29.8.06
28.8.06
Refugo Humano - Entrevista com Luiz Carlos Fridman
Uma das exigências dos seqüestradores da equipe da TV Globo em SP era aparecer na televisão. No vídeo eles fazem uma série de exigências, mas seqüestram o jornalista pedindo em troca a exibição do vídeo. A partir dessa constatação, gostaria de perguntar se a sociedade está se dividindo entre pessoas e não-pessoas, entre visíveis e invisíveis?
– Não, mas estamos nos dividindo entre aqueles que têm uma vida para viver e os que não têm. Na economia contemporânea é o contrário do capitalismo industrial clássico. No capitalismo contemporâneo, que se move à velocidade do sinal eletrônico e que aplica intensa, ininterrupta e sucessivamente tecnologia à produção da riqueza material, criou-se uma nova categoria que é o refugo humano. O velho Marx falava em exército industrial de reserva, mas o exército industrial de reserva acabou. Não existe mais. O exército industrial de reserva eram as pessoas que não estavam alocadas na divisão social do trabalho, mas que iriam ser integradas, mais cedo ou mais tarde, ou poderiam vir a ocupar um lugar na divisão social do trabalho. O refugo humano é gente que não ocupou, não ocupa e não ocupará lugar nenhum na divisão social do trabalho. Isso acontece no Brasil, assim como na Ásia, na África e nos demais países da América Latina. Com a presença do terceiro mundo no primeiro mundo, também vai acontecer no primeiro mundo. O último filme do Costa Gravas, “O Corte”, trata dessa questão, só que ao nível dos executivos. Aquilo é a insegurança com o emprego, o efeito daqueles que estiveram empregados no mundo do desemprego estrutural.
(...)
O universo fica restrito ali, configura-se um gueto. E como fazer a partir daí uma conexão com o PCC, o seqüestro do jornalista em SP?
– Esse já é um patamar diferente. Nesse aprendizado precário no interior das instituições carcerárias, vão surgindo as formas perversas do crime, a ponto de o crime ameaçar a sociedade. Na verdade, acaba sendo a forma como eles aterrorizam que os habilita a ser uma força – que não é terrorista (o terrorismo em geral obedece a propósitos de valor, ou religiosos ou políticos), mas os habilita como força perante a sociedade. Acho que ele quer aparecer na televisão para ser habilitado enquanto força a ser considerada pelas instituições carcerárias. Essa é uma ameaça terrível, pois eles se dispõem a utilizar a violência de maneira indiscriminada, impondo sacrifícios a todos os grupos e instituições. Isso é uma ameaça ao Estado de direito democrático, que precisa se defender e defender a população. Sem essa adição, a “interpretação sociológica” fica leniente com as aberrações evidentes como a morte de civis ou seqüestros de jornalistas.
– Não, mas estamos nos dividindo entre aqueles que têm uma vida para viver e os que não têm. Na economia contemporânea é o contrário do capitalismo industrial clássico. No capitalismo contemporâneo, que se move à velocidade do sinal eletrônico e que aplica intensa, ininterrupta e sucessivamente tecnologia à produção da riqueza material, criou-se uma nova categoria que é o refugo humano. O velho Marx falava em exército industrial de reserva, mas o exército industrial de reserva acabou. Não existe mais. O exército industrial de reserva eram as pessoas que não estavam alocadas na divisão social do trabalho, mas que iriam ser integradas, mais cedo ou mais tarde, ou poderiam vir a ocupar um lugar na divisão social do trabalho. O refugo humano é gente que não ocupou, não ocupa e não ocupará lugar nenhum na divisão social do trabalho. Isso acontece no Brasil, assim como na Ásia, na África e nos demais países da América Latina. Com a presença do terceiro mundo no primeiro mundo, também vai acontecer no primeiro mundo. O último filme do Costa Gravas, “O Corte”, trata dessa questão, só que ao nível dos executivos. Aquilo é a insegurança com o emprego, o efeito daqueles que estiveram empregados no mundo do desemprego estrutural.
(...)
O universo fica restrito ali, configura-se um gueto. E como fazer a partir daí uma conexão com o PCC, o seqüestro do jornalista em SP?
– Esse já é um patamar diferente. Nesse aprendizado precário no interior das instituições carcerárias, vão surgindo as formas perversas do crime, a ponto de o crime ameaçar a sociedade. Na verdade, acaba sendo a forma como eles aterrorizam que os habilita a ser uma força – que não é terrorista (o terrorismo em geral obedece a propósitos de valor, ou religiosos ou políticos), mas os habilita como força perante a sociedade. Acho que ele quer aparecer na televisão para ser habilitado enquanto força a ser considerada pelas instituições carcerárias. Essa é uma ameaça terrível, pois eles se dispõem a utilizar a violência de maneira indiscriminada, impondo sacrifícios a todos os grupos e instituições. Isso é uma ameaça ao Estado de direito democrático, que precisa se defender e defender a população. Sem essa adição, a “interpretação sociológica” fica leniente com as aberrações evidentes como a morte de civis ou seqüestros de jornalistas.
Falar de saúde, educação e segurança não é fazer programa de governo
"A melhor maneira de se evitar falar do essencial não é ficar quieto. É falar de tudo o que é secundário, sem estabelecer ligações e conexões entre as coisas. Tudo é verdade, policlínicas são legais, metrô desafoga trânsito e escolas modernas apresentam vantagens. Mas são idéias parciais, meias-idéias, que parecem viáveis. Basta estilhaçar as informações e apresentá-las como se não fizessem parte do mesmo planeta ou cidade, para desorientar qualquer um. Não há interesses a serem contrariados ou favorecidos. Como são sugestões soltas, volta e meia aparece um candidato alegando ter sido plagiado por outro. O que se apresenta como programa político não é programa e muito menos é algo político. É aplicar a marquetagem com o propósito de entreter o público, enquanto os negócios seguem em frente.
O debate sobre segurança pública é, de todos, talvez o que mais se ressinta dos males da fragmentação. O país vive uma situação de caos na área e os programas das candidaturas, com poucas exceções, não passam da cantilena de “leis mais duras”, “mais energia”, “mais presídios”, “rota na rua” e lorotas do tipo. Não se faz uma ligação com o fato do país não crescer há 25 anos, com uma das piores distribuições de renda e de riqueza do mundo e incapaz de gerar empregos suficientes para absorver a juventude que ano a ano chega ao mercado de trabalho."
Artigo: Gilberto Maringoni
Site: www.cartamaior.com.br
O debate sobre segurança pública é, de todos, talvez o que mais se ressinta dos males da fragmentação. O país vive uma situação de caos na área e os programas das candidaturas, com poucas exceções, não passam da cantilena de “leis mais duras”, “mais energia”, “mais presídios”, “rota na rua” e lorotas do tipo. Não se faz uma ligação com o fato do país não crescer há 25 anos, com uma das piores distribuições de renda e de riqueza do mundo e incapaz de gerar empregos suficientes para absorver a juventude que ano a ano chega ao mercado de trabalho."
Artigo: Gilberto Maringoni
Site: www.cartamaior.com.br
24.8.06
Come on
I must be feeling low
I talked to god in a phonebox on my way home
I told you my answer
I left you my dreams on your answering machine
I talked to god in a phonebox on my way home
I told you my answer
I left you my dreams on your answering machine
The Verve
Exercício de Desmemória
A memória é um excesso que transborda em apego e localizações monolíticas. Eu gostaria de estar tranqüila em relação a isso, estar jogando futebol (mesmo que eu não saiba como fazê-lo, realizar o devir-jogador de futebol, o filósofo diria) ou participar de uma peça infantil (apesar de eu não ser uma atriz). Ao contrário de estar aqui, agora, nesta casa, embrulhada num cobertor e o ar condicionado que eu mesma liguei, contra algo que nem a psicanálise nem a literatura nem a musica de Chico Buarque podem me dizer o que é.
Eu vivo no passado. Acredito que o futuro se desdobra a partir de uma cadeia anterior, que o futuro está já atrelado a algo que aconteceu, agora agorinha ou vinte anos atrás. Eu vivo do passado. Eu não largo dele – por isso não consigo assistir à novela ou ter um bicho de estimação ou cantar muito alto. As coisas vão se ancorando em mim – os acontecidos e aquilo que ficou por um triz de acontecer, mas mesmo assim eu imaginei; os sonhos que eu não esqueço; os gestos que se transformam em fotografias e, de fotografias, em cicatrizes – eu vivo e mantenho tudo-isso-que-não-é-mais ainda em funcionamento também.
Minha vida parece compacta (compactada?): vinte e tantos anos podem ser reduzidos a uma seqüência curta de fatos certeiros, tão bem enraizados que faço deles uma história. Ficção – cada um escolhe a sua. Mas a minha é amarrada demais, fechada sobre si mesma – não se propõe esquecer, dar a volta, começar de novo.
Tento organizar os acontecimentos da melhor forma possível, arranjá-los segundo um sentido. Pergunto-me o que aconteceu há cinco dias, há quatro meses, há vinte anos, até encontrar a raiz do que me aconteceu ainda ontem. Quero tirar satisfações com os protagonistas daquelas ações. Mas sou constantemente derrotada pela pregnância, pela insistência de imagens na memória, pelos sentimentos escandalosos – amor ou ódio não exigem menos que a morte do objeto – pelas falhas nas equações que tracei entre os fatos para torná-los causa e conseqüência.
Não quero mais memória. Vou dedicar meus dias, a partir de agora, ao exercício conduzido e contínuo do apagamento das lembranças. Os acontecidos têm, de hoje em diante, um prazo de permanência de 17 minutos até seu absoluto desaparecimento. (O rosto das pessoas é que há de mais maléfico, mais difícil de ser des-registrado neste meu projeto).
Não vou olhar muito para um ângulo específico, para não criar lembranças do mundo, vou manter os sentidos límpidos, intocados, canais que recebam apenas ar frio e água barrenta. Quero que os acontecimentos escorreguem pela pele – lisa, reconchuda e protegida pela gordura –, que escorreguem até cair no chão e ficar por lá. Os acontecidos, as pessoas e seus nomes, os filmes, as imagens. Permito apenas que a música, ao contrário, se mantenha – porque aí não há palavras para me aprisionar.
De hoje em diante, sacio apenas pequenas fomes, fomes pontuais. Saciando a fome, eu esqueço a fome e não guardo do alimento nem seu sabor de mundo.
E quem quiser que conte outra.
...mas contei outras coisas também, de como tinha sonhado com ela e o que ela fazia no sonho. Me lembro de ter dito: “há potencial para isso” (para o quê?, me pergunto). Não me lembro qual foi a pergunta e construo esta imaginação de resposta.
A linguagem funda um mundo desolador e angustiante. Para diminuir isso, suspender este imperativo, é preciso voltar à ela, à linguagem mesma e utilizá-la – sem instrumentalizá-la – utilizá-la para revestir o mundo, revestir os atos e as coisas, revestir com novos nomes, se embolar na linguagem, jurando que ela é o mundo, para que o mundo seja refundado. Não pensar ‘isto é só uma noite’, mas dizer ‘este é um objeto estético perfeito', ‘um sentido de beleza', não ignorar um sonho, mas entremeá-lo numa seqüência narrativa, numa história que possa ser contada. Pensar que um objeto até então perdido foi encontrado. E que vai ser perdido de novo e que eu preciso contar uma outra história para reavê-lo.
Depois de uma infecção de garganta – febres de 39º, comprimidos antibióticos do tamanho da minha unha, dificuldade para engolir até água – o mundo parece até muito mais bonito mesmo. E algo incrível, de fato, aconteceu. Eu esqueci tudo, quero dizer, não esqueci, mas perdi todas as imagens como alguém que perde os negativos de uma festa. Um sentimento de surrealidade corroeu o fato, além de uma simpática indiferença (aconteceu? não aconteceu? não importa, está tudo bem...). Procurei fotos da menina porque esqueci qual era mesmo a causa do fascínio que senti por ela. Devo ter esquecido seu rosto, porque em nenhuma delas consegui reconhecê-la.
Eu vivo no passado. Acredito que o futuro se desdobra a partir de uma cadeia anterior, que o futuro está já atrelado a algo que aconteceu, agora agorinha ou vinte anos atrás. Eu vivo do passado. Eu não largo dele – por isso não consigo assistir à novela ou ter um bicho de estimação ou cantar muito alto. As coisas vão se ancorando em mim – os acontecidos e aquilo que ficou por um triz de acontecer, mas mesmo assim eu imaginei; os sonhos que eu não esqueço; os gestos que se transformam em fotografias e, de fotografias, em cicatrizes – eu vivo e mantenho tudo-isso-que-não-é-mais ainda em funcionamento também.
Minha vida parece compacta (compactada?): vinte e tantos anos podem ser reduzidos a uma seqüência curta de fatos certeiros, tão bem enraizados que faço deles uma história. Ficção – cada um escolhe a sua. Mas a minha é amarrada demais, fechada sobre si mesma – não se propõe esquecer, dar a volta, começar de novo.
Tento organizar os acontecimentos da melhor forma possível, arranjá-los segundo um sentido. Pergunto-me o que aconteceu há cinco dias, há quatro meses, há vinte anos, até encontrar a raiz do que me aconteceu ainda ontem. Quero tirar satisfações com os protagonistas daquelas ações. Mas sou constantemente derrotada pela pregnância, pela insistência de imagens na memória, pelos sentimentos escandalosos – amor ou ódio não exigem menos que a morte do objeto – pelas falhas nas equações que tracei entre os fatos para torná-los causa e conseqüência.
Não quero mais memória. Vou dedicar meus dias, a partir de agora, ao exercício conduzido e contínuo do apagamento das lembranças. Os acontecidos têm, de hoje em diante, um prazo de permanência de 17 minutos até seu absoluto desaparecimento. (O rosto das pessoas é que há de mais maléfico, mais difícil de ser des-registrado neste meu projeto).
Não vou olhar muito para um ângulo específico, para não criar lembranças do mundo, vou manter os sentidos límpidos, intocados, canais que recebam apenas ar frio e água barrenta. Quero que os acontecimentos escorreguem pela pele – lisa, reconchuda e protegida pela gordura –, que escorreguem até cair no chão e ficar por lá. Os acontecidos, as pessoas e seus nomes, os filmes, as imagens. Permito apenas que a música, ao contrário, se mantenha – porque aí não há palavras para me aprisionar.
De hoje em diante, sacio apenas pequenas fomes, fomes pontuais. Saciando a fome, eu esqueço a fome e não guardo do alimento nem seu sabor de mundo.
E quem quiser que conte outra.
...mas contei outras coisas também, de como tinha sonhado com ela e o que ela fazia no sonho. Me lembro de ter dito: “há potencial para isso” (para o quê?, me pergunto). Não me lembro qual foi a pergunta e construo esta imaginação de resposta.
A linguagem funda um mundo desolador e angustiante. Para diminuir isso, suspender este imperativo, é preciso voltar à ela, à linguagem mesma e utilizá-la – sem instrumentalizá-la – utilizá-la para revestir o mundo, revestir os atos e as coisas, revestir com novos nomes, se embolar na linguagem, jurando que ela é o mundo, para que o mundo seja refundado. Não pensar ‘isto é só uma noite’, mas dizer ‘este é um objeto estético perfeito', ‘um sentido de beleza', não ignorar um sonho, mas entremeá-lo numa seqüência narrativa, numa história que possa ser contada. Pensar que um objeto até então perdido foi encontrado. E que vai ser perdido de novo e que eu preciso contar uma outra história para reavê-lo.
Depois de uma infecção de garganta – febres de 39º, comprimidos antibióticos do tamanho da minha unha, dificuldade para engolir até água – o mundo parece até muito mais bonito mesmo. E algo incrível, de fato, aconteceu. Eu esqueci tudo, quero dizer, não esqueci, mas perdi todas as imagens como alguém que perde os negativos de uma festa. Um sentimento de surrealidade corroeu o fato, além de uma simpática indiferença (aconteceu? não aconteceu? não importa, está tudo bem...). Procurei fotos da menina porque esqueci qual era mesmo a causa do fascínio que senti por ela. Devo ter esquecido seu rosto, porque em nenhuma delas consegui reconhecê-la.
18.8.06
Percebo que, hoje, entrei para o clube
You don't realise until you're forty or so
that by then everyone of your age or more
is walking around with some old wound that's buryed
back of the eyes or somewhere under the coat.
Even then you forget that some of those you pass
wtih a nod on the road every day took their hits
quiet early on, though you may not remember ever
seem them stumble or fall or hearing them moan
since that was before the water cleared to show
that wounding seems part of some general plan, with rules
that are not just bloody unfair, they're bloody unknown.
Strange how it took so long for the light to dawn
that sooner or later your own due turn would come
to take one in the shoulder or the gut,
eintitling you to limp into the club
a member in good standing, now fully paid-up.
that by then everyone of your age or more
is walking around with some old wound that's buryed
back of the eyes or somewhere under the coat.
Even then you forget that some of those you pass
wtih a nod on the road every day took their hits
quiet early on, though you may not remember ever
seem them stumble or fall or hearing them moan
since that was before the water cleared to show
that wounding seems part of some general plan, with rules
that are not just bloody unfair, they're bloody unknown.
Strange how it took so long for the light to dawn
that sooner or later your own due turn would come
to take one in the shoulder or the gut,
eintitling you to limp into the club
a member in good standing, now fully paid-up.
7.8.06
6.8.06
Oco da língua
“Quando a linguagem chega a se erigir senhora absoluta, a ignorar do que ela se constitui herdeira – de uma sucessão de mortes e assassinatos –, quando desconhece que sua aparente luz não passa de uma sombra alcançada, então, o ‘oco’ vem lembrá-la disso. Se ela esquece a perda que ela própria contém, é preciso perdê-la, abandoná-la à sua arrogância. Quando voltarmos a encontrá-la, ela não se ouvira falando sozinha, se lembrará de sua ausência, graças a nossa; talvez nós tenhamos, por nossa vez, lhe feito falta.”
Amor dos Começos
J.-B. Pontalis
5.8.06
Do leão e da apreciação de suas qualidades
Suponha, então, algo característico e único do homem, que se chama ‘humano’. Das aves, diz-se ‘voador’ (do voar vivo que bate as asas, no movimento de vontade de vôo); nos macacos, reconhecemos o ‘símio’; dos morcegos, chamamos ‘noturno’ (ou ‘noctívago’). Nos leões, nomeia-se a esta específica qualidade ‘leonino’.
Mas suponha, então, uma fusão, um mesclar de tais qualidades que afronta a lei da exclusividade taxonômica. As sereias eram meio-peixes, meio-mulheres, meio-monstros. A esfinge era, ao mesmo tempo, ave, leoa, fêmea e faminta (além de levemente histérica em seus enigmas). Luis Coimbra é meio-homem, meio-leão.
Se a qualidade do humano é imediata e inegável, em Luis, a qualidade leonina é fugidia, econômica e exige prospecção. É preciso ter consigo algo como o mapa do reino dos seres imaginários (Borges) que nos avise a que sinais prestar atenção.
No rosto, por exemplo, os traços de uma estirpe real, caracterizada pela impenetrabilidade da raça, em que a juba se espalha, lança-se para trás e mantém-se erguida, indignada consigo e com o humano. O corpo compartilha também dos gestos dos grandes felinos; ele sobe pela rocha com a mesma desfaçatez dos gatos que sempre caem de pé (neste ponto, a humanidade de Luís Coimbra se sobrepõe, deixando-o, ao contrário dos gatos, frágil, demasiado frágil). Até o arco das sobrancelhas, em seus reflexos loiro-acinzentados, confirma a semelhança dos traços, quando se erguem num movimento aristocrático e ciumento.
A semelhança é consistente, densa, carnal; vislumbra-se a herança leonina espiritual, ainda que entranhada no corpo, ainda que manifesta na extensão material. Não raro as pessoas sentem – e me confesso vítima desta ilusão – uma certa animosidade, uma indisposição de Luis; nada mais que a porção leão estranhando a humanidade. Estranhamento travado entre as zigomas – ou melhor dizendo, entre as mandíbulas...
Mas suponha, então, uma fusão, um mesclar de tais qualidades que afronta a lei da exclusividade taxonômica. As sereias eram meio-peixes, meio-mulheres, meio-monstros. A esfinge era, ao mesmo tempo, ave, leoa, fêmea e faminta (além de levemente histérica em seus enigmas). Luis Coimbra é meio-homem, meio-leão.
Se a qualidade do humano é imediata e inegável, em Luis, a qualidade leonina é fugidia, econômica e exige prospecção. É preciso ter consigo algo como o mapa do reino dos seres imaginários (Borges) que nos avise a que sinais prestar atenção.
No rosto, por exemplo, os traços de uma estirpe real, caracterizada pela impenetrabilidade da raça, em que a juba se espalha, lança-se para trás e mantém-se erguida, indignada consigo e com o humano. O corpo compartilha também dos gestos dos grandes felinos; ele sobe pela rocha com a mesma desfaçatez dos gatos que sempre caem de pé (neste ponto, a humanidade de Luís Coimbra se sobrepõe, deixando-o, ao contrário dos gatos, frágil, demasiado frágil). Até o arco das sobrancelhas, em seus reflexos loiro-acinzentados, confirma a semelhança dos traços, quando se erguem num movimento aristocrático e ciumento.
A semelhança é consistente, densa, carnal; vislumbra-se a herança leonina espiritual, ainda que entranhada no corpo, ainda que manifesta na extensão material. Não raro as pessoas sentem – e me confesso vítima desta ilusão – uma certa animosidade, uma indisposição de Luis; nada mais que a porção leão estranhando a humanidade. Estranhamento travado entre as zigomas – ou melhor dizendo, entre as mandíbulas...
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