18.3.09

Na geografia da arte

Em “Bartleby e companhia”, Vila-Matas descreve os vários escritores da ‘pulsão negativa’, os ‘escritores do Não’ como ele os chama.


Autores às voltas com iniciar ou dar continuidade à sua produção, sem conseguir sair deste dilema. Ele cita o caso de Joseph Joubert, figura imersa nos círculos literários de sua época. Seus amigos esperavam que, no momento de sua morte, se descobrisse uma obra magnífica, produzida em segredo durante anos de silêncio. Não encontraram nada disso, apenas um diário em que Joubert descreve sua procura pela fonte da qual nascem as obras, mas que, caso encontrasse, não faria mais que reafirmar o acerto de sua escolha pela não-produção. Ainda assim, sem nenhum livro escrito, os amigos de Joubert nunca duvidaram de seu talento literário, da dedicação absoluta de sua vida à arte.


Entre os escritores do negativo, reais ou imaginários, apresentados por Vila-Matas, este me chama a atenção por conceituar a arte fora da relação entre o autor e sua produção – o escritor como aquele que escreve livros, o pintor como quem pinta quadros, o músico que compõe canções –, localizando-a, então, na relação do sujeito com sua vida, com as escolhas realizadas em sua vida.


Joubert não publicou nenhum livro em vida. Seu diário, publicado pelos amigos após sua morte, não é ficção e não era considerada “obra” por seu autor: “Já se disse que Joubert não escreveu esse livro tão esperado porque o diário lhe parecia suficiente. Mas tal afirmação me parece um disparate. Não acredito que o diário tenha enganado Joubert fazendo-o pensar que nadava em abundância. As páginas de seu diário lhe serviam apenas para expressar as múltiplas vicissitudes pelas quais passava em sua heróica busca pela fonte da escrita.”


Ele não publica, ele não pinta, ele não compõe, não transforma a pedra em escultura. Mas está, sabe que está, “na geografia da arte”, mesmo que lhe falte a autorização de um livro, o salvo-conduto que lhe permitiria entrar neste território: “Aqui estou, fora das coisas civis e na pura região da arte.”


Mas o que é, então, estar na geografia da arte, se a arte não é mais a produção? O que é um autor sem obra?


Marguerite Duras, em “Écrire”, obra também citada – muitas vezes – por Vila-Matas, diz, tentando esmiuçar as razões de sua escrita: “C’était sans doute simplement que j’étais déjà, un peu plus que les autres gens, fatiguée de vivre. C’était un état de douleur sans souffrance.” Não mais atrelada aos ditames da produção, a arte se torna uma relação do sujeito com a vida. Uma relação de cisão, de distanciamento.


Se definirmos a arte, numa proposição simplória, como um exercício de imaginação, há uma cisão porque o artista volta seu olhar para outro mundo – outros mundos possíveis diante da estreiteza do mundo “real”, cujas tramas deixaram de ser exaustivas ou exigentes, estado de dor sem sofrimento.


Se a arte é tradução – do mundo “real” para o mundo íntimo, do mundo íntimo de volta ao mundo “real”; da linguagem do mundo para a língua do artista –, esta cisão se mantém. Para a tradução, a passagem de uma língua original a uma língua estrangeira, é preciso que eu me separe, me afaste, ignore o apelo da língua original para alcançar a língua estrangeira em sua estranheza, deixar que isso me alcance, tomando o lugar do original.


Na geografia da arte, distância do fato, ato, gesto, da matéria bruta, vivida e ininteligível, para o pertencimento do sujeito à uma outra linguagem: a música, a imagem, a palavra.

De pé, ó vítimas da fome...

“E temos medo da horda. Acima de tudo, um medo pânico, imbuído de culpas, e por isso mesmo propiciador de nossos desejos mais destrutivos e mais egoístas; das multidões miseráveis cada vez mais perto dos nossos calcanhares e cada vez mais afastadas de nossos projetos. A horda que a modernidade prometeu libertar – seja via “progresso” seja via “revolução” – e não libertou; prometeu emancipar da miséria e não emancipou; prometeu civilizar, introduzir nos benefícios da nossa civilização e não civilizou. A horda dos excluídos de todos os benefícios da modernidade. Nos países miseráveis do que se costuma chamar “terceiro mundo”; nas periferias das metrópoles – até mesmo as mais afastadas – ou esquecidos onde o campo é mais improdutivo, mais estéril. Assaltando, seqüestrando, bombardeando, matando e morrendo em grandes bandos, esmolando, reinvindicando, exigindo, implorando – ou simplesmente suportando, em silêncio resignado, cheio de religiosidade. A horda, esses “outros” que gostaríamos de banir da cercania do nosso paraíso, mas não podemos (ainda?). O outro a quem odiamos, que nos odeia, e de quem dependemos. O yuppie quer desfrutar plenamente o paraíso dos seus bens “conquistados” (o que ele acredita muito justo), mas não pode porque o miserável está na sua cola. E o que é pior: ao contrário do que acontece em períodos de desenvolvimento econômico baseado em algum tipo de pacto social em que todas as classes teriam alguma coisa a ganhar, hoje a horda não tem como se integrar em nossos planos. Seu protesto – ou lamento – é sentido como ruído inconveniente que gostaríamos de silenciar.”

“A Razão depois da queda”, Maria Rita Kehl.
In: “Tempo e Desejo: Sociologia e Psicanálise”, Heloisa Rodrigues Fernandes (org)

Lucky Thirteen

Premissa 1 – Inquietação: A angústia é um afeto sem objeto, em que a excitação do corpo não encontra representante psíquico, manifestando-se na forma de fenômenos somáticos: falta de ar, arritmia, taquicardia, distúrbios gástricos, vertigens, etc.


Premissa 2 – Eros: A sexualidade é campo fértil para atuações.


Hipótese: Eros como defesa contra angústia e reafirmação/dissolução das posições de sujeito e objeto.


Sem representante psíquico, sem objeto, a angustia despeja-se sobre o corpo, dispara sobre ele, sem paradas, sem passagens, sem travessias, na forma de inquietação (uma paciente diz: “Está me beliscando. Jogaram pó de mico por dentro da minha pele”). Não há nome – a angústia é pergunta viva, ou melhor, é incômodo maior, não há sequer pergunta porque uma pergunta poderia ser, talvez, a pista para encontrar uma resposta. (Perguntam: “Fica quieta – o que é que você tem?”. Suspiro. “Eu não sei.”)


Na angústia, como um convite implícito, multiplicam-se as atuações, sendo Eros território privilegiado para isso - promiscuidade, sexo vazio, relações aleatórias. Não que Eros seja a resposta que o sujeito angustiado procura ou mesmo a pergunta que a antecede e lhe dá forma. Mas Eros espalha a inquietude do corpo, a absolve temporariamente – um balão que perde ar e altitude; uma doença que regride; o desaparecimento de uma aparição - até o seu retorno.


Mas, ainda assim, o sujeito arrisca tudo nesta busca.


Sob o signo de Eros, o sujeito reafirma sua posição: tomo o outro como objeto, ignoro sua subjetividade e faço dele só corpo para que minha própria subjetividade angustiada desapareça. Ignorando o desejo do outro, não preciso me responsabilizar pelo meu desejo – ignorando o motor individual de qualquer ação, insisto num apagamento das fronteiras narcísicas, procuro dissolução do eu e todas as suas infinitas e tediosas complicações. Que eu viva apenas como resultado de um empuxo, uma força gravitacional sem nome e que também não exige que eu reconheça – ou dê nome – aos meus desejos.


Sob a angústia, o desejo é só teia, captura - inescapável. Não podendo lutar contra um inimigo sem nome, mas que insiste em chamar para a batalha, me lanço em transgressões que me esqueçam, me fazendo nada mais que uma oferenda a um Outro.


Quando a singularidade do outro não me ameaça, quando consigo ver, sem tremer, estes restos de humanidade que eu represento, o desejo é vereda e convite e as posições de sujeito e objeto alternam-se dialeticamente, suavemente, como na respiração de um órgão, nas paredes que se aproximam e se afastam...


Que Eros seja palco de ambas as transgressões.


Francis Bacon, "Self-Portrait", 1971

1.3.09

Stuck Inside of Mobile With The Memphis Blues Again - Cat Power



Cat Power e Bob Dylan... precisa de mais?