23.7.06

Paulicéias

... é tudo muito rápido, parece que, mesmo de férias, estamos todos atrasados. companheiros de doze minutos de trajeto comum do metrô. não dá para olhar as pessoas, acarinhá-las com olhar, espiá-las, espiar o título do livro que estão lendo, achar a posição mais discreta para ouvir o que conversam sem que elas possam perceber, adivinhar – ou inventar – suas histórias, pensar qual seria a arvore genealógica que criou tal e tal rosto, o que comanda a posição do corpo. a impressão é de uma grande mistura, de gentes saindo do metrô e sendo liquefeitas numa massa anônima, um caldo heterogêneo...

... falo do fundo da rinite que me atacou assim que coloquei os pés na cidade, ainda na marginal tietê; minha voz sai como que submergida, o nível da água bem acima da minha cabeça; vejo o espanto no olhar dos outros, não porque saiam bolhinhas de ar da minha boca quando falo mas porque, simplesmente, não me ouvem; enquanto isso, da inundação causada pela doença, a voz implode dentro da minha cabeça, de dentro para fora, alta, tão alta, contra os ouvidos...

... da pequena farmácia que trago sempre comigo – o primeiro comprimido para fazer dormir, o segundo para tentar secar a rinite, o terceiro, bem, o terceiro porque não sou tão alta assim – descubro que os remédios não funcionam muito bem juntos, funcionam em curto-circuito: acordo, de madrugada, sentindo o nariz borbulhar, enquanto os pés se expandem para o lado de fora da cama...

...na loja de roupas, a cliente, de dentro do provador, pede uma outra blusa para a atendente. ela diz:
- Eu estava te procurando. Este número está grande demais.
- Claro, já busco. Qual seu nome?
- Ducha. E o seu?
- Leka.
Um encontro perfeito.

... tenho um tombo tão poderoso, que as pedras da avenida paulista pulam na minha queda. caio como um gigante – apesar dos parcos 1,60m – , uma estátua de mármore que se decompõe, e as pedras do calçamento me sabem um lutador de sumô, apesar das balanças – seres menos impressionáveis – acusarem pouco mais de 50 quilos...

...depois de três dias, é possível se sentir mais em casa, apesar do que, ao contrário dos nativos, ainda ando na rua com todo o meu kit-inverno: casaco, cachecol, luva, etc. deixo de pentear o cabelo e visto roupas desencontradas; entro na primeira livraria com promoção de R$ 9,90. tiro os sapatos enquanto folheio os livros e deixo a vista as meias, também desencontradas, que comprei ontem. passeio empurrando meus sapatos com pequenos chutes, os calço apenas quando acho algo muito interessante (George Perec, “A Coleção Particular”). ninguém se espanta, não afronta ninguém. não há esquisitice – deliberada ou involuntária – que a paulicéia não abarque, nenhuma esquisitice que a cidade não comporte e conserve...

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