17.6.06

Pode-se educar o desejo?

Carta a Hilan Bensusan, motivada por seu texto 'Mais Confiança?' (está no site: http://corpuscrisis.sarava.org/, em 'palavras')


Oi, Hilan...

Tudo bem? Como você está? Qual o balanço final do ‘corpus-crisis’? Não consegui escapar ao fascínio da copa para participar de outros encontros. Encontrei este endereço de email, espero que você ainda esteja recebendo por aqui. Senão, tento deixar esta minha cartinha – porque é isso, isto aqui não é mais que uma cartinha – no Departamento de Filosofia.

Li um texto seu “Mais confiança?”. (Na verdade, percebo que estou me tornando uma leitora, uma leitora às voltas com seu próprio acanhamento). Como algumas questões ainda estão martelando aqui comigo, pensei que poderia estabelecer esta linha de confiança e me arriscar a lhe mandar estas questões.

Não é exatamente sobre a confiança que eu queria lhe falar – penso na confiança em gesto, com você escrevendo este lindo texto e eu lhe oferecendo algumas palavras (quanto mais darmos, mais podemos dar ainda). Queria conversar sobre o que você chama de praticas poliamóricas (por que não poliamorosas?), os usos subversivos do erotismo, a confiança e desconfiança dentro deste espaço.

Nestes últimos tempos, tenho tendido à psicanálise, como já lhe disse – eu acho. Não suportaria qualquer outra linha da psicologia – RH, por exemplo – que não fosse também um trabalho sobre mim, que não forçasse as minhas concepções durante sua pratica e não exigisse de mim novos posicionamentos éticos. As questões que estou pensando tem, muito, base numa certa compreensão psicanalítica da sexualidade.

Você fala das relações monoamóricas e como elas se articulam à desconfiança (instrumento do mestre): se eu suspeitar – e, aqui, a suspeita é motor – que o outro com quem me relaciono pode se interessar por outra pessoa, devo 1) exigir dele explicações, cobrando sua parte do contrato monoamórico (e sofrer com isso), ou 2) terminar esta ligação imediatamente, sem maiores direitos à explicação (sofrendo), ou mais 3) não dizer nada, manter esta relações, e sofrer horrores pelo que considero uma prova de desamor.

Através da confiança, nas relações poliamóricas, por exemplo, eu posso quebrar roteiros que trazem sofrimento e, mais, balançar os alicerces de formação de poderes nas nossas relações do dia-a-dia. Retomo o que você diz: “Penso que a confiança subverte, cria fissuras, promove rachaduras na casa do mestre.”

Eu posso, por exemplo, ler seu texto e rever meus conceitos sobre em que pessoas eu confio e eu de quais eu desconfio, me perguntando quais são critérios que me pesam: o sexo, a cor da pele, participar do mesmos movimentos que eu (o PT, o movimento contra o ato médico) ou que compartilham os mesmos interesses que eu (a psicanálise, a literatura, a arte de Jenny Holzer). Eu posso refletir e chegar a novas posições naturalmente ou refletir e exigir de mim novas posições porque considero que gestos políticos são importantes.

Mas como fazer isso nas relações amorosas? Como fazer isso no âmbito de nossa sexualidade? Será o desejo também educável?

Não acredito que nossa sexualidade seja desconectada de nosso mundo social – e esta nem é a posição da psicanálise tampouco. Por mais que o ângulo seja de valorização do individual, do micro, do mínimo, sabemos que tudo isso é determinado socialmente, mesmo que os mecanismos nos escapem (serão os discursos determinantes? ou as práticas? será a classe social explicação completa?...)

Erógeno, para a psicanálise, vai ser exatamente aquele ponto que o cuidado parental – materno ou paterno ou de alguém que ocupe estas posições – tocou o corpo do infans; se não há investimento do adulto no corpo infantil não há o estopim que movimenta as pulsões, que as faz circular pelo corpo. A sexualidade também é construída, erigida através destes gestos iniciais.

Mesmo que desamparado diante do adulto, a criança captura, através destes gestos, sua sexualidade confusa e contraditória – e enigmática, por isso, traumática (segundo, mais uma vez, a psicanálise). A sexualidade no sentido amplo que a psicanálise lhe dá: como e onde se dão os investimentos libidinais, onde eles são travados, onde eles são proibidos. Através dos gestos e, mais tarde, das falas, o adulto repassa para a criança suas concepções sobre a sexualidade, muitas vezes atravessada pelos discursos sociais mais poderosos (misóginos, machistas, homofóbicos).

Bom, o que estou tentando dizer: para a psicanálise, a sexualidade vai ser fundada lá na infância, num momento muito inicial, quase mítico, um tanto quanto irresgatável. Essa é a concepção psicanalítica, pode-se pensar de outra forma, pode-se pensar que a sexualidade, de fato, só vai ser fundada na adolescência ou em qualquer outro momento. O que está me interessando aqui é a idéia de que a sexualidade, num plano individual – já que a confiança é também um gesto individual – advém de fatores que desconhecemos. Quem pode dizer o que determina um desejo heterossexual ou um desejo homossexual? Apesar da força dos discursos sociais reguladores como, por exemplo, os discursos homofóbicos, isso não impede que as pessoas tenham e vivam um desejo homossexual. E, desta mesma forma, é possível ler seu texto, pensar na validade dos relacionamentos poliamóricos como algo mais interessante, mais prazeroso e, ainda assim, manter de um relacionamento monoamórico.

Não sei se estou me fazendo entender. O que estou lhe apresentando aqui é um problema que tem me tirado o sono já há algum tempo: sexualidade e ‘ação política’, digamos assim, se encontram? É possível julgar a sexualidade por estes critérios? É possível julgar o desejo?

A sexualidade é o lugar do desconhecido no sujeito. O sujeito se vê desejando algo ou alguém que não gostaria de desejar, fazendo o que seu corpo quer fazer mas que seu intelecto repudia. A sexualidade é responsável por colocar identidade ou, pelo menos, a ilusão de uma identidade coerente, não contraditória, em cheque. E isso tem valor positivo.

Mas se o desejo é desgonvernável, ele nem sempre é subversivo neste desgoverno. Na clinica psicanalítica, como em qualquer outra clinica psicoterapeutica que preze seus compromissos éticos, não há espaço para pedagogia, não há espaço para reeducação ou qualquer espécie de julgamento.

Entretanto, também fora da clinica, não consigo perceber como podemos pensar a sexualidade como passível de ser questionada do mesmo modo que meus preconceitos, confianças e desconfianças. Não sei se estou me fazendo entender. Será que o desejo pode ser educado? O desejo, obviamente, vai se transformando através de nossas experiências, nossas vivências, nossos momentos. Mas de onde vem a sexualidade é tão misterioso, tão insondável... de tal forma que as pedagogias sexuais, por exemplo, na maioria das vezes, tem resultado imprevisíveis, inusitados, incalculáveis (basta ver os escândalos envolvendo padres e menores de idade).

Não quero dizer, de forma alguma, que a sexualidade não deva ser discutida ou que estas discussões são vãs. Nem quero dizer que a psicanálise tenha maior clarividência nestes assuntos que qualquer outra posição – esta é, apenas, a posição que tem me instigado e cada um tem direito de eleger a posição que acredita mais satisfatória. Acredito que os debates; os deslocamentos, mínimos que sejam, dentro das grandes crenças da nossa sociedade (a nossa ‘brasilidade’ que fala da mulher bonita, gostosa, boa de cama, do garanhão, etc); a visibilidade do movimento gay, etc, acho que tudo isso tem um efeito – mas me pergunto: será que os discursos sobre a sexualidade não andam muito mais rápido que a própria sexualidade? Será que a sexualidade não escapa, escorrega pelos dedos, mesmo nestas horas que pensamos outras formas de ligação entre as pessoas, como a confiança num relacionamento poliamorico?

Hilan, reitero aqui que isto são questões que tenho pensado, problemas com os quais me deparo todo os dias e, de forma alguma, uma espécie de disputa onde uma fala se sobreponha e tente calar a outra. Falo isso porque tem me parecido tão difícil nestes últimos tempos achar espaços para um debate generoso...

Acho que é isso. Gostei muito do seu texto, ainda estou pensando sobre os versos Aharon Shabtai, sobre se sentir ‘uma pessoa pela metade’ ao barrar aqueles que estão do outro lado da cerca e sobre como é, muitas vezes, difícil sustentar os ‘lugares de diferença em si’, dos quais fala Audre Lorde.

Beijos,

j.

Nenhum comentário: