O amigo
3.
Na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma conserva-se um quadro de Giovanni Serodine que representa o encontro dos apóstolos Pedro e Paulo na estrada do martírio. Os dois santos, imóveis, ocupam o centro da tela, circundados pela gesticulação desordenada dos soldados e carrascos que os conduzem ao suplício. Os críticos frequentemente notaram o contraste entre o rigor heroico dos dois apóstolos e a comoção da multidão, iluminada aqui e ali por partículas de luz quase esboçadas ao acaso sobre os braços, os rostos e as trombetas. Da minha parte, penso que aquilo que torna este quadro propriamente incomparável é que Serodine representou os dois apóstolos tão próximos, com as frontes quase coladas uma na outra, que estes absolutamente não podem se ver: na estrada para o martírio, estes se olham sem se reconhecerem. Essa impressão de uma proximidade por assim dizer excessiva é ainda acrescida do gesto silencioso das mãos que se apertam embaixo, dificilmente visíveis. Sempre me pareceu que esse quadro contenha uma perfeita alegoria da amizade. O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como "algo". Não se pode dizer "amigo" como se diz "branco", "italiano" ou "quente" - a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito.
5.
5) O amigo é, por isso, um outro si, um heteros autos. Na sua tradução latina - alter ego - esta expressão teve uma longa história, que não é aqui o lugar de reconstruir. Mas é importante notar que a formulação grega tem algo a mais do que nela compreende um ouvido moderno. Antes de tudo, o grego - como o latim - tem dois termos para dizer a alteridade: allos (lat. alius) é a alteridade genérica, heteros (lat. alter) é a alteridade como oposição entre dois, a heterogeneidade. Além disso, o latim ego não traduz exatamente autos, que significa "si mesmo". O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na "mesmidade", um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu percebo a minha existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e a deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si.
"O que é contemporâneo? e outros ensaios",
Giorgio Agamben
Giorgio Agamben