28.7.10

Da amizade



O amigo

3.
Na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma conserva-se um quadro de Giovanni Serodine que representa o encontro dos apóstolos Pedro e Paulo na estrada do martírio. Os dois santos, imóveis, ocupam o centro da tela, circundados pela gesticulação desordenada dos soldados e carrascos que os conduzem ao suplício. Os críticos frequentemente notaram o contraste entre o rigor heroico dos dois apóstolos e a comoção da multidão, iluminada aqui e ali por partículas de luz quase esboçadas ao acaso sobre os braços, os rostos e as trombetas. Da minha parte, penso que aquilo que torna este quadro propriamente incomparável é que Serodine representou os dois apóstolos tão próximos, com as frontes quase coladas uma na outra, que estes absolutamente não podem se ver: na estrada para o martírio, estes se olham sem se reconhecerem. Essa impressão de uma proximidade por assim dizer excessiva é ainda acrescida do gesto silencioso das mãos que se apertam embaixo, dificilmente visíveis. Sempre me pareceu que esse quadro contenha uma perfeita alegoria da amizade. O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como "algo". Não se pode dizer "amigo" como se diz "branco", "italiano" ou "quente" - a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito.

5.
5) O amigo é, por isso, um outro si, um heteros autos. Na sua tradução latina - alter ego - esta expressão teve uma longa história, que não é aqui o lugar de reconstruir. Mas é importante notar que a formulação grega tem algo a mais do que nela compreende um ouvido moderno. Antes de tudo, o grego - como o latim - tem dois termos para dizer a alteridade: allos (lat. alius) é a alteridade genérica, heteros (lat. alter) é a alteridade como oposição entre dois, a heterogeneidade. Além disso, o latim ego não traduz exatamente autos, que significa "si mesmo". O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na "mesmidade", um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu percebo a minha existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e a deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si.

"O que é contemporâneo? e outros ensaios",
Giorgio Agamben

A morte do avô

Que a morte seja então um processo
Uma pesagem, pesar de lembranças

Melhor viajando do que morto
Melhor infartado do que morto
Melhor entrevado do que morto
Melhor vegetando do que morto
E, se morto, melhor idéia do que corpo.

Melhor pela manhã do que pela tarde
Melhor distante do que perto
(porque presença mais ausente)
Melhor quase humano.

Melhor carne do que cera, do que plástico
Melhor quase quente
Melhor coberto
Melhor tudo.

Mas, se assim,
Melhor aí em frente do que lá embaixo
Melhor na vista do que longe dela
Do que abaixo dela
Do que nunca mais.

AJ

Junho de 2001

Dos mortos que nos acompanham



Marcel Proust
(1871-1922)

A felicidade é...

... 4 gigabytes de música.

(Aime Mann)
(PJ Harvey)
(A trilha sonora de "Onde moram os monstros")
(Yeah Yeah Yeah)
(Adriana Partimpim)
(Suzane Vega)
(Marina de La Riva)
(The Stooges)
(Peaches)
(Mundo Livre S.A.)
(Arnaldo Antunes)
(Nina Simone)
(Yo la tengo)
(Teresa Cristina)
(Scarlett Johansson)
(MC Solar)
(Cat Power)
(Cesaria Evora)
(Último CD do Lenine)
(Madredeus)

Pelo direito à errância ou Filosofias de Viagem

Saindo da loja, estou incerto. Deveria continuar meu percurso em direção à universidade, seguindo os conselhos pertinentes do livreiro antiquário, para não falar da biblioteca municipal. Mas é um momento em que sinto mais intensamente a tentação de me perder, de vagar. Talvez não seja um percurso, somente uma intermitência entre a probabilidade e a improbabilidade. É como se cada deslocamento fosse decicido por mim ali mesmo, para ver onde leva, e essa descoberta então não fosse senão o início do que procurava.
"O Estádio de Wimbledon",
Daniele Del Giudice

24.7.10

"Maybe you're just sentimental..."




"My blueberry nights"
2007
Won Kar-Way

Outra forma: a leitura

Quero decir, Borges inventa al lector como héroe a partir del espacio que se abre entre la letra y la vida. Y ese lector (que a menudo dice llamarse Borges pero también puede llamarse Pierre Menard o Hermann Soergel o ser el anónimo bibliotecario jubilado de "El libro de arena") es uno de los personajes más memorables de la literatura contemporánea. El lector más creativo, más arbitrario, más imaginativo que haya existido desde don Quijote. Y el más trágico.

(...) Se trata, en cambio, de alguien perdido en una biblioteca, que va de un libro a otro, que lee una serie de libros y no un libro aislado. Un lector disperso en la fluidez y el rastreo, que tiene todos los volúmenes a su disposición. Persigue nombres, fuentes, alusiones, pasa de una cita a otra, de una referencia a otra.

El registro microscópico de las lecturas también se expande, el lector va de la cita al texto como serie de citas, el lector va de la cita al texto como serie de citas, del texto al volumen como serie de textos, del volumen a la enciclopedia, de la enciclopedia a la biblioteca. Ese espacio fantástico no tiene fin porque supone la impossibilidad de cerrar la lectura, la abrumadora sensación de todo lo que queda por leer.

Sin embargo, algo, siempre, en esa serie, falla: una cita que se ha extraviado, una página que se espera encontrar y que está en otro lado.

(...)

La versión contemporánea de la pregunta "qué es un lector" se instala allí. El lector ante el infinito y la proliferación. No el lector que lee un libro, sino el lector perdido en una red de signos.
"El último lector",
Ricardo Piglia.

23.7.10

"Os Informantes", Bret Easton Ellis


E como fazer pulsar qualquer subjetividade debaixo do espesso véu de uma alienação máxima?



A forma da doença

Lucian Freud

A forma da doença é o medo do medo do medo do medo. A forma da doença é a análise infinita de cada palavra, cada gesto, cada mínima suposição de ação, em termos de futuro, realização, capacidade, sobrevivência, solidão. A gravidade da doença é analisada pela opressão no peito e o desejo de diminuir sua intensidade retirando, não-cirurgicamente, seja lá o que for que mora lá dentro (o medo pânico nasce de um lugar certo, três dedos acima do umbigo, um palmo de profundidade, de onde ele emerge, brilhante e racional como uma flor carnívora que desabrocha, alerta como uma aranha gorda no beiral da porta, comendo os órgãos por dentro). Guardo, faço guarda a este pânico como quem doma um cavalo arredio, mordido por um percevejo.

Não há escolhas casuais ou decisões aleatórias. Declarar guerra contra um país vizinho, roubar uma velhinha no sinal, escolher um emprego para o resto da vida, mudar-se para uma cidade do outro lado do oceano, combinar as roupas e os sapatos, escovar os dentes novamente, como segurar uma caneta, que inclinação dar ao “L”. Todas as decisões são tomadas com a mesma intensidade. Todas as decisões têm o mesmo peso – não sobre o universo, que não se importa muito com minimalismos
, mas sobre o tomador de decisões.

A doença é como um mundo paralelo, sutilmente atado ao mundo real, onde moram as pessoas não-doentes, para quem o cotidiano não é esta fonte de martírios e provações.
Disfarçada, caminho normalmente, entre os não-doentes, tentando esconder que já não sou mais quem era pois sei de algo que não posso ignorar. Desapaixono-me um a um, amores e amigos (desapaixono-me porque entendo que todas estas relações são sustentadas por um fascínio pelo outro que deve, necessariamente, resvalar sobre a paixão). Tento aceitar isso – a intensidade do desinteresse causado por minhas marcas no mundo – sem tristeza. Tento me alegrar em não me importar. O mundo cresce à minha ignorância e eu já não valho nada dentro dele.

Leio em Vila-Matas: "Gostava de desaparecer um dia, sem me despedir". Entre a vida e a literatura, é hora de escolher a segunda. É a literatura que pode curar a doença, curar das pessoas, curar da vida. Mesmo que meu desejo seja não fazer herdeiros, não ser mais tolerante com parentes, indulgente com amigos ou simpática com estranhos. Se, para Cabral, "o amor comeu minha identidade", espero a literatura devorar minha vida.

11.7.10

O latente que lateja

Qualquer um que conviveu com uma criança no período edípico acredita que a latência existe. Pouco antes, se tinha um sujeitinho litigioso, desbocado, que muito trabalho dava aos seus cuidadores. Quando menino, testava o limite até o fim da paciência, tendo como recompensa a constatação do poder paterno (ou sucedâneo), dava caricaturais demonstrações de potência e possuía suas fêmeas (mãe e substitutas), com a sutileza de um leão no cio. Quando menina, dona de uma agressividade mais sutil, dava um jeito de dizer diariamente como a mãe ganharia o concurso de mulher mais feia da Transilvânia, além de gerar todo o tipo de confusão possível em torno dos hábitos de alimentação, higiene e vestimenta, não sendo raro encontrar um exemplar destas vestida de odalisca, ou qualquer outra fantasia absurda, na rua e no frio, devido à derrota da família em lhe pôr a roupa. Após a tempestade, a paisagem é de uma calmaria inacreditável. As famílias só podem amar a latência.


"Édipo, Latência e Puberdade",
Diana M. Lichtenstein Corso.

In: Clínica da Adolescência,
Associação Psicanalítica de Porto Alegre No. 23.