Chet Baker
24.6.06
23.6.06
Viagem aos Jardins do Além-Brasília
Pode-se perceber que aqui é outro lugar, que as pessoas são outras: elas se vestem bem para ir ao supermercado. Nada de roupas caras, mas qualquer coisa como uma ‘pobreza digna e orgulhosa’. As moças vestem suas longas saias jeans, rebuscadas, com cintos coloridos de plástico e sandálias de grandes saltos – que deixam ver o pó que se acumulou entre os dedos, sobre as unhas pintadas, no caminho até o supermercado. (Só a estrada principal é asfaltada). Os cabelos estão lavados e presos. É só lá, de onde eu venho, que uma sandália havaiana leva você ao supermercado, à universidade, ao banco.
(A despreocupação que a riqueza nos traz.)
Entro no supermercado para comprar um suco e um biscoito, enquanto espero a pessoa que vim aqui encontrar. Tudo é tão mais barato!... O pão francês é R$ 0.09! (Lá, no outro lugar, é pelo menos R$ 0,25). Pago com meu cartão de débito um valor que acho ridiculamente baixo. Atrás de mim, na fila, um senhor reclama da promoção dos tabletes de caldo de carne. Na semana passada, a promoção dizia ‘pague 3, leve 4’. Hoje, o pacote é o mesmo, mas o quarto tablete foi substituído por um enfeite de mesa. Ele não quer o enfeite. Ele quer o quarto tablete. É sua única compra.
Volto ao estacionamento onde deixei o carro. Espero lá dentro, comendo biscoito e lendo Pontalis. Um família se aproxima da minha janela aberta. O pai pergunta se eu posso dar a eles uma carona até Brasília. O bebê de colo está doente e precisa ir ao médico (o bebê lacrimeja, tem a cara inchada e o nariz escorre, está nos braços da mãe). Ele explica que pediu carona a outros motoristas mas ninguém está voltando 'para a cidade'. Me disponho a dar a carona, mas explico que só voltarei daí a três horas. Se eles puderem esperar...
O pai insiste, explica que não tem o dinheiro da passagem do ônibus. Abro a bolsa, dentro da carteira tenho duas notas, de idêntico valor. Dou uma a eles, fico com a outra. Faltam ainda 40 centavos. Acho uma moeda de 10 centavos. Continua faltando 30 centavos. Desta vez, é a mãe quem insiste e sua voz tem um tom reivindicatório (e acho que ela está certa na sua reivindicação). Os 30 centavos continuam faltando. Eles vão embora, com os agradecimentos de praxe, que sempre me fazem corar de vergonha: “Muito obrigada, que Deus lhe abençoe”. Prefiro o tom exigente da mãe, me constrange menos do que ser abençoada por Deus na minha miséria.
Há outros carros por aqui, vários. Me parecem luxuosos. Não em si, mas um luxo aqui onde não há asfalto, só terra batida. Destoa como ‘um dedo machucado’. Ou, talvez, como um aparelho de DVD numa casa sem reboco nas paredes. Me pergunto se isso não é mais um dos sintomas da perversidade do capitalismo à brasileira. Depois, me lembro dos versos do Titãs: “A gente não quer só comer/ A gente quer prazer para aliviar a dor”. Me espanto de como é fácil escorregar para posições autoritárias, moralistas, paternalistas: ‘eu sei o que é certo, faça o que eu digo’. Moralismo é tomar minha obsessão pequeno burguesa por segurança econômica e fazer disso a medida do mundo, a medida do que é humano.
Nada disso é ficção.
(A despreocupação que a riqueza nos traz.)
Entro no supermercado para comprar um suco e um biscoito, enquanto espero a pessoa que vim aqui encontrar. Tudo é tão mais barato!... O pão francês é R$ 0.09! (Lá, no outro lugar, é pelo menos R$ 0,25). Pago com meu cartão de débito um valor que acho ridiculamente baixo. Atrás de mim, na fila, um senhor reclama da promoção dos tabletes de caldo de carne. Na semana passada, a promoção dizia ‘pague 3, leve 4’. Hoje, o pacote é o mesmo, mas o quarto tablete foi substituído por um enfeite de mesa. Ele não quer o enfeite. Ele quer o quarto tablete. É sua única compra.
Volto ao estacionamento onde deixei o carro. Espero lá dentro, comendo biscoito e lendo Pontalis. Um família se aproxima da minha janela aberta. O pai pergunta se eu posso dar a eles uma carona até Brasília. O bebê de colo está doente e precisa ir ao médico (o bebê lacrimeja, tem a cara inchada e o nariz escorre, está nos braços da mãe). Ele explica que pediu carona a outros motoristas mas ninguém está voltando 'para a cidade'. Me disponho a dar a carona, mas explico que só voltarei daí a três horas. Se eles puderem esperar...
O pai insiste, explica que não tem o dinheiro da passagem do ônibus. Abro a bolsa, dentro da carteira tenho duas notas, de idêntico valor. Dou uma a eles, fico com a outra. Faltam ainda 40 centavos. Acho uma moeda de 10 centavos. Continua faltando 30 centavos. Desta vez, é a mãe quem insiste e sua voz tem um tom reivindicatório (e acho que ela está certa na sua reivindicação). Os 30 centavos continuam faltando. Eles vão embora, com os agradecimentos de praxe, que sempre me fazem corar de vergonha: “Muito obrigada, que Deus lhe abençoe”. Prefiro o tom exigente da mãe, me constrange menos do que ser abençoada por Deus na minha miséria.
Há outros carros por aqui, vários. Me parecem luxuosos. Não em si, mas um luxo aqui onde não há asfalto, só terra batida. Destoa como ‘um dedo machucado’. Ou, talvez, como um aparelho de DVD numa casa sem reboco nas paredes. Me pergunto se isso não é mais um dos sintomas da perversidade do capitalismo à brasileira. Depois, me lembro dos versos do Titãs: “A gente não quer só comer/ A gente quer prazer para aliviar a dor”. Me espanto de como é fácil escorregar para posições autoritárias, moralistas, paternalistas: ‘eu sei o que é certo, faça o que eu digo’. Moralismo é tomar minha obsessão pequeno burguesa por segurança econômica e fazer disso a medida do mundo, a medida do que é humano.
Nada disso é ficção.
Amoródio às palavras...
Fobia da prisão de uma única linguagem... Falar na linguagem de um grupo, eu aceito. Mas a psicanálise me arrasa quando entra, sem ser convidada, em qualquer lugar, afirmando-se como interpretação de todas as interpretações possíveis. Reivindico para cada um não o refúgio do ininterpretável, mas um território, de fronteiras sememoventes, do ininterpretado. De que adiantou ter nos convidado a soltar a língua, para sujeitá-la a uma outra que não é animada por mais nada a não ser pelo desejo, tão forte, de ditar sua fala: você não está dizendo o que pensa que está, você é o que eu digo.
J.-B. Pontalis, O Amor dos Começos
J.-B. Pontalis, O Amor dos Começos
18.6.06
Desejos são vulcões - resposta de Hilan
Resposta de Hilan Bensusan
A. J., olá.
Obrigado pela cartinha, muito simpática. Te conto logo de cara que atormento eu de montão com estas questões pinicantes que você menciona. Sim, desejos não estão ao alcance das mãos para serem mudados. A política dos desejos é uma espécie de auto-política: nossa autoridade sobre nossos desejos não é a autoridade final - de resto como a nossa autoridade sobre nossos discursos não é a autoridade final. Penso que auto-política é política de subjetividade e o que entra na subjetividade através de nossos corpos é o que faz as pessoas do corpuscrisis, por exemplo, ensaiarem movimentos entre a atenção à emergência dos desejos e a distribuição de privilégios que as normas dos desejos instauram. Nossa subjetividade em um sentido importante não é nossa: ela responde às matrizes de inteligibilidade do que é um sujeito (do que se espera que nós assujeitemos). Mas nós nos tornamos sujeitos nesta matriz.
Nestes dias de corpuscrisis sobrou apenas um tempinho em que comecei a escrever uma coisa que está assim:
1.Os desejos são os vulcões da subjetividade. Postas as ecologias sociais, os instintos que permeiam os demais desejos e cada história pessoal, surgem os desejos: nas brechas entre as paisagens. Nossos desejos são agentes infiltrados do nosso estado no mundo––e são nossos porque estamos condenados a pastoreá-los mesmo sem sermos seus donos. Verdades acerca dos desejos são independentes das nossas crenças em primeira pessoa, mas não são alheios aos caminhos dos nossos pensamentos: não são alheios ao que pensamos porque desejos são produzidos parcialmente pelo mecanismo dos nossos pensamentos––o pensamento é parte do sistema ecológico que produz os desejos. O pensamento deixa pelo chão elementos que produzem a força dos desejos: os desejos não surgem ex-nihilo e nem são naturais. Eles são a confluência dos instintos, dos caminhos do pensamento e dos agenciamentos coletivos. São transformáveis pelo pensamento, mas não são marionetes deles.
2. A transformação dos desejos transita por sua identificação. A identificação requer elementos de terceira pessoa: não há um privilégio da autoridade de primeira pessoa sobre os desejos. Não podemos decidir o que queremos desejar e nem cabe se submeter a facticidade dos desejos. A imagem sartreana da má-fé pela facticidade e pela transcendência inaugura uma auto-política: é preciso uma negociação entre a voz de primeira pessoa e a pressão dos desejos. Entre os desejos que eu me dou conta e os desejos que estão em mim não há uma autoridade suprema: há que se examinar as circunstâncias para determinar qual é o desejo. Porém estas determinações são em parte políticas: auto-políticas. A auto-política gira em torno do pensamento e é uma política de devires: não se trata de um diálogo entre identidades mas entre linhas de fuga dentro de nós. O caminho do pensamento é traçado sobre os desejos que ele encontra no chão––chão que em parte ele produz produzindo matéria-prima para o desejo.
Me preocupo com a política dos desejos há muito tempo e a maneira como penso nisto muda mais ou menos a cada fase da lua. Oscilo bastante. De uma maneira geral penso que a associação entre política e controle faz o dano: entendemos o que não controlamos como além da política. Algo semelhante com o controle e a pedagogia (e aqui Rancière pode ser interessante). Podemos ensinar sem controlar.
Acho que a sexualidade escapa pelos dedos, mas é por isto que a subjetividade é desafiadora. Acredito em um elemento de deixar os desejos emergirem, não mascará-los: eles habitam as fissuras das normas.
Por exemplo, a norma monoamorosa (adoto seu sufixinho mais arredondado) mascara os desejos do outro que é personagem das tuas três opções. Desejo e amor por outras pessoas não indicam sempre prova de desamor. Acho que por trás dos ciúmes existem elementos de normas, elementos de instintos, elementos de preferências. Benjamim me sugere que a política é como sendo o anjo que balança as paisagens. Não enxergo nos vulcões coisa fixa - a natureza é o que nós transformamos sempre por meio da articulação de nichos, sua transformação, sua descontrução. Penso que uma imagem propriamente darwinista da natureza ajuda a entender que ela não e a outra a qual nos adaptamos - ela é feita das marcas deixadas pela história das espécies (por exemplo, da nossa espécie). Acho que tuas três opções são monoamorosas; são opções políticas articuladas neste cenário. Não é um cenário compulsório.
Escrevi duas coisinhas grandes sobre este tema dos desejos e que estão na REF (revista de estudos feministas). Uma foi publicada em 2004 e outra vai sair no próximo número. A de 2004, com a qual já discordo bastante, está no site da REF:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-026X20040001&lng=en&nrm=iso
a segunda é uma tentativa de em parte corrigir o que me pareceu inadequado nesta primeira (mando como anexo). São coisinhas grandotas e não sei se você vai ter a pachorra de ler. De todo modo seria bacana continuar a discussão se você quiser - procurar um 'debate generoso', que expressão bonita!
com afeto, J., fique bem, estamos juntos.
hilan
A. J., olá.
Obrigado pela cartinha, muito simpática. Te conto logo de cara que atormento eu de montão com estas questões pinicantes que você menciona. Sim, desejos não estão ao alcance das mãos para serem mudados. A política dos desejos é uma espécie de auto-política: nossa autoridade sobre nossos desejos não é a autoridade final - de resto como a nossa autoridade sobre nossos discursos não é a autoridade final. Penso que auto-política é política de subjetividade e o que entra na subjetividade através de nossos corpos é o que faz as pessoas do corpuscrisis, por exemplo, ensaiarem movimentos entre a atenção à emergência dos desejos e a distribuição de privilégios que as normas dos desejos instauram. Nossa subjetividade em um sentido importante não é nossa: ela responde às matrizes de inteligibilidade do que é um sujeito (do que se espera que nós assujeitemos). Mas nós nos tornamos sujeitos nesta matriz.
Nestes dias de corpuscrisis sobrou apenas um tempinho em que comecei a escrever uma coisa que está assim:
1.Os desejos são os vulcões da subjetividade. Postas as ecologias sociais, os instintos que permeiam os demais desejos e cada história pessoal, surgem os desejos: nas brechas entre as paisagens. Nossos desejos são agentes infiltrados do nosso estado no mundo––e são nossos porque estamos condenados a pastoreá-los mesmo sem sermos seus donos. Verdades acerca dos desejos são independentes das nossas crenças em primeira pessoa, mas não são alheios aos caminhos dos nossos pensamentos: não são alheios ao que pensamos porque desejos são produzidos parcialmente pelo mecanismo dos nossos pensamentos––o pensamento é parte do sistema ecológico que produz os desejos. O pensamento deixa pelo chão elementos que produzem a força dos desejos: os desejos não surgem ex-nihilo e nem são naturais. Eles são a confluência dos instintos, dos caminhos do pensamento e dos agenciamentos coletivos. São transformáveis pelo pensamento, mas não são marionetes deles.
2. A transformação dos desejos transita por sua identificação. A identificação requer elementos de terceira pessoa: não há um privilégio da autoridade de primeira pessoa sobre os desejos. Não podemos decidir o que queremos desejar e nem cabe se submeter a facticidade dos desejos. A imagem sartreana da má-fé pela facticidade e pela transcendência inaugura uma auto-política: é preciso uma negociação entre a voz de primeira pessoa e a pressão dos desejos. Entre os desejos que eu me dou conta e os desejos que estão em mim não há uma autoridade suprema: há que se examinar as circunstâncias para determinar qual é o desejo. Porém estas determinações são em parte políticas: auto-políticas. A auto-política gira em torno do pensamento e é uma política de devires: não se trata de um diálogo entre identidades mas entre linhas de fuga dentro de nós. O caminho do pensamento é traçado sobre os desejos que ele encontra no chão––chão que em parte ele produz produzindo matéria-prima para o desejo.
Me preocupo com a política dos desejos há muito tempo e a maneira como penso nisto muda mais ou menos a cada fase da lua. Oscilo bastante. De uma maneira geral penso que a associação entre política e controle faz o dano: entendemos o que não controlamos como além da política. Algo semelhante com o controle e a pedagogia (e aqui Rancière pode ser interessante). Podemos ensinar sem controlar.
Acho que a sexualidade escapa pelos dedos, mas é por isto que a subjetividade é desafiadora. Acredito em um elemento de deixar os desejos emergirem, não mascará-los: eles habitam as fissuras das normas.
Por exemplo, a norma monoamorosa (adoto seu sufixinho mais arredondado) mascara os desejos do outro que é personagem das tuas três opções. Desejo e amor por outras pessoas não indicam sempre prova de desamor. Acho que por trás dos ciúmes existem elementos de normas, elementos de instintos, elementos de preferências. Benjamim me sugere que a política é como sendo o anjo que balança as paisagens. Não enxergo nos vulcões coisa fixa - a natureza é o que nós transformamos sempre por meio da articulação de nichos, sua transformação, sua descontrução. Penso que uma imagem propriamente darwinista da natureza ajuda a entender que ela não e a outra a qual nos adaptamos - ela é feita das marcas deixadas pela história das espécies (por exemplo, da nossa espécie). Acho que tuas três opções são monoamorosas; são opções políticas articuladas neste cenário. Não é um cenário compulsório.
Escrevi duas coisinhas grandes sobre este tema dos desejos e que estão na REF (revista de estudos feministas). Uma foi publicada em 2004 e outra vai sair no próximo número. A de 2004, com a qual já discordo bastante, está no site da REF:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-026X20040001&lng=en&nrm=iso
a segunda é uma tentativa de em parte corrigir o que me pareceu inadequado nesta primeira (mando como anexo). São coisinhas grandotas e não sei se você vai ter a pachorra de ler. De todo modo seria bacana continuar a discussão se você quiser - procurar um 'debate generoso', que expressão bonita!
com afeto, J., fique bem, estamos juntos.
hilan
17.6.06
Pode-se educar o desejo?
Carta a Hilan Bensusan, motivada por seu texto 'Mais Confiança?' (está no site: http://corpuscrisis.sarava.org/, em 'palavras')
Oi, Hilan...
Tudo bem? Como você está? Qual o balanço final do ‘corpus-crisis’? Não consegui escapar ao fascínio da copa para participar de outros encontros. Encontrei este endereço de email, espero que você ainda esteja recebendo por aqui. Senão, tento deixar esta minha cartinha – porque é isso, isto aqui não é mais que uma cartinha – no Departamento de Filosofia.
Li um texto seu “Mais confiança?”. (Na verdade, percebo que estou me tornando uma leitora, uma leitora às voltas com seu próprio acanhamento). Como algumas questões ainda estão martelando aqui comigo, pensei que poderia estabelecer esta linha de confiança e me arriscar a lhe mandar estas questões.
Não é exatamente sobre a confiança que eu queria lhe falar – penso na confiança em gesto, com você escrevendo este lindo texto e eu lhe oferecendo algumas palavras (quanto mais darmos, mais podemos dar ainda). Queria conversar sobre o que você chama de praticas poliamóricas (por que não poliamorosas?), os usos subversivos do erotismo, a confiança e desconfiança dentro deste espaço.
Nestes últimos tempos, tenho tendido à psicanálise, como já lhe disse – eu acho. Não suportaria qualquer outra linha da psicologia – RH, por exemplo – que não fosse também um trabalho sobre mim, que não forçasse as minhas concepções durante sua pratica e não exigisse de mim novos posicionamentos éticos. As questões que estou pensando tem, muito, base numa certa compreensão psicanalítica da sexualidade.
Você fala das relações monoamóricas e como elas se articulam à desconfiança (instrumento do mestre): se eu suspeitar – e, aqui, a suspeita é motor – que o outro com quem me relaciono pode se interessar por outra pessoa, devo 1) exigir dele explicações, cobrando sua parte do contrato monoamórico (e sofrer com isso), ou 2) terminar esta ligação imediatamente, sem maiores direitos à explicação (sofrendo), ou mais 3) não dizer nada, manter esta relações, e sofrer horrores pelo que considero uma prova de desamor.
Através da confiança, nas relações poliamóricas, por exemplo, eu posso quebrar roteiros que trazem sofrimento e, mais, balançar os alicerces de formação de poderes nas nossas relações do dia-a-dia. Retomo o que você diz: “Penso que a confiança subverte, cria fissuras, promove rachaduras na casa do mestre.”
Eu posso, por exemplo, ler seu texto e rever meus conceitos sobre em que pessoas eu confio e eu de quais eu desconfio, me perguntando quais são critérios que me pesam: o sexo, a cor da pele, participar do mesmos movimentos que eu (o PT, o movimento contra o ato médico) ou que compartilham os mesmos interesses que eu (a psicanálise, a literatura, a arte de Jenny Holzer). Eu posso refletir e chegar a novas posições naturalmente ou refletir e exigir de mim novas posições porque considero que gestos políticos são importantes.
Mas como fazer isso nas relações amorosas? Como fazer isso no âmbito de nossa sexualidade? Será o desejo também educável?
Não acredito que nossa sexualidade seja desconectada de nosso mundo social – e esta nem é a posição da psicanálise tampouco. Por mais que o ângulo seja de valorização do individual, do micro, do mínimo, sabemos que tudo isso é determinado socialmente, mesmo que os mecanismos nos escapem (serão os discursos determinantes? ou as práticas? será a classe social explicação completa?...)
Erógeno, para a psicanálise, vai ser exatamente aquele ponto que o cuidado parental – materno ou paterno ou de alguém que ocupe estas posições – tocou o corpo do infans; se não há investimento do adulto no corpo infantil não há o estopim que movimenta as pulsões, que as faz circular pelo corpo. A sexualidade também é construída, erigida através destes gestos iniciais.
Mesmo que desamparado diante do adulto, a criança captura, através destes gestos, sua sexualidade confusa e contraditória – e enigmática, por isso, traumática (segundo, mais uma vez, a psicanálise). A sexualidade no sentido amplo que a psicanálise lhe dá: como e onde se dão os investimentos libidinais, onde eles são travados, onde eles são proibidos. Através dos gestos e, mais tarde, das falas, o adulto repassa para a criança suas concepções sobre a sexualidade, muitas vezes atravessada pelos discursos sociais mais poderosos (misóginos, machistas, homofóbicos).
Bom, o que estou tentando dizer: para a psicanálise, a sexualidade vai ser fundada lá na infância, num momento muito inicial, quase mítico, um tanto quanto irresgatável. Essa é a concepção psicanalítica, pode-se pensar de outra forma, pode-se pensar que a sexualidade, de fato, só vai ser fundada na adolescência ou em qualquer outro momento. O que está me interessando aqui é a idéia de que a sexualidade, num plano individual – já que a confiança é também um gesto individual – advém de fatores que desconhecemos. Quem pode dizer o que determina um desejo heterossexual ou um desejo homossexual? Apesar da força dos discursos sociais reguladores como, por exemplo, os discursos homofóbicos, isso não impede que as pessoas tenham e vivam um desejo homossexual. E, desta mesma forma, é possível ler seu texto, pensar na validade dos relacionamentos poliamóricos como algo mais interessante, mais prazeroso e, ainda assim, manter de um relacionamento monoamórico.
Não sei se estou me fazendo entender. O que estou lhe apresentando aqui é um problema que tem me tirado o sono já há algum tempo: sexualidade e ‘ação política’, digamos assim, se encontram? É possível julgar a sexualidade por estes critérios? É possível julgar o desejo?
A sexualidade é o lugar do desconhecido no sujeito. O sujeito se vê desejando algo ou alguém que não gostaria de desejar, fazendo o que seu corpo quer fazer mas que seu intelecto repudia. A sexualidade é responsável por colocar identidade ou, pelo menos, a ilusão de uma identidade coerente, não contraditória, em cheque. E isso tem valor positivo.
Mas se o desejo é desgonvernável, ele nem sempre é subversivo neste desgoverno. Na clinica psicanalítica, como em qualquer outra clinica psicoterapeutica que preze seus compromissos éticos, não há espaço para pedagogia, não há espaço para reeducação ou qualquer espécie de julgamento.
Entretanto, também fora da clinica, não consigo perceber como podemos pensar a sexualidade como passível de ser questionada do mesmo modo que meus preconceitos, confianças e desconfianças. Não sei se estou me fazendo entender. Será que o desejo pode ser educado? O desejo, obviamente, vai se transformando através de nossas experiências, nossas vivências, nossos momentos. Mas de onde vem a sexualidade é tão misterioso, tão insondável... de tal forma que as pedagogias sexuais, por exemplo, na maioria das vezes, tem resultado imprevisíveis, inusitados, incalculáveis (basta ver os escândalos envolvendo padres e menores de idade).
Não quero dizer, de forma alguma, que a sexualidade não deva ser discutida ou que estas discussões são vãs. Nem quero dizer que a psicanálise tenha maior clarividência nestes assuntos que qualquer outra posição – esta é, apenas, a posição que tem me instigado e cada um tem direito de eleger a posição que acredita mais satisfatória. Acredito que os debates; os deslocamentos, mínimos que sejam, dentro das grandes crenças da nossa sociedade (a nossa ‘brasilidade’ que fala da mulher bonita, gostosa, boa de cama, do garanhão, etc); a visibilidade do movimento gay, etc, acho que tudo isso tem um efeito – mas me pergunto: será que os discursos sobre a sexualidade não andam muito mais rápido que a própria sexualidade? Será que a sexualidade não escapa, escorrega pelos dedos, mesmo nestas horas que pensamos outras formas de ligação entre as pessoas, como a confiança num relacionamento poliamorico?
Hilan, reitero aqui que isto são questões que tenho pensado, problemas com os quais me deparo todo os dias e, de forma alguma, uma espécie de disputa onde uma fala se sobreponha e tente calar a outra. Falo isso porque tem me parecido tão difícil nestes últimos tempos achar espaços para um debate generoso...
Acho que é isso. Gostei muito do seu texto, ainda estou pensando sobre os versos Aharon Shabtai, sobre se sentir ‘uma pessoa pela metade’ ao barrar aqueles que estão do outro lado da cerca e sobre como é, muitas vezes, difícil sustentar os ‘lugares de diferença em si’, dos quais fala Audre Lorde.
Beijos,
j.
Oi, Hilan...
Tudo bem? Como você está? Qual o balanço final do ‘corpus-crisis’? Não consegui escapar ao fascínio da copa para participar de outros encontros. Encontrei este endereço de email, espero que você ainda esteja recebendo por aqui. Senão, tento deixar esta minha cartinha – porque é isso, isto aqui não é mais que uma cartinha – no Departamento de Filosofia.
Li um texto seu “Mais confiança?”. (Na verdade, percebo que estou me tornando uma leitora, uma leitora às voltas com seu próprio acanhamento). Como algumas questões ainda estão martelando aqui comigo, pensei que poderia estabelecer esta linha de confiança e me arriscar a lhe mandar estas questões.
Não é exatamente sobre a confiança que eu queria lhe falar – penso na confiança em gesto, com você escrevendo este lindo texto e eu lhe oferecendo algumas palavras (quanto mais darmos, mais podemos dar ainda). Queria conversar sobre o que você chama de praticas poliamóricas (por que não poliamorosas?), os usos subversivos do erotismo, a confiança e desconfiança dentro deste espaço.
Nestes últimos tempos, tenho tendido à psicanálise, como já lhe disse – eu acho. Não suportaria qualquer outra linha da psicologia – RH, por exemplo – que não fosse também um trabalho sobre mim, que não forçasse as minhas concepções durante sua pratica e não exigisse de mim novos posicionamentos éticos. As questões que estou pensando tem, muito, base numa certa compreensão psicanalítica da sexualidade.
Você fala das relações monoamóricas e como elas se articulam à desconfiança (instrumento do mestre): se eu suspeitar – e, aqui, a suspeita é motor – que o outro com quem me relaciono pode se interessar por outra pessoa, devo 1) exigir dele explicações, cobrando sua parte do contrato monoamórico (e sofrer com isso), ou 2) terminar esta ligação imediatamente, sem maiores direitos à explicação (sofrendo), ou mais 3) não dizer nada, manter esta relações, e sofrer horrores pelo que considero uma prova de desamor.
Através da confiança, nas relações poliamóricas, por exemplo, eu posso quebrar roteiros que trazem sofrimento e, mais, balançar os alicerces de formação de poderes nas nossas relações do dia-a-dia. Retomo o que você diz: “Penso que a confiança subverte, cria fissuras, promove rachaduras na casa do mestre.”
Eu posso, por exemplo, ler seu texto e rever meus conceitos sobre em que pessoas eu confio e eu de quais eu desconfio, me perguntando quais são critérios que me pesam: o sexo, a cor da pele, participar do mesmos movimentos que eu (o PT, o movimento contra o ato médico) ou que compartilham os mesmos interesses que eu (a psicanálise, a literatura, a arte de Jenny Holzer). Eu posso refletir e chegar a novas posições naturalmente ou refletir e exigir de mim novas posições porque considero que gestos políticos são importantes.
Mas como fazer isso nas relações amorosas? Como fazer isso no âmbito de nossa sexualidade? Será o desejo também educável?
Não acredito que nossa sexualidade seja desconectada de nosso mundo social – e esta nem é a posição da psicanálise tampouco. Por mais que o ângulo seja de valorização do individual, do micro, do mínimo, sabemos que tudo isso é determinado socialmente, mesmo que os mecanismos nos escapem (serão os discursos determinantes? ou as práticas? será a classe social explicação completa?...)
Erógeno, para a psicanálise, vai ser exatamente aquele ponto que o cuidado parental – materno ou paterno ou de alguém que ocupe estas posições – tocou o corpo do infans; se não há investimento do adulto no corpo infantil não há o estopim que movimenta as pulsões, que as faz circular pelo corpo. A sexualidade também é construída, erigida através destes gestos iniciais.
Mesmo que desamparado diante do adulto, a criança captura, através destes gestos, sua sexualidade confusa e contraditória – e enigmática, por isso, traumática (segundo, mais uma vez, a psicanálise). A sexualidade no sentido amplo que a psicanálise lhe dá: como e onde se dão os investimentos libidinais, onde eles são travados, onde eles são proibidos. Através dos gestos e, mais tarde, das falas, o adulto repassa para a criança suas concepções sobre a sexualidade, muitas vezes atravessada pelos discursos sociais mais poderosos (misóginos, machistas, homofóbicos).
Bom, o que estou tentando dizer: para a psicanálise, a sexualidade vai ser fundada lá na infância, num momento muito inicial, quase mítico, um tanto quanto irresgatável. Essa é a concepção psicanalítica, pode-se pensar de outra forma, pode-se pensar que a sexualidade, de fato, só vai ser fundada na adolescência ou em qualquer outro momento. O que está me interessando aqui é a idéia de que a sexualidade, num plano individual – já que a confiança é também um gesto individual – advém de fatores que desconhecemos. Quem pode dizer o que determina um desejo heterossexual ou um desejo homossexual? Apesar da força dos discursos sociais reguladores como, por exemplo, os discursos homofóbicos, isso não impede que as pessoas tenham e vivam um desejo homossexual. E, desta mesma forma, é possível ler seu texto, pensar na validade dos relacionamentos poliamóricos como algo mais interessante, mais prazeroso e, ainda assim, manter de um relacionamento monoamórico.
Não sei se estou me fazendo entender. O que estou lhe apresentando aqui é um problema que tem me tirado o sono já há algum tempo: sexualidade e ‘ação política’, digamos assim, se encontram? É possível julgar a sexualidade por estes critérios? É possível julgar o desejo?
A sexualidade é o lugar do desconhecido no sujeito. O sujeito se vê desejando algo ou alguém que não gostaria de desejar, fazendo o que seu corpo quer fazer mas que seu intelecto repudia. A sexualidade é responsável por colocar identidade ou, pelo menos, a ilusão de uma identidade coerente, não contraditória, em cheque. E isso tem valor positivo.
Mas se o desejo é desgonvernável, ele nem sempre é subversivo neste desgoverno. Na clinica psicanalítica, como em qualquer outra clinica psicoterapeutica que preze seus compromissos éticos, não há espaço para pedagogia, não há espaço para reeducação ou qualquer espécie de julgamento.
Entretanto, também fora da clinica, não consigo perceber como podemos pensar a sexualidade como passível de ser questionada do mesmo modo que meus preconceitos, confianças e desconfianças. Não sei se estou me fazendo entender. Será que o desejo pode ser educado? O desejo, obviamente, vai se transformando através de nossas experiências, nossas vivências, nossos momentos. Mas de onde vem a sexualidade é tão misterioso, tão insondável... de tal forma que as pedagogias sexuais, por exemplo, na maioria das vezes, tem resultado imprevisíveis, inusitados, incalculáveis (basta ver os escândalos envolvendo padres e menores de idade).
Não quero dizer, de forma alguma, que a sexualidade não deva ser discutida ou que estas discussões são vãs. Nem quero dizer que a psicanálise tenha maior clarividência nestes assuntos que qualquer outra posição – esta é, apenas, a posição que tem me instigado e cada um tem direito de eleger a posição que acredita mais satisfatória. Acredito que os debates; os deslocamentos, mínimos que sejam, dentro das grandes crenças da nossa sociedade (a nossa ‘brasilidade’ que fala da mulher bonita, gostosa, boa de cama, do garanhão, etc); a visibilidade do movimento gay, etc, acho que tudo isso tem um efeito – mas me pergunto: será que os discursos sobre a sexualidade não andam muito mais rápido que a própria sexualidade? Será que a sexualidade não escapa, escorrega pelos dedos, mesmo nestas horas que pensamos outras formas de ligação entre as pessoas, como a confiança num relacionamento poliamorico?
Hilan, reitero aqui que isto são questões que tenho pensado, problemas com os quais me deparo todo os dias e, de forma alguma, uma espécie de disputa onde uma fala se sobreponha e tente calar a outra. Falo isso porque tem me parecido tão difícil nestes últimos tempos achar espaços para um debate generoso...
Acho que é isso. Gostei muito do seu texto, ainda estou pensando sobre os versos Aharon Shabtai, sobre se sentir ‘uma pessoa pela metade’ ao barrar aqueles que estão do outro lado da cerca e sobre como é, muitas vezes, difícil sustentar os ‘lugares de diferença em si’, dos quais fala Audre Lorde.
Beijos,
j.
16.6.06
11.6.06
Homenagen - será? - a algumas desconhecidas...
Veio-lhe logo à mente a imagem. Estava surpreendentemente bela - disse William. Mas a beleza não é tudo. A beleza tinha essa desvantagem - vinha depressa demais, demasiadamente íntegra. Imobilizava a vida - paralisava-a. Esquecia-se das pequenas atribulações, o rubor e a 'palidez, qualquer estranha mudança, qualquer luz ou sombra que tornavam o rosto irreconhecível por um momento e contudo lhe acrescentava uma qualidade que se passava a ver dali por diante. Era mais simples dissimular tudo isso sob a máscara da beleza.Virginia Woolf, Rumo ao Farol
3.6.06
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