Em “Bartleby e companhia”, Vila-Matas descreve os vários escritores da ‘pulsão negativa’, os ‘escritores do Não’ como ele os chama.
Autores às voltas com iniciar ou dar continuidade à sua produção, sem conseguir sair deste dilema. Ele cita o caso de Joseph Joubert, figura imersa nos círculos literários de sua época. Seus amigos esperavam que, no momento de sua morte, se descobrisse uma obra magnífica, produzida em segredo durante anos de silêncio. Não encontraram nada disso, apenas um diário em que Joubert descreve sua procura pela fonte da qual nascem as obras, mas que, caso encontrasse, não faria mais que reafirmar o acerto de sua escolha pela não-produção. Ainda assim, sem nenhum livro escrito, os amigos de Joubert nunca duvidaram de seu talento literário, da dedicação absoluta de sua vida à arte.
Entre os escritores do negativo, reais ou imaginários, apresentados por Vila-Matas, este me chama a atenção por conceituar a arte fora da relação entre o autor e sua produção – o escritor como aquele que escreve livros, o pintor como quem pinta quadros, o músico que compõe canções –, localizando-a, então, na relação do sujeito com sua vida, com as escolhas realizadas em sua vida.
Joubert não publicou nenhum livro em vida. Seu diário, publicado pelos amigos após sua morte, não é ficção e não era considerada “obra” por seu autor: “Já se disse que Joubert não escreveu esse livro tão esperado porque o diário lhe parecia suficiente. Mas tal afirmação me parece um disparate. Não acredito que o diário tenha enganado Joubert fazendo-o pensar que nadava em abundância. As páginas de seu diário lhe serviam apenas para expressar as múltiplas vicissitudes pelas quais passava em sua heróica busca pela fonte da escrita.”
Ele não publica, ele não pinta, ele não compõe, não transforma a pedra em escultura. Mas está, sabe que está, “na geografia da arte”, mesmo que lhe falte a autorização de um livro, o salvo-conduto que lhe permitiria entrar neste território: “Aqui estou, fora das coisas civis e na pura região da arte.”
Mas o que é, então, estar na geografia da arte, se a arte não é mais a produção? O que é um autor sem obra?
Marguerite Duras, em “Écrire”, obra também citada – muitas vezes – por Vila-Matas, diz, tentando esmiuçar as razões de sua escrita: “C’était sans doute simplement que j’étais déjà, un peu plus que les autres gens, fatiguée de vivre. C’était un état de douleur sans souffrance.” Não mais atrelada aos ditames da produção, a arte se torna uma relação do sujeito com a vida. Uma relação de cisão, de distanciamento.
Se definirmos a arte, numa proposição simplória, como um exercício de imaginação, há uma cisão porque o artista volta seu olhar para outro mundo – outros mundos possíveis diante da estreiteza do mundo “real”, cujas tramas deixaram de ser exaustivas ou exigentes, estado de dor sem sofrimento.
Se a arte é tradução – do mundo “real” para o mundo íntimo, do mundo íntimo de volta ao mundo “real”; da linguagem do mundo para a língua do artista –, esta cisão se mantém. Para a tradução, a passagem de uma língua original a uma língua estrangeira, é preciso que eu me separe, me afaste, ignore o apelo da língua original para alcançar a língua estrangeira em sua estranheza, deixar que isso me alcance, tomando o lugar do original.
Na geografia da arte, distância do fato, ato, gesto, da matéria bruta, vivida e ininteligível, para o pertencimento do sujeito à uma outra linguagem: a música, a imagem, a palavra.
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