Depois do filósofo e do religioso, é “A literatura [que] nos fornece o terceiro tipo de buscador da verdade: o amante” (Garcia-Roza, 1998, p. 18). O filósofo busca a verdade por estar perplexo diante do mundo e estabelece critérios, como a não-contradição, para diferenciar aquilo que é verdadeiro do que é enganoso. Diferentemente do filósofo, o religioso busca a verdade em seu próprio interior, porque acredita que o caminho para Deus é também o caminho da verdade e, dentro de si, se encontra uma centelha divina.
Mas quem é este amante? É “o ciumento sob a pressão das mentiras do amado” (2003, p. 14), nos diz Deleuze em seu estudo sobre Proust. O amante nos mostra que a verdade é crivada de mentiras e que a mentira se ilumina interiormente pela verdade. O protagonista de À la Recherche du Temps Perdu desconfia de Albertine, sua amante, acha que ela o engana, procura artifícios que a façam revelar-se. Mas a verdade, aqui, não é a adequação entre discurso e realidade, mas “o efeito de encontros que se dão ao acaso” (Garcia-Roza, 1998, p. 18).
Também quem se arrisca pela literatura se envolve numa busca amorosa em que procura menos verificar a relação de conformidade entre a linguagem e o mundo – caso seja possível separar estes dois – do que ouvir os espaços vazios que se tecem entre as palavras. Trata-se de denunciar imposturas da linguagem tal como o amante ciumento quando questiona a amada em suas mentiras, em seus jogos duplos, naquilo onde sua palavra não se sustenta – a decifração do discurso de Albertine é gesto de amor e de desconfiança, é decifração erótica e tormento da linguagem.
Este amante, vigilante das trapaças da linguagem, procederá, no campo psicanalítico, a uma busca semelhante: na análise, a palavra pronunciada é contraposta à palavra não dita, a palavra denegada é simétrica à palavra afirmativa, até chegarmos à palavra recalcada que salta, inadvertidamente, dos lábios de um analisando aflito. Que mecanismos de engano, encontro, verdade e equívoco movimentam o interior da linguagem?
(...)
Não há – ou não deveria haver – por parte do psicanalista, o desejo de explicar ou desvendar um texto através de uma interpretação. Diz Lacan: “Quanto à psicanálise, estar pendurada no Édipo em nada a habilita a se orientar no texto de Sófocles” (Lacan, 1971/2003, p. 16). Um diálogo entre psicanálise e literatura deve resistir às tentações de uma psicobiografia ou de uma aplicação de conceitos psicanalíticos, e manter a possibilidade de que ambas se espantem de vez em quando, se afastem, como conseqüência do próprio movimento de atração que as aproxima – resposta ao campo imantado entre uma e outra. Áreas obscuras necessariamente se mantêm e a psicanálise deve resguardar os pontos nebulosos ou ambíguos de um texto, em vez de atravessá-los pela luz de algum suposto saber.
Lacan afirma que psicanálise e literatura fazem fronteira, que se esbarram e partilham um terreno comum que se tenta delimitar (1971/2003). Buscamos, com este trabalho, apontar que a leitura psicanalítica de uma obra de arte é possível e se sustenta pelo modo como a psicanálise delineia a natureza do inconsciente. No inconsciente, restos de palavras, restos de coisas – traços que, por conta de sua natureza de sobras, exigem leitura. A visada psicanalítica sobre a literatura deve ter em vista que uma interpretação, ao decifrar, não esgota, mas cifra novamente. A escrita de Roussel vem nos lembrar os limites da interpretação, os limites da linguagem e da literatura – portanto, os limites da própria psicanálise. O enigma, então, reverbera, com Roussel, sobre a psicanálise, no lado da psicanálise, uma vez que, tratando-se de literatura, Moby Dick é lição máxima: no fim das contas, a baleia vai para onde quiser ir (Eco, 2003).
Fonte: "A psicanálise nos limites da literatura - Um estudo sobre a obra de Raymond Roussel." (UnB).
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