A forma da doença é o medo do medo do medo do medo. A forma da doença é a análise infinita de cada palavra, cada gesto, cada mínima suposição de ação, em termos de futuro, realização, capacidade, sobrevivência, solidão. A gravidade da doença é analisada pela opressão no peito e o desejo de diminuir sua intensidade retirando, não-cirurgicamente, seja lá o que for que mora lá dentro (o medo pânico nasce de um lugar certo, três dedos acima do umbigo, um palmo de profundidade, de onde ele emerge, brilhante e racional como uma flor carnívora que desabrocha, alerta como uma aranha gorda no beiral da porta, comendo os órgãos por dentro). Guardo, faço guarda a este pânico como quem doma um cavalo arredio, mordido por um percevejo.
Não há escolhas casuais ou decisões aleatórias. Declarar guerra contra um país vizinho, roubar uma velhinha no sinal, escolher um emprego para o resto da vida, mudar-se para uma cidade do outro lado do oceano, combinar as roupas e os sapatos, escovar os dentes novamente, como segurar uma caneta, que inclinação dar ao “L”. Todas as decisões são tomadas com a mesma intensidade. Todas as decisões têm o mesmo peso – não sobre o universo, que não se importa muito com minimalismos –, mas sobre o tomador de decisões.
A doença é como um mundo paralelo, sutilmente atado ao mundo real, onde moram as pessoas não-doentes, para quem o cotidiano não é esta fonte de martírios e provações. Disfarçada, caminho normalmente, entre os não-doentes, tentando esconder que já não sou mais quem era pois sei de algo que não posso ignorar. Desapaixono-me – um a um, amores e amigos (desapaixono-me porque entendo que todas estas relações são sustentadas por um fascínio pelo outro que deve, necessariamente, resvalar sobre a paixão). Tento aceitar isso – a intensidade do desinteresse causado por minhas marcas no mundo – sem tristeza. Tento me alegrar em não me importar. O mundo cresce à minha ignorância e eu já não valho nada dentro dele.
Leio em Vila-Matas: "Gostava de desaparecer um dia, sem me despedir". Entre a vida e a literatura, é hora de escolher a segunda. É a literatura que pode curar a doença, curar das pessoas, curar da vida. Mesmo que meu desejo seja não fazer herdeiros, não ser mais tolerante com parentes, indulgente com amigos ou simpática com estranhos. Se, para Cabral, "o amor comeu minha identidade", espero a literatura devorar minha vida.
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