A memória é um excesso que transborda em apego e localizações monolíticas. Eu gostaria de estar tranqüila em relação a isso, estar jogando futebol (mesmo que eu não saiba como fazê-lo, realizar o devir-jogador de futebol, o filósofo diria) ou participar de uma peça infantil (apesar de eu não ser uma atriz). Ao contrário de estar aqui, agora, nesta casa, embrulhada num cobertor e o ar condicionado que eu mesma liguei, contra algo que nem a psicanálise nem a literatura nem a musica de Chico Buarque podem me dizer o que é.
Eu vivo no passado. Acredito que o futuro se desdobra a partir de uma cadeia anterior, que o futuro está já atrelado a algo que aconteceu, agora agorinha ou vinte anos atrás. Eu vivo do passado. Eu não largo dele – por isso não consigo assistir à novela ou ter um bicho de estimação ou cantar muito alto. As coisas vão se ancorando em mim – os acontecidos e aquilo que ficou por um triz de acontecer, mas mesmo assim eu imaginei; os sonhos que eu não esqueço; os gestos que se transformam em fotografias e, de fotografias, em cicatrizes – eu vivo e mantenho tudo-isso-que-não-é-mais ainda em funcionamento também.
Minha vida parece compacta (compactada?): vinte e tantos anos podem ser reduzidos a uma seqüência curta de fatos certeiros, tão bem enraizados que faço deles uma história. Ficção – cada um escolhe a sua. Mas a minha é amarrada demais, fechada sobre si mesma – não se propõe esquecer, dar a volta, começar de novo.
Tento organizar os acontecimentos da melhor forma possível, arranjá-los segundo um sentido. Pergunto-me o que aconteceu há cinco dias, há quatro meses, há vinte anos, até encontrar a raiz do que me aconteceu ainda ontem. Quero tirar satisfações com os protagonistas daquelas ações. Mas sou constantemente derrotada pela pregnância, pela insistência de imagens na memória, pelos sentimentos escandalosos – amor ou ódio não exigem menos que a morte do objeto – pelas falhas nas equações que tracei entre os fatos para torná-los causa e conseqüência.
Não quero mais memória. Vou dedicar meus dias, a partir de agora, ao exercício conduzido e contínuo do apagamento das lembranças. Os acontecidos têm, de hoje em diante, um prazo de permanência de 17 minutos até seu absoluto desaparecimento. (O rosto das pessoas é que há de mais maléfico, mais difícil de ser des-registrado neste meu projeto).
Não vou olhar muito para um ângulo específico, para não criar lembranças do mundo, vou manter os sentidos límpidos, intocados, canais que recebam apenas ar frio e água barrenta. Quero que os acontecimentos escorreguem pela pele – lisa, reconchuda e protegida pela gordura –, que escorreguem até cair no chão e ficar por lá. Os acontecidos, as pessoas e seus nomes, os filmes, as imagens. Permito apenas que a música, ao contrário, se mantenha – porque aí não há palavras para me aprisionar.
De hoje em diante, sacio apenas pequenas fomes, fomes pontuais. Saciando a fome, eu esqueço a fome e não guardo do alimento nem seu sabor de mundo.
E quem quiser que conte outra.
...mas contei outras coisas também, de como tinha sonhado com ela e o que ela fazia no sonho. Me lembro de ter dito: “há potencial para isso” (para o quê?, me pergunto). Não me lembro qual foi a pergunta e construo esta imaginação de resposta.
A linguagem funda um mundo desolador e angustiante. Para diminuir isso, suspender este imperativo, é preciso voltar à ela, à linguagem mesma e utilizá-la – sem instrumentalizá-la – utilizá-la para revestir o mundo, revestir os atos e as coisas, revestir com novos nomes, se embolar na linguagem, jurando que ela é o mundo, para que o mundo seja refundado. Não pensar ‘isto é só uma noite’, mas dizer ‘este é um objeto estético perfeito', ‘um sentido de beleza', não ignorar um sonho, mas entremeá-lo numa seqüência narrativa, numa história que possa ser contada. Pensar que um objeto até então perdido foi encontrado. E que vai ser perdido de novo e que eu preciso contar uma outra história para reavê-lo.
Depois de uma infecção de garganta – febres de 39º, comprimidos antibióticos do tamanho da minha unha, dificuldade para engolir até água – o mundo parece até muito mais bonito mesmo. E algo incrível, de fato, aconteceu. Eu esqueci tudo, quero dizer, não esqueci, mas perdi todas as imagens como alguém que perde os negativos de uma festa. Um sentimento de surrealidade corroeu o fato, além de uma simpática indiferença (aconteceu? não aconteceu? não importa, está tudo bem...). Procurei fotos da menina porque esqueci qual era mesmo a causa do fascínio que senti por ela. Devo ter esquecido seu rosto, porque em nenhuma delas consegui reconhecê-la.
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