18.6.06

Desejos são vulcões - resposta de Hilan

Resposta de Hilan Bensusan

A. J., olá.

Obrigado pela cartinha, muito simpática. Te conto logo de cara que atormento eu de montão com estas questões pinicantes que você menciona. Sim, desejos não estão ao alcance das mãos para serem mudados. A política dos desejos é uma espécie de auto-política: nossa autoridade sobre nossos desejos não é a autoridade final - de resto como a nossa autoridade sobre nossos discursos não é a autoridade final. Penso que auto-política é política de subjetividade e o que entra na subjetividade através de nossos corpos é o que faz as pessoas do corpuscrisis, por exemplo, ensaiarem movimentos entre a atenção à emergência dos desejos e a distribuição de privilégios que as normas dos desejos instauram. Nossa subjetividade em um sentido importante não é nossa: ela responde às matrizes de inteligibilidade do que é um sujeito (do que se espera que nós assujeitemos). Mas nós nos tornamos sujeitos nesta matriz.

Nestes dias de corpuscrisis sobrou apenas um tempinho em que comecei a escrever uma coisa que está assim:

1.Os desejos são os vulcões da subjetividade. Postas as ecologias sociais, os instintos que permeiam os demais desejos e cada história pessoal, surgem os desejos: nas brechas entre as paisagens. Nossos desejos são agentes infiltrados do nosso estado no mundo––e são nossos porque estamos condenados a pastoreá-los mesmo sem sermos seus donos. Verdades acerca dos desejos são independentes das nossas crenças em primeira pessoa, mas não são alheios aos caminhos dos nossos pensamentos: não são alheios ao que pensamos porque desejos são produzidos parcialmente pelo mecanismo dos nossos pensamentos––o pensamento é parte do sistema ecológico que produz os desejos. O pensamento deixa pelo chão elementos que produzem a força dos desejos: os desejos não surgem ex-nihilo e nem são naturais. Eles são a confluência dos instintos, dos caminhos do pensamento e dos agenciamentos coletivos. São transformáveis pelo pensamento, mas não são marionetes deles.

2. A transformação dos desejos transita por sua identificação. A identificação requer elementos de terceira pessoa: não há um privilégio da autoridade de primeira pessoa sobre os desejos. Não podemos decidir o que queremos desejar e nem cabe se submeter a facticidade dos desejos. A imagem sartreana da má-fé pela facticidade e pela transcendência inaugura uma auto-política: é preciso uma negociação entre a voz de primeira pessoa e a pressão dos desejos. Entre os desejos que eu me dou conta e os desejos que estão em mim não há uma autoridade suprema: há que se examinar as circunstâncias para determinar qual é o desejo. Porém estas determinações são em parte políticas: auto-políticas. A auto-política gira em torno do pensamento e é uma política de devires: não se trata de um diálogo entre identidades mas entre linhas de fuga dentro de nós. O caminho do pensamento é traçado sobre os desejos que ele encontra no chão––chão que em parte ele produz produzindo matéria-prima para o desejo.


Me preocupo com a política dos desejos há muito tempo e a maneira como penso nisto muda mais ou menos a cada fase da lua. Oscilo bastante. De uma maneira geral penso que a associação entre política e controle faz o dano: entendemos o que não controlamos como além da política. Algo semelhante com o controle e a pedagogia (e aqui Rancière pode ser interessante). Podemos ensinar sem controlar.
Acho que a sexualidade escapa pelos dedos, mas é por isto que a subjetividade é desafiadora. Acredito em um elemento de deixar os desejos emergirem, não mascará-los: eles habitam as fissuras das normas.

Por exemplo, a norma monoamorosa (adoto seu sufixinho mais arredondado) mascara os desejos do outro que é personagem das tuas três opções. Desejo e amor por outras pessoas não indicam sempre prova de desamor. Acho que por trás dos ciúmes existem elementos de normas, elementos de instintos, elementos de preferências. Benjamim me sugere que a política é como sendo o anjo que balança as paisagens. Não enxergo nos vulcões coisa fixa - a natureza é o que nós transformamos sempre por meio da articulação de nichos, sua transformação, sua descontrução. Penso que uma imagem propriamente darwinista da natureza ajuda a entender que ela não e a outra a qual nos adaptamos - ela é feita das marcas deixadas pela história das espécies (por exemplo, da nossa espécie). Acho que tuas três opções são monoamorosas; são opções políticas articuladas neste cenário. Não é um cenário compulsório.

Escrevi duas coisinhas grandes sobre este tema dos desejos e que estão na REF (revista de estudos feministas). Uma foi publicada em 2004 e outra vai sair no próximo número. A de 2004, com a qual já discordo bastante, está no site da REF:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-026X20040001&lng=en&nrm=iso

a segunda é uma tentativa de em parte corrigir o que me pareceu inadequado nesta primeira (mando como anexo). São coisinhas grandotas e não sei se você vai ter a pachorra de ler. De todo modo seria bacana continuar a discussão se você quiser - procurar um 'debate generoso', que expressão bonita!

com afeto, J., fique bem, estamos juntos.

hilan

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