24.7.06

Uma segunda chance

…se eu pudesse começar tudo de novo, Deus – com a barba de Marx ou saído dos delírios de Schreber – desceria de uma nuvem e me concederia o maior dos desejos que apenas os maiores arrependimentos podem tecer. Ele desceria e lhe diria – ‘tudo de novo, desde o começo, do jeito que você quiser, tudo refeito, você escolhe onde nascer, de quem nascer, uma página em branco, as variáveis e as constantes são suas e só suas, o experimento é você quem comanda’ (Deus fala a linguagem das estatísticas).

Ainda assim, nada disso adiantaria. O problema é anterior às situações e suas alterações, às determinações de classe, nacionalidade, cor... O problema, pensa, é ele mesmo. Irredutível, indissolúvel, não solucionável. Pesando demais – lhe cansa carregar-se assim, lhe cansa que o mais discreto em si é sempre gritante para os outros, ou que o mais expansivo é um mistério que o isola dos outros.

Tudo isso possui o potencial do absoluto, do Demais; para além da simbolização, da sublimação, da ebulição. Não se desfaz. Sempre foi assim. E sempre foi esta alternância, esta tensão impossível de síntese: ele precisa se impor, para além dos outros, ele precisa demonstrar, através de critérios: eu sou (ainda em suas comparações com Deus), para além de quem eu sou ou de o que eu sou, os critérios que sejam: intelectuais, carismáticos, sexuais, quais sejam. Sejam quais você quiser. De outro lado, o desejo desesperado de entrar numa espiral de desaparecimento, secar até virar um umbigo e, depois, não virar nada, desaparecer numa nuvem de absolutamente nada – mas um Nada assim auto-sustentável, anterior, auto-referenciável. E, caso sobrasse alguma coisa, uma coisinha de nada, esta coisa se auto-implicaria até que nada mais sobrasse de si mesma. Não é que ele tenha perigosos segredos – é que ele mesmo é um segredo, concreto, ambulante, espalhafatoso, mas ainda secreto.

E as mulheres, então? As mulheres... Elas estão sempre lá, física ou fantasiosamente, lhe esperando na curva de uma esquina, no momento em que abre inadvertidamente uma porta, umas vampiras prontas para sugar até a última gota da sua imaginação e libido. Ele sabe, no primeiro momento que as vê, o que vai acontecer. É um dor localizada, como um prenúncio, um sinal, exatamente no alto de seu estômago, uma lâmina que raspasse, num momento ínfimo, a sexta costela do lado esquerdo, e, depois, de súbito, a dor desaparecesse, ficando apenas a ordem. Esta dor marca a visão, esta dor é um imperativo, a dor cria a visão. Elas sabem, é claro, e exigem dele sempre grandes atos: a perseguição amorosa, por exemplo, que cria nele uma sensibilidade perigosa que beira o desgaste, ele deve ficar sempre a um passo, sempre a pender nas bordas da paixão, de tal forma que uma brisa, o vento entrando por uma porta aberta poderia te fazer cair.

Estas mulheres são como máquinas – as máquinas não são conscientes do estrago que fazem quando estão desreguladas, as máquinas obsessivas, então, nem se fala: os cortadores de grama vão andando sozinhos, as ceifadeiras atravessam a rua, os sinais mudam de cor de uma forma esquizofrênica, indiferentes aos carros retorcidos e aos corpos destroçados, etc, etc... Ou como doenças: os vírus e as bactérias não tem intenção de machucar ninguém, coitadinhos, mas isso não diminui a intensidade do estrago que eles fazem (você preenche isso com outras imagens, imagens bonitas). E, no fim das contas, tudo o que ele pode fazer é tentar injetar algum remorso na mente destas máquinas, no coração destas doenças.

Ele não exigia menos – ele não deixava passar. Tratava-se de uma estratégia para domar as coisas: domar a fúria com gentilezas desproporcionais; domar o desprezo às pessoas, a vontade de socá-las até que elas entendam, com uma paciência infinita e desimplicada, multiplicada em 'por favores' e 'obrigados'; domar tudo de obscuro, de vergonhoso – sexualmente vergonhoso, se for o caso – tentando não enxergar nada disso nas outras pessoas. Domar o sujo colocando as coisas sempre de um jeito bonito. Domar a obsessão treinando a distração. Domar o remorso cultivando o esquecimento. Mas as estratégias nem sempre dão certo, mesmo que – e pode ter certeza disso – ele tenha aplicado uma força, uma vontade de ferro nisso tudo. Mas as barras de ferro, de muito enferrujadas, envergam, provocando pequenas dissoluções na realidade, como os contornos que se perdem quando você pinta a sua aquarela...

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