Então, esta estranha sensação de ter perdido alguma coisa, de ter faltado a algum encontro há muito tempo marcado, mas que eu não consigo lembrar claramente com quem. A certeza de ter abandonado alguns projetos, mas não qualquer projeto, projetos muito específicos, nada de planos de viagens ou comprar um carro com quatro portas ou morar numa casa de campo. Tratava-se de “projetos de ser” (projetos de diferença, de juventude, de desgaste), quem eu gostaria de ser, quem eu me exigia ser, do que eu precisava viver e agora é tarde, os projetos não são mais realizáveis porque agora eu sou uma outra pessoa, uma pessoa que é uma outra coisa, uma coisa que não comporta mais estes projetos.
É nos atendimentos que eu encontro um sentimento de apagamento me tranqüiliza, um “círculo branco”. Todas estas questões – ser, a quem ser, mas quem realmente é? – desaparecem. Eu desapareço, por mais que certa ansiedade se mantenha, residual, sobre o que dizer ou como dizer, mas o eu, esta minúscula célula de eu, encapsulada pelo narcisismo, desaparece. Eu me torno olhos para ver e ouvidos para ouvir, deixoando de ser coisa que possa ser olhada ou até mesmo pessoa que deveria ser ouvida. Eu busco por este desaparecimento, por esta imobilidade, esta invisibilidade. Eu me torno pedra, rocha, terra, algum material resistente, mas ainda vivo, ondulante, com poros sensíveis aos sopros que vêem não se sabe de onde (são estes sopros as únicas intervenções que valem a pena serem compartilhadas - não, não é mística, é só o inconsciente). Preservo este lugar de vazio, de tranqüila ausência e chego a estranhar a curiosidade dos pacientes, as perguntas pessoais, quase esquecendo: curiosidade é sempre investimento libidinal...
3 comentários:
Aí está você de novo. Como faz falta aos anônimos do planeta essa categoria que só você é capaz de possuir, algo seu, uma espécie de realismo-fantástico-pessoal, ou uma escrita repleta de jogos de linguagem, de paradoxos e antíteses, onde o leitor não sabe se o ponto final é de fato o fim da história, quando não se perde nesse labirinto de letras, ou quando encontra a si mesmo em qualquer parte desse labirinto. Aí está você de novo, com toda a sua energia, e com as suas palavras que nos fazem imaginar ter adentrado por dentro do seu sonho, do qual reagimos estáticos ao despertar, permanecendo assim por alguns segundos até perceber que já estamos acordados. Ler suas palavras, que saem muito de dentro de você mesma (como se os escritores comuns tivessem uma camada superficial de palavras guardadas pra serem usadas na elaboração de textos, e as suas estivessem numa segunda camada, mais profunda), me fazem recordar e vislumbrar algumas imagens, e me levam a esquecer outras. Depois elas voltam e assim me lanço a esse jogo durante todo o dia. Sem saber sua cronologia, implicação, verdade e lógica. E tudo se perde na minha memória. Até que em um doce momento me encontro com essas imagens perdidas na esquina dos seus pensamentos imortalizados neste blog, então, me espanto, pois já não sei se elas realmente aconteceram ou se habitam o meu mundo devaneador. “Fundir-se com os mortos...” é o limite da lembrança: é a dúvida da realidade, a busca da memória e o labirinto do ser, que habita o plano externo das íntimas representações. Com suas palavras você consegue, em profundos e arrebatadores diagnósticos íntimos, jogar uma capa ilusória sobre os raciocínios dos seus leitores. O seu texto explode em personagens que saltitam para fora da tela do computador, criando uma dualidade ininterrupta entre o que é real e ficção. Nessa perspectiva, “Fundir-se...” é um perfeito ensaio em miniatura do que virá a seguir sobre a escritora real, mas também a personagem saltitante nos leva a passear por uma espécie de rito de passagem, onde os derradeiros acordes da inocência vão desaparecendo ante o alarido do amadurecimento imposto pela sociedade. Não se preocupe com os seus 27, sua capacidade está além dos limites cronológicos e de linearidade convencionais. Que bom que você voltou.
Olá, Mister C.
É sempre bom ler-ouvir suas palavras, saber de sua visita, de sua passagem por aqui.
Acho que a questão, ou uma delas, que me atormenta e, por isso, aparece recorrentemente neste blog, é algo que você consegue capturar bem no seu comentário: como criar uma escrita de si, uma escrita de si que não seja o mesmo que uma escrita do eu, uma escrita do ego. Que novos artifícios, subterfúgios, linhas de fuga que posso tomar para me desviar daquilo que é óbvio (o narcisismo) para encontrar novos caminhos?
Como fazer a linguagem penetrar aquilo que é, até então, pura falta de linguagem? (o íntimo absoluto, o momento da virada da pulsão, do psíquico para o somático e vice-versa)
O estilo é o homem – roubo perpetrado por Lacan e que sempre nos serve nestas horas. Neste ponto, acredito que me falta crueldade (mas sobra esta doçura que aproxima os textos do “realismo fantástico pessoal”). A crueldade de Carlson Maccullers (“O Coração é um caçador solitário”), de E.L.Doctorow (“O livro de Daniel”), de Martin Kohan (“Ciências Morais”), de Bukovski (“A mulher mais linda da cidade”). Neste sentido, o estilo aqui deste blog é determinado pelo medo – a harmonia semântica é utilizada para barrar tudo aquilo de dissonante, o terror, o fascínio do terror, a angústia dos símbolos de castração.
Falta, então, um aprendizado de crueldade, de não apenas consentir, mas buscar pelo descontínuo, a quebra, a perda, o inaceitável, o inumano...
E que bom que você voltou.
J.
Cara Miss J. Sempre que leio suas palavras, me sinto percorrendo uma estrada que desemboca no seu íntimo. Você exercita com maestria a sua sensibilidade, o seu poder de observação, a sua crença em usar as suas determinações pessoais como ponte para alcançar sempre mais daquilo que lhe é permitido (mas sem deixar de olhar para aquilo que nós é negado). A sua escrita não precisará de subterfúgios enquanto ela escorrer de sua própria impaciência em atravessar a vida sem se reter com os múltiplos “símbolos de castração”. Na sua escrita se observa uma pessoa determinada, mas sempre reticente com a provação constante que significa a sobrevivência diária. Vejo nos seus textos um direcionamento marcado por regras rígidas que impõem uma conduta voltada a eliminar o que para a vida é inútil, deixando registrado no papel uma explosão de sentimentos e palavras que, transformados em atos, parecem supérfluos em uma hora ou excessivos em outra. Quem te lê com atenção não está apenas empreendendo uma viagem pessoal, sentado no banco do carona. Há muito o que se pensar sobre a pureza dos pensamentos que você transmite, sobre a sua angústia a respeito das atitudes reais que lhe acertam em cheio quando você levanta os olhos dos livros. O seu medo não transparece tanto quanto sua vontade de prender a respiração e se deixar cair, sem proteções demasiadas ou carregando itens de segurança exagerados. A meu ver, o aprendizado de crueldade está em gestação, está por exemplo nos seus contatos com alunos ou pacientes, na sua falta de entendimento sobre a ignorância alheia. Já a busca pelo inumano, pela quebra, pela perda, essa necessita que etapas sejam queimadas com fogo ardente. Você cedo chegou muito longe. Mas é certo que suas palavras ainda têm um longo caminho a percorrer, embora já transpareçam uma maturidade ancestral. Ao percorrer esse caminho, por favor, deixe seus pensamentos espalhados pela estrada, para que eu e outros possamos recolher os fragmentos de vida inteligente que explodem dessa sua mente eletrizante.
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