23.6.06

Viagem aos Jardins do Além-Brasília

Pode-se perceber que aqui é outro lugar, que as pessoas são outras: elas se vestem bem para ir ao supermercado. Nada de roupas caras, mas qualquer coisa como uma ‘pobreza digna e orgulhosa’. As moças vestem suas longas saias jeans, rebuscadas, com cintos coloridos de plástico e sandálias de grandes saltos – que deixam ver o pó que se acumulou entre os dedos, sobre as unhas pintadas, no caminho até o supermercado. (Só a estrada principal é asfaltada). Os cabelos estão lavados e presos. É só lá, de onde eu venho, que uma sandália havaiana leva você ao supermercado, à universidade, ao banco.

(A despreocupação que a riqueza nos traz.)

Entro no supermercado para comprar um suco e um biscoito, enquanto espero a pessoa que vim aqui encontrar. Tudo é tão mais barato!... O pão francês é R$ 0.09! (Lá, no outro lugar, é pelo menos R$ 0,25). Pago com meu cartão de débito um valor que acho ridiculamente baixo. Atrás de mim, na fila, um senhor reclama da promoção dos tabletes de caldo de carne. Na semana passada, a promoção dizia ‘pague 3, leve 4’. Hoje, o pacote é o mesmo, mas o quarto tablete foi substituído por um enfeite de mesa. Ele não quer o enfeite. Ele quer o quarto tablete. É sua única compra.

Volto ao estacionamento onde deixei o carro. Espero lá dentro, comendo biscoito e lendo Pontalis. Um família se aproxima da minha janela aberta. O pai pergunta se eu posso dar a eles uma carona até Brasília. O bebê de colo está doente e precisa ir ao médico (o bebê lacrimeja, tem a cara inchada e o nariz escorre, está nos braços da mãe). Ele explica que pediu carona a outros motoristas mas ninguém está voltando 'para a cidade'. Me disponho a dar a carona, mas explico que só voltarei daí a três horas. Se eles puderem esperar...

O pai insiste, explica que não tem o dinheiro da passagem do ônibus. Abro a bolsa, dentro da carteira tenho duas notas, de idêntico valor. Dou uma a eles, fico com a outra. Faltam ainda 40 centavos. Acho uma moeda de 10 centavos. Continua faltando 30 centavos. Desta vez, é a mãe quem insiste e sua voz tem um tom reivindicatório (e acho que ela está certa na sua reivindicação). Os 30 centavos continuam faltando. Eles vão embora, com os agradecimentos de praxe, que sempre me fazem corar de vergonha: “Muito obrigada, que Deus lhe abençoe”. Prefiro o tom exigente da mãe, me constrange menos do que ser abençoada por Deus na minha miséria.

Há outros carros por aqui, vários. Me parecem luxuosos. Não em si, mas um luxo aqui onde não há asfalto, só terra batida. Destoa como ‘um dedo machucado’. Ou, talvez, como um aparelho de DVD numa casa sem reboco nas paredes. Me pergunto se isso não é mais um dos sintomas da perversidade do capitalismo à brasileira. Depois, me lembro dos versos do Titãs: “A gente não quer só comer/ A gente quer prazer para aliviar a dor”. Me espanto de como é fácil escorregar para posições autoritárias, moralistas, paternalistas: ‘eu sei o que é certo, faça o que eu digo’. Moralismo é tomar minha obsessão pequeno burguesa por segurança econômica e fazer disso a medida do mundo, a medida do que é humano.

Nada disso é ficção.

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