“E temos medo da horda. Acima de tudo, um medo pânico, imbuído de culpas, e por isso mesmo propiciador de nossos desejos mais destrutivos e mais egoístas; das multidões miseráveis cada vez mais perto dos nossos calcanhares e cada vez mais afastadas de nossos projetos. A horda que a modernidade prometeu libertar – seja via “progresso” seja via “revolução” – e não libertou; prometeu emancipar da miséria e não emancipou; prometeu civilizar, introduzir nos benefícios da nossa civilização e não civilizou. A horda dos excluídos de todos os benefícios da modernidade. Nos países miseráveis do que se costuma chamar “terceiro mundo”; nas periferias das metrópoles – até mesmo as mais afastadas – ou esquecidos onde o campo é mais improdutivo, mais estéril. Assaltando, seqüestrando, bombardeando, matando e morrendo em grandes bandos, esmolando, reinvindicando, exigindo, implorando – ou simplesmente suportando, em silêncio resignado, cheio de religiosidade. A horda, esses “outros” que gostaríamos de banir da cercania do nosso paraíso, mas não podemos (ainda?). O outro a quem odiamos, que nos odeia, e de quem dependemos. O yuppie quer desfrutar plenamente o paraíso dos seus bens “conquistados” (o que ele acredita muito justo), mas não pode porque o miserável está na sua cola. E o que é pior: ao contrário do que acontece em períodos de desenvolvimento econômico baseado em algum tipo de pacto social em que todas as classes teriam alguma coisa a ganhar, hoje a horda não tem como se integrar em nossos planos. Seu protesto – ou lamento – é sentido como ruído inconveniente que gostaríamos de silenciar.”
“A Razão depois da queda”, Maria Rita Kehl.
In: “Tempo e Desejo: Sociologia e Psicanálise”, Heloisa Rodrigues Fernandes (org)
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