas não estou ligada à nada
and my heart, I got life
“Podemos contrastar a política de identidade com uma política de diferenças em que as identidades são encontradas a partir das diferenças que fazem com que as pessoas se encontrem nas posições em que elas se encontram––enxerguem do ponto de vista que elas enxergam. Audre Lorde (Zami, a new spelling of my name , 226) outra vez pode ajudar a imaginar o que fazer com as diferenças, ela fala da transformação que provoca o abandono da identidade como medida de todas as comunhões:
Sermos mulheres juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos garotas lésbicas juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos negras juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos mulheres negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Sermos lésbicas negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Demorou algum tempo até percebermos que nosso lugar era a casa da diferença ela mesma, ao invés da segurança de qualquer diferença em particular.
Na casa das diferenças, as relações de confiança dão mais trabalho: não há alianças naturais, não há inimigos comuns que estabelecem a agenda, não há regras insinuadas pelo corpo.”
Hilan Bensusan, Mais confiança?
Ain’t got no home, ain’t got no shoes,
[eu não tenho morada, estou fora da Casa, sem andança, eu tenho apenas meus pés
Ain’t got no money, ain’t got no class,
[sem moedas, eu estou fora da luta de classes, fora das classes, nem o Marxismo me acolhe
Ain’t got no friends, ain’t got no schoolin’,
[não tenho amigos, isso não me serve, estou fora das salas, não tenho escolaridade, a Escola não me cabe
Ain’t got no wear, ain’t got no job,
[sem roupas, eu não tenho emprego nem Trabalho, nem carteira, estou fora dos sindicatos
Ain’t got no money, no place to stay
[sem Dinheiro, sem lugar para ficar, sem passagem, sem lugar para ir, estou fora da Geografia
Ain’t got no father, ain’t got no mother,
[sem pai, sem mãe, sem filhos ou irmãs ou irmãos
Ain’t got no children, ain’t got no sisters or brothers
[fora de Família, da instituição, da Cultura, a cultura não me cabe
Ain’t got no earth, ain’t got no faith
[não tenho terra nem Terra, sem fé, estou fora da Religião,
Ain’t got no church, ain’t got no God
[não tenho igreja, eu estou fora de Deus, Deus não me cabe
Ain’t got no love …
[sem nome, sem Amor, este amor não me cabe
Ain’t got no wine, no cigarrettes
[sem vinhos ou cigarros, os vôos da Classe Média não me fazem feliz
No clothes, no country
[sem classe, nem País, eu não tenho língua pátria
No class, no schoolin’
[sem classe, nem escolaridade, eu não tenho diplomas
No friends, no nothing
[nem amigos, nem nada, mas eu tenho Nada
Ain’t got no God, ain’t got one more
[sem Deus e ainda há mais, bem mais que eu não tenho
Ain’t got no earth, no water,
[eu não tenho terra ou água ou motivos para ter um ou outro
no food, no home,
[ou comida ou casa, eu não quero um teto e não quero um chão
I said ain’t got no clothes, no job
No nothing, ain’t got no believes,
[eu não tenho Crenças
and ain’t got no love
But what have I got?, What have I got?,
[o que eu tenho? onde estou?
Let me tell you what I’ve got
[me diga o que eu tenho, se estou viva, afinal
cause nobody is gonna take away
[algo que ninguém me tire
unless I wanna to
[a não ser que eu queira perder isso
I got my hair, and my head
[eu tenho meu cabelo negro, espesso, uma cabeça curva
my brains, my ears
[meu cérebro, exatamente como o seu, meus ouvidos e meus sons
my eyes, my nose
[meu olhos, meu nariz, meus cheiros
and my mouth, I got my smile
[minha boca, meu sorriso, meus dentes
I got my tongue, my chin
[minha língua cheia de palavras, meu queixo aponta o caminho
my neck, my bubbies
[meu pescoço, meus peitos
my heart, my soul
[meu coração e minha alma, que não valem tanto
and my back, I got my sex
[minhas costas, minha bunda, meu sexo
I got my arms, my hands
[meus braços e minhas mãos que avançam pela multidão, que tocam o piano
my fingers, my legs
[meus dedos e pernas
my feet, my toes
[meus pés e meus dedos
and my liver, Got my blood
[fígado e sangue
I got life , I got lifes,
[eu tenho minha vida e nenhum sistema (teológico, marxista, patriótico), nenhuma rede de sustentação, nenhuma faixa de proteção
I got a headache, and toothache,
[e dores de cabeça e dores de dente e dores do corpo
and bad times too, like you
[e dores da alma, como você
I got my hair, my head
[e este meu cabelo preto que sobe para o alto da cabeça
my brains, my ears
[e meu cérebro e orelhas aos lados da cabeça
my eyes, my nose
[e olhos diretos, objetivos, e nariz
and my mouth, I got my smile
[boca, sorriso...
and is my smile
I got life, I’ve got my freedom,
[tenho minha vida e minha liberdade – eu não posso fazer tudo, mas não estou ligada à nada
and my heart, I got life
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“Podemos contrastar a política de identidade com uma política de diferenças em que as identidades são encontradas a partir das diferenças que fazem com que as pessoas se encontrem nas posições em que elas se encontram––enxerguem do ponto de vista que elas enxergam. Audre Lorde (Zami, a new spelling of my name , 226) outra vez pode ajudar a imaginar o que fazer com as diferenças, ela fala da transformação que provoca o abandono da identidade como medida de todas as comunhões:
Sermos mulheres juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos garotas lésbicas juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos negras juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos mulheres negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Sermos lésbicas negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Demorou algum tempo até percebermos que nosso lugar era a casa da diferença ela mesma, ao invés da segurança de qualquer diferença em particular.
Na casa das diferenças, as relações de confiança dão mais trabalho: não há alianças naturais, não há inimigos comuns que estabelecem a agenda, não há regras insinuadas pelo corpo.”
Hilan Bensusan, Mais confiança?
Zeitgeist Americano, Gulag Russo
Em junho de 2007, este filme, Zeitgeist, foi “lançado” on-line – você pode assisti-lo no próprio site ou baixá-lo através do torrent - segue um site possível, mas não o único: http://www.mininova.org/tor/1163059. No site oficial do filme, é explicado que trata-se de um filme produzido por Peter Josehp e criado como “nonprofit expression to inspire people to start looking at the world from a more critical perspective and to understand that very often things are not what the population at large think they are”. No site, ainda: contato, perguntas e respostas, etc.
O documentario se divide em três partes: a primeira sobre a influência de outros sistemas místicos-religiosos sobre a construção do cristianismo; a segunda, sobre o 11 de setembro; e a terceira, sobre a criação do Federal Reserve, banco privado americano responsável pela emissão de cédulas e que determina os caminhos da economia estadunidense. Ao propor que o 9/11 foi um “inside job”, ou seja, que se tratou de uma ação do próprio governo americano no sentido de coagir a população em torno de um inimigo imaginário que justificasse a diminuição de direitos civis e liberdades individuais (o Patriotic Act), o documentário entra na lista do que chamamos de “mais uma teoria da conspiração”.
A primeira parte do documentário trata da desconstrução da religião cristã, que é apresentada como reapropriações de mitos religiosos anteriores pelos romanos. Para mim, a parte mais desisteressante e, não por acaso, a parte mais atacada do filme. Entretanto, mais importante que apontar similaridades entre sistemas místicos diferentes é perceber como o discurso religioso é uma poderosa ferramenta de dominação, que passa não apenas pela construção de nossa noção do que é certo ou errado, do que é pecaminoso e do que é justo, como pela a naturalização de guerras, invasões, crueldades (as cruzadas, a inquisição). Na verdade, este é o mote de todo o filme: os discursos de controle e sua sustentação na violência contra o “homem comum”, “the average man”, sem poderes de defesa e proteção.
O 9/11 se torna também uma poderosa ferramenta, cujos significados são ecoados em pulsos intermináveis na mídia: os valores do patriotismo, o sacrifício pela nação, o não questionamento, a aceitação. Se foi obra de um herdeiro do petróleo “de mal” com os EUA, arquitetando tudo de dentro de sua caverna ou se foi uma ação do próprio Estado, não interessa (cada teoria é tão estapafúrdia e cheia de buracos quanto a outra, mas, afinal, vivemos num mundo em que tudo é possível). O que interessa é o uso do fato, o que interessa é que tipo de discurso este evento faz proliferar, em que meios, visando o quê. Se as guerras em que os EUA se meteu (as guerras mundiais, Vietnã, Afeganistão, Iraque) são guerras patrióticas, guerras do terror ou guerras do dinheiro, o que fica é que são guerras decididas de cima para baixo, em que cidadãos obedientes não são mais que massa de manobra.
Coincidentemente, estou lendo “Arquipelágo Gulag”, do Soljenítsin, outra denúncia, desta vez, contra o comunismo russo. Ainda estou no começo do livro, mas há o suficiente para comentar, especialmente o sistema de aprisionamento e envio ao Gulag ("Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey", "Administração Geral dos Campos"), primeira experiência de campos de concentração.
O totalitarismo americano, sustentação da força de seu capitalismo, se faz através de mecanismos sofisticados: mensagens espalhadas pela mídia, o aproveitamento do 9/11 como justificativa para a retirada legal de direitos e liberdades, o patriotismo como obrigação (não se mata e morre no Iraque pelos EUA ou pelo Iraque, mas pela manutenção simbólica de um poderio decadente).
Já o totalitarismo comunista, apresentado por Soljenítsin num apanhado de informações recebidas de sobreviventes e em leituras, se mostra mais expressivo enquanto um relato individual. De início, em 1918, o sistema de encarceramento Gulag eram para os inimigos do Estado: os sociais-democratas, os socialistas-revolucionários, os remanescentes da nobreza, os intelectuais, até que começa a alcançar as etnias menores que compunham a União Soviética, os professores, os camponeses, os vizinhos. Qualquer um. De qualquer um para todos não há mais distinção.
As prisões se davam em inesperadas gestos na ordem do cotidiano. Um flerte poderia terminar em encarceramento; ao chegar à fábrica, você está preso após bater o cartão; no hospital, em meio à cirurgia de estômago; ao levar à polícia a filha dos vizinhos detidos; os visitantes tornam-se companheiros de cela. Diz o autor: “As prisões políticas em nosso país singularizam-se durante décadas precisamente pelo fato de serem detidas pessoas em nada culpadas e, por isso mesmo, de modo nenhum preparadas para oferecer resistência.” (p. 22) Ao sair de casa, cada soviético se despedia de sua família para nunca mais – e isto era apenas ser realista.
Tudo o que dava errado dentro da estrutura do sistema era creditado aos “sabotadores”: a falta de transporte, de educação, de saúde, a fome geral da população – tudo se devia aos sabotadores e os sabotares poderiam ser qualquer um. Conta Soljenitsi: “Em 1934, os agrônomos de Pskov semearam linho na neve, justamente como tinha ordenado Lissenko. As sementes incharam, cobriram-se de bolor e morreram. Vastos campos permaneceram incultos durante um ano. Lissenko não poderia dizer que a neve era kulak, ou ele próprio era idiota. Acusou os agrônomos de serem kulaks e de terem tergiversado na aplicação de sua tecnologia. E os agrônomos foram mandados para Sibéria.” O Estado detinha o poder de reconstruir a realidade com sua palavra, mesmo que a palavra atual fosse contrária à palavra anterior.
Era dever patriótico de cada cidadão soviético denunciar seu vizinho, seu parente, seu chefe, seu paroquiano nos casos de traição, inserido no artigo 58 que se tornou tão extenso a ponto de fazer caber qualquer ação. A não denúncia determina uma pena tão grave quanto o próprio crime e a prisão se torna um recurso contra aqueles que fazem e também aqueles que não fazem. Um encanador desligava seu aparelho de rádio quando se transmitia os infindáveis discursos de Stálin – foi denunciado por seu vizinho como “elemento socialmente perigoso” e pegou 8 anos. Um padeiro semi-analfabeto treinava uma assinatura no jornal, sobre o rosto do Grande Pai – agitação anti-soviética, 10 anos. Tampouco o s soldados, que lutaram pela URSS, durante a II Guerra, escaparam do Gulag: qualquer um que tivesse estado no exterior estava contaminado pela “ideologia burguesa” e mesmo que calasse sobre a prosperidade e liberdade de outros países, era perigoso aos olhos do Estado.
As acusações começavam com perguntar ao acusado: “O que foi que você fez?” ou “Fale, você sabe do que se trata!”. Este é principio, o ponto de partida e é possível contar com a cooperação – mediante torturas terríveis ou não – de que o cidadão contará os seus pecados. Se não, cria-se novos crimes, comuns ou políticos, que caibam, dos quais se possa dispor. Uma pessoa é acusada de utilizar um nome falso durante anos – mesmo que este seja seu nome verdadeiro! Obriga-se um trabalhador a fazer um ensaio sobre a “planificação na empresa”, sem nenhuma dúvida: algo ele escreverá que ira comprometê-lo!
Adendo ao código de traição, está a especificação: a intenção de trair ou a preparação para trair merecem penas tão ou mais duras que a traição em si – une-se à isso: “presunção de espionagem”, “presunção de espionagem”, “intenção terrorista”. A diferença entre intenção de delito e o delito é uma sutileza burguesa.
O clima de vigilância não apenas do Estado sobre o sujeito, mas dos cidadãos entre si ganha contornos risíveis, se não fossem trágicos. Após um pronunciamento de Stálin, todos se levantam para aplaudir. Após 1, 5, 10 minutos os aplausos continuam e os ouvintes se olham entre si, esperando que alguém pare. As mãos começam a doer, os braços, a formigar... No décimo primeiro minuto, um ouvinte, fingindo atarefamento, pára de bater palmas, no que é seguido pelos outros. Na mesma noite, ele é preso.
Entre os pólos da chamada “guerra fria” – que as teorias mais recentes questionam tratar-se de guerra ou de um pacto silencioso – esta semelhança extremada: o controle, o controle do sujeito através das mais variadas ferramentas, brutais ou sofisticadas.
O documentario se divide em três partes: a primeira sobre a influência de outros sistemas místicos-religiosos sobre a construção do cristianismo; a segunda, sobre o 11 de setembro; e a terceira, sobre a criação do Federal Reserve, banco privado americano responsável pela emissão de cédulas e que determina os caminhos da economia estadunidense. Ao propor que o 9/11 foi um “inside job”, ou seja, que se tratou de uma ação do próprio governo americano no sentido de coagir a população em torno de um inimigo imaginário que justificasse a diminuição de direitos civis e liberdades individuais (o Patriotic Act), o documentário entra na lista do que chamamos de “mais uma teoria da conspiração”.
A primeira parte do documentário trata da desconstrução da religião cristã, que é apresentada como reapropriações de mitos religiosos anteriores pelos romanos. Para mim, a parte mais desisteressante e, não por acaso, a parte mais atacada do filme. Entretanto, mais importante que apontar similaridades entre sistemas místicos diferentes é perceber como o discurso religioso é uma poderosa ferramenta de dominação, que passa não apenas pela construção de nossa noção do que é certo ou errado, do que é pecaminoso e do que é justo, como pela a naturalização de guerras, invasões, crueldades (as cruzadas, a inquisição). Na verdade, este é o mote de todo o filme: os discursos de controle e sua sustentação na violência contra o “homem comum”, “the average man”, sem poderes de defesa e proteção.
O 9/11 se torna também uma poderosa ferramenta, cujos significados são ecoados em pulsos intermináveis na mídia: os valores do patriotismo, o sacrifício pela nação, o não questionamento, a aceitação. Se foi obra de um herdeiro do petróleo “de mal” com os EUA, arquitetando tudo de dentro de sua caverna ou se foi uma ação do próprio Estado, não interessa (cada teoria é tão estapafúrdia e cheia de buracos quanto a outra, mas, afinal, vivemos num mundo em que tudo é possível). O que interessa é o uso do fato, o que interessa é que tipo de discurso este evento faz proliferar, em que meios, visando o quê. Se as guerras em que os EUA se meteu (as guerras mundiais, Vietnã, Afeganistão, Iraque) são guerras patrióticas, guerras do terror ou guerras do dinheiro, o que fica é que são guerras decididas de cima para baixo, em que cidadãos obedientes não são mais que massa de manobra.
Coincidentemente, estou lendo “Arquipelágo Gulag”, do Soljenítsin, outra denúncia, desta vez, contra o comunismo russo. Ainda estou no começo do livro, mas há o suficiente para comentar, especialmente o sistema de aprisionamento e envio ao Gulag ("Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey", "Administração Geral dos Campos"), primeira experiência de campos de concentração.
O totalitarismo americano, sustentação da força de seu capitalismo, se faz através de mecanismos sofisticados: mensagens espalhadas pela mídia, o aproveitamento do 9/11 como justificativa para a retirada legal de direitos e liberdades, o patriotismo como obrigação (não se mata e morre no Iraque pelos EUA ou pelo Iraque, mas pela manutenção simbólica de um poderio decadente).
Já o totalitarismo comunista, apresentado por Soljenítsin num apanhado de informações recebidas de sobreviventes e em leituras, se mostra mais expressivo enquanto um relato individual. De início, em 1918, o sistema de encarceramento Gulag eram para os inimigos do Estado: os sociais-democratas, os socialistas-revolucionários, os remanescentes da nobreza, os intelectuais, até que começa a alcançar as etnias menores que compunham a União Soviética, os professores, os camponeses, os vizinhos. Qualquer um. De qualquer um para todos não há mais distinção.
As prisões se davam em inesperadas gestos na ordem do cotidiano. Um flerte poderia terminar em encarceramento; ao chegar à fábrica, você está preso após bater o cartão; no hospital, em meio à cirurgia de estômago; ao levar à polícia a filha dos vizinhos detidos; os visitantes tornam-se companheiros de cela. Diz o autor: “As prisões políticas em nosso país singularizam-se durante décadas precisamente pelo fato de serem detidas pessoas em nada culpadas e, por isso mesmo, de modo nenhum preparadas para oferecer resistência.” (p. 22) Ao sair de casa, cada soviético se despedia de sua família para nunca mais – e isto era apenas ser realista.
Tudo o que dava errado dentro da estrutura do sistema era creditado aos “sabotadores”: a falta de transporte, de educação, de saúde, a fome geral da população – tudo se devia aos sabotadores e os sabotares poderiam ser qualquer um. Conta Soljenitsi: “Em 1934, os agrônomos de Pskov semearam linho na neve, justamente como tinha ordenado Lissenko. As sementes incharam, cobriram-se de bolor e morreram. Vastos campos permaneceram incultos durante um ano. Lissenko não poderia dizer que a neve era kulak, ou ele próprio era idiota. Acusou os agrônomos de serem kulaks e de terem tergiversado na aplicação de sua tecnologia. E os agrônomos foram mandados para Sibéria.” O Estado detinha o poder de reconstruir a realidade com sua palavra, mesmo que a palavra atual fosse contrária à palavra anterior.
Era dever patriótico de cada cidadão soviético denunciar seu vizinho, seu parente, seu chefe, seu paroquiano nos casos de traição, inserido no artigo 58 que se tornou tão extenso a ponto de fazer caber qualquer ação. A não denúncia determina uma pena tão grave quanto o próprio crime e a prisão se torna um recurso contra aqueles que fazem e também aqueles que não fazem. Um encanador desligava seu aparelho de rádio quando se transmitia os infindáveis discursos de Stálin – foi denunciado por seu vizinho como “elemento socialmente perigoso” e pegou 8 anos. Um padeiro semi-analfabeto treinava uma assinatura no jornal, sobre o rosto do Grande Pai – agitação anti-soviética, 10 anos. Tampouco o s soldados, que lutaram pela URSS, durante a II Guerra, escaparam do Gulag: qualquer um que tivesse estado no exterior estava contaminado pela “ideologia burguesa” e mesmo que calasse sobre a prosperidade e liberdade de outros países, era perigoso aos olhos do Estado.
As acusações começavam com perguntar ao acusado: “O que foi que você fez?” ou “Fale, você sabe do que se trata!”. Este é principio, o ponto de partida e é possível contar com a cooperação – mediante torturas terríveis ou não – de que o cidadão contará os seus pecados. Se não, cria-se novos crimes, comuns ou políticos, que caibam, dos quais se possa dispor. Uma pessoa é acusada de utilizar um nome falso durante anos – mesmo que este seja seu nome verdadeiro! Obriga-se um trabalhador a fazer um ensaio sobre a “planificação na empresa”, sem nenhuma dúvida: algo ele escreverá que ira comprometê-lo!
Adendo ao código de traição, está a especificação: a intenção de trair ou a preparação para trair merecem penas tão ou mais duras que a traição em si – une-se à isso: “presunção de espionagem”, “presunção de espionagem”, “intenção terrorista”. A diferença entre intenção de delito e o delito é uma sutileza burguesa.
O clima de vigilância não apenas do Estado sobre o sujeito, mas dos cidadãos entre si ganha contornos risíveis, se não fossem trágicos. Após um pronunciamento de Stálin, todos se levantam para aplaudir. Após 1, 5, 10 minutos os aplausos continuam e os ouvintes se olham entre si, esperando que alguém pare. As mãos começam a doer, os braços, a formigar... No décimo primeiro minuto, um ouvinte, fingindo atarefamento, pára de bater palmas, no que é seguido pelos outros. Na mesma noite, ele é preso.
Entre os pólos da chamada “guerra fria” – que as teorias mais recentes questionam tratar-se de guerra ou de um pacto silencioso – esta semelhança extremada: o controle, o controle do sujeito através das mais variadas ferramentas, brutais ou sofisticadas.
22.8.08
Dicas Cinematográficas
Porque o capitalismo é, antes de tudo, a miséria dos afetos:
O olhar de desaparecimento, desaparecimento de si:
O olhar de desaparecimento, desaparecimento de si:
10.8.08
9.8.08
Barthianas
“…toda biografia é um romance que não ousa dizer seu nome.”
“Evidentemente, é sempre um pouco delicado falar de nós mesmo como nós mesmos, não é?… como se existíssemos como pessoas, como eu.”
“É, pois, aí que nossa enquete deve começar, nesse momento em que os escritores de esquerda, definidos e congregados pelas opiniões que professam, pelas palavras de ordem que defendem, pelos manifestos que assinam, pelos congressos que freqüentam e pelas revistas nas quais escrevem, eclipsam-se, porém, diante de sua obra, impõe silêncio à sua pessoa e deixam que apareça, por trás deles, a literatura em sua solidão e em seu enigma, em pé diante do olhar verdadeiro da História.”
“A Utopia é o campo do desejo, diante da Política, que é o campo da necessidade. Donde as relações paradoxais desses dois discursos: eles se completam, mas não se compreendem; a Necessidade censura o Desejo por sua irresponsabilidade, sua futilidade; o Desejo reprova a Necessidade por suas censuras, seu poder redutor (…).”
“Talvez aos olhos de nossos pirrônicos burgueses, o marxismo contemporâneo seja um paradoxo cujo sucesso choca insolentemente a sã lógica científica. Mas para numerosos dissidentes, cujo destino individual continua sendo fecundado pelo marxismo, o dogmatismo moscovita não é um escândalo: é uma tragédia, em meio à qual eles tentam manter, assim como o coro antigo, a consciência do infortúnio, o gosto pela esperança e a vontade de entender.”
“Essa pobreza inverte a opção hippie como cópia caricatural da alienação econômica, e essa cópia, ostentada com leviandade, enche-se em contrapartida de uma irresponsabilidade positiva. Pois a maioria dos traços inventados pelo hippie contra a sua civilização de origem (que é a civilização da riqueza) são exatamente os mesmos que marcam a pobreza, não como signo, porém – bem mais severamente – como índice ou efeito: a sub-refeição, o alojamento coletivo, os pés descalços, a sujeira, o andrajo são então forças que não servem para lutar simbolicamente contra a pletora dos bens, mas são as forças efetivas contra as quais é preciso lutar; (…); passados para o lado da positividade, eles (os símbolos) deixam de ser jogo, forma superior de atividade simbólica, e passam a ser disfarce, forma inferior do narcisismo cultural: o contexto, como na boa regra lingüística, inverte o sentido, e o contexto, aqui, é a economia.”
“Viram-se assim a maior parte das liberações postuladas, as da sociedade, da cultura, da arte, da sexualidade, enunciar-se sob as espécies de um discurso de poder: vangloriavam-se de pôr em evidência o que havia sido esmagado, sem ver o que, assim fazendo, se esmagava alhures.”
Trechos de "Inéditos Vol 4 - Política", de Roland Barthes (edição das obras completas pela Martins Fontes)
“Evidentemente, é sempre um pouco delicado falar de nós mesmo como nós mesmos, não é?… como se existíssemos como pessoas, como eu.”
“É, pois, aí que nossa enquete deve começar, nesse momento em que os escritores de esquerda, definidos e congregados pelas opiniões que professam, pelas palavras de ordem que defendem, pelos manifestos que assinam, pelos congressos que freqüentam e pelas revistas nas quais escrevem, eclipsam-se, porém, diante de sua obra, impõe silêncio à sua pessoa e deixam que apareça, por trás deles, a literatura em sua solidão e em seu enigma, em pé diante do olhar verdadeiro da História.”
“A Utopia é o campo do desejo, diante da Política, que é o campo da necessidade. Donde as relações paradoxais desses dois discursos: eles se completam, mas não se compreendem; a Necessidade censura o Desejo por sua irresponsabilidade, sua futilidade; o Desejo reprova a Necessidade por suas censuras, seu poder redutor (…).”
“Talvez aos olhos de nossos pirrônicos burgueses, o marxismo contemporâneo seja um paradoxo cujo sucesso choca insolentemente a sã lógica científica. Mas para numerosos dissidentes, cujo destino individual continua sendo fecundado pelo marxismo, o dogmatismo moscovita não é um escândalo: é uma tragédia, em meio à qual eles tentam manter, assim como o coro antigo, a consciência do infortúnio, o gosto pela esperança e a vontade de entender.”
“Essa pobreza inverte a opção hippie como cópia caricatural da alienação econômica, e essa cópia, ostentada com leviandade, enche-se em contrapartida de uma irresponsabilidade positiva. Pois a maioria dos traços inventados pelo hippie contra a sua civilização de origem (que é a civilização da riqueza) são exatamente os mesmos que marcam a pobreza, não como signo, porém – bem mais severamente – como índice ou efeito: a sub-refeição, o alojamento coletivo, os pés descalços, a sujeira, o andrajo são então forças que não servem para lutar simbolicamente contra a pletora dos bens, mas são as forças efetivas contra as quais é preciso lutar; (…); passados para o lado da positividade, eles (os símbolos) deixam de ser jogo, forma superior de atividade simbólica, e passam a ser disfarce, forma inferior do narcisismo cultural: o contexto, como na boa regra lingüística, inverte o sentido, e o contexto, aqui, é a economia.”
“Viram-se assim a maior parte das liberações postuladas, as da sociedade, da cultura, da arte, da sexualidade, enunciar-se sob as espécies de um discurso de poder: vangloriavam-se de pôr em evidência o que havia sido esmagado, sem ver o que, assim fazendo, se esmagava alhures.”
Trechos de "Inéditos Vol 4 - Política", de Roland Barthes (edição das obras completas pela Martins Fontes)
Passagem - MargaretAtwood
Passagem
Margaret Atwood
Você esperava uma estrada, um rio, um barco, um portão, um guardião. Tudo isso existe, embora nada fosse como vocês tinha imaginado. A estrada era igual a muitas das ruas que você tinha percorrido tantas vezes: de concreto, com a sujeito de sempre – chiclete velho, cuspe fresco, um ou outro cocô de cachorro. Seus pés estavam cansados – de quem eram os sapatos que você estava usando? –, mas não havia lugar para sentar. O rio, quando você chegava nele, era um canal, estagnado, com algas e sacos plásticos boiando. Havia um velho barco encalhado ali, mas nenhum caminho levava a ele. Em vez disso, a rua levava você a cruzar uma ponte de ferro, pintada de cinza. Depois disso vinha um muro de tijolos vermelhos que se estendia por um longo tempo. Ele tinha cartazes colados – o anúncio de uma peça ou de um filme –, o mesmo cartaz, multiplicado várias vezes. Ele mostrava um rosto de mulher com uma expressão espantada, a mão erguida como que para se proteger, com letras grandes em azul e laranja e palavras escritas numa letra menor: críticas favoráveis de jornal, sem dúvida, mas por algum motivo não dava para ler. Além dos cartazes, havia nomes escritos com spray no tijolo – ninguém que você conhecesse – e símbolos desenhados em rosa forte que sugeriam os animais torcidos de bola de encher feitos por palhaços de festas infantis.
No fim vinha a passagem. Tinha um portão de aço preso no muro de tijolo. Ele era dentado, como se as pessoas o tivessem chutado com botas pesadas. O guardião estava encostado nele. Tinha o ar de um homem que vinha tendo um sono agitado havia algum tempo. Jeans velho, barba por fazer, sandálias arrebentadas; uma mochila rasgada a seus pés.
Você chegou finalmente, ele disse. Estas são as suas coisas. Eu as guardei para você. Minhas coisas? – você perguntou. Você examinou a mochila. Ela não lhe parecia familiar. O que ele quis dizer com coisas? Uma escova de dentes, roupa de baixo?
Coisas que você guardou, ele afirmou. Para esta ocasião.
Você ergueu a mochila. Era bem leve. Você imaginou se haveria um sanduíche lá dentro. Você não estava com fome, mas talvez tivesse fome mais tarde. Você examinou o portão. Não havia janelas nele. Não havia fechadura.
Eu tenho que entrar aí?, você perguntou.
Preciso fazer algumas perguntas primeiro, ele disse. Pense cuidadosamente antes de responder.
Tudo bem, você afirmou. Você tinha uma idéia a respeito das perguntas: pediriam para você prestar contas de si mesmo, e para admitir suas faltas, fossem quais fossem. Você achou que estava pronto. Você não tinha sido perfeito, mas ninguém ia querer perfeição. Certamente que não, senão quem conseguiria entrar?
Aqui estão as perguntas, ele disse. Qual é a sua cor preferida? Você amou o seu gato? Algum dia encontrou uma moeda na calçada? Você foi feliz?
De repente estamos no presente do indicativo. A primeira pergunta o deixa confuso. Você tem ou não uma cor preferida? Não consegue lembrar. Tudo o que você tinha intenção de dizer em sua defesa lhe fugiu da cabeça. Agora começou a soprar um vento: cartazes rasgados voam pela rua, bocas abertas, mãos, olhos. Talvez você devesse abrir a mochila. Você nunca teve um gato. O que as moedas têm a ver com isso? Deve haver algum engano.
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