“Muito cedo em minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco anos meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com todos, nunca perguntei. Creio que alguém já me falou dessa investida do tempo que às vezes nos acomete na primeira juventude, nos anos festejados da vida. Esse envelhecimento foi brutal. Eu o vi apossar-se dos traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, aumentando o tamanho dos olhos, fazendo mais triste o olhar, mais definida a boca, marcando a testa com rugas profundas. Não tive medo e observei o envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria dedicado a uma leitura. Sabia também que não estava enganada, que um dia ele ficaria mais lento, tomando seu curso normal. As pessoas que haviam me conhecido à época de minha viagem à França, quando eu tinha dezessete anos, ficaram impressionadas quando me reviram dois anos mais tarde, com dezenove. Aquele rosto, novo, eu o conservei. Foi o meu rosto. Envelheceu também, é claro, mas relativamente menos do que devia. Tenho um rosto lacerado por rugas secas e profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas de traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Tenho um rosto destruído.”
Marguerite Duras, “O amante”
(Em algum lugar de “O tempo redescoberto”, Proust ataca as pessoas que relem, que ouvem novamente, que repetem suas experiências estéticas. Diz ele que tais pessoas abrem mão de algo muito especial, ao re-fazer: a memória, o processo de buscar, no fundo, as lembranças decantadas. A segunda – ou terceira, ou quarta – leitura abafaria esta lembrança daquilo que sentíamos na leitura inicial. Não sinto isso com este livro, “O amante”, de Marguerite Duras. Em todas as leituras, reencontro a mesma força, original, de quando o li pela primeira vez. Não consigo ler os outros livros de Duras, eles me parecem enjoativos, como um perfume muito forte, ou quase que desnecessários, doses mais fracas daquilo que está em estado bruto em “O amante”. A minha primeira leitura é sempre sôfrega, ansiosa, não respeita o tempo de um livro. As leituras seguintes são leituras de calma e espanto, juntos. São leituras de reencontro. Esta frase, “Muito cedo em minha vida ficou tarde demais”, ainda me espanta, ainda me prende no exigente exercício que é imaginar esta transgressão tão radical do tempo, imaginar o tempo se condensando, em gotas, no rosto de Marguerite Duras...)
Um comentário:
Gosto muito de Marguerite Duras, e mais ainda de O Amante; este trecho, como vários outros até o final, me dá aquela sensação agridoce de ler algo muito bom mas tão angustiante.
Não conhecia o seu blog, adorei e vou repetir a visita! :)
Postar um comentário