Minha irmã me ouviu tocar e disse: “Vi na hora que você estava viajando”. Sem saber, minha irmã percebeu mais que qualquer um.
Assim que o ensaio alcança uma estabilidade, aquele momento em que a música acontece de maneira mais fluida e, mais que o regente, são os instrumentos que chamam-se uns aos outros, é quando eu começo a olhar para cima (as árvores, os pára-quedistas do parque, o centro de convenções; se for noite, o céu) e alço meu vôo particular.
Condição de estar lá é não estar completamente. A música me faz distante. São exatamente as pancadas do surdo que me tranqüilizam, a um preço justo, módico: o distanciamento. Meus pensamentos se transformam em som, em batidas reverberantes, em vibrações, em ecos que se perdem. Estranhamente, nunca serão tão claros quanto nos ensaios de uma banda de percussão com mais de cem membros. Vejo meus pensamentos; enquanto música, eles não se tornam imagens, mas, ainda assim, se tornam visíveis.
Dos 125 músicos, quero ser a última. Fazer parte das vidas anônimas, das sombras que se perdem no fim da multidão, dos sons que desfazem as formas, “fundir-se aos mortos e aos sobreviventes”. Qualquer luz individual me irrita agora; numa banda desta, o destaque, a diferenciação, se positivo para um, é negativo para o conjunto. Leio em “A vida dos homens infames”, de Foucault:
“Pretendi também que estas personagens fossem elas mesmas obscuras; que nada as tivesse predisposto a uma qualquer notoriedade; que não tenham sido dotadas de nenhuma das grandezas como tal estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem àqueles milhões de existências que estão destinadas a não deixar rastro (…)”
Mesmo a mais radical noção de “coletivo” é transformada após esta experiência – e toda a sintonia e sincronia arduamente buscada, mas que deve ser apresentada como natural (o pom equilibra-se ao pim, os repiques sustentam os ritmos, a dobras dobram juntas), desfaz-se quando o campo é o campo da palavra. E, de repente, uma experiência musical torna-se uma experiência política (talvez nunca tenha deixado de ser).
Em meu dicionário pessoal, "moralização" quer dizer querer se tornar dono do discurso do outro, eleger-se como juiz mais indicado para julgar aquela fala que não é sua. Moralizar quer dizer lutar para encarcerar os discursos através da desqualificação dos falantes, ignorando que os discursos devem circular livremente e que, mesmo quando mais arduamente combatidos, eles ainda escorregam pelas proibições. Claro que, individualmente, não pára de crescer a pilha de cadáveres dos que morreram por esta única e exclusiva causa: o amordaçamento radical.
Todos os discursos são legítimos, mesmo aqueles que não são – eis meu credo. Deve-se fortalecer não o poder de silenciá-los, mas a capacidade de escutar e responder a eles. Nenhuma censura é aceitável. Não existe um momento em que a censura seja positiva.
Ao mesmo tempo, nem todas as falas merecem resposta – treino em falar apenas aquele mínimo no qual acredito, esperando que as palavras possam criar uma rede que me sustente, que seu uso parcimonioso me proteja, mas sem ignorar sua falha: a multiplicação infinita de sentidos e sua adesão, imediata, aos discursos que circulam sem dono.
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