Às vezes, tenho a impressão de que, trabalhando como psicóloga na periferia pobre de Brasília, é só isso que ofereço: a minha “boa educação”, esta psicologia branca, que lê francês e se preocupa com “subjetividades”, “formações do inconsciente”, “recalques”, “pulsões”.
No tenso encontro entre psicologia e assistência social, cada lado oferece seus dotes e traz os seus riscos. A psicologia cheia de bons sentimentos. A assistência social que pode descambar em paternalismo e julgamento moral. É preciso lembrar que a relação entre o Estado e esta população é cheia de ambigüidades. De um lado, o Estado como violador de direitos por omissão (falta de acesso pleno à saúde, à educação, ao saneamento básico) ou por ação (a violência policial para ficarmos num único exemplo). De outro, o Estado como detentor do poder de concessão do benefício, do poder de inserção no programa social, da vaga na escola. Há desconfiança, suspeita, e, ao mesmo tempo, necessidade e carência.
Assim, se aproximar de uma comunidade tão extremamente pobre – alguns pontos abaixo da nossa hipócrita linha da pobreza – é como chegar a um país estrangeiro. Apesar de falar sua língua, sou eu quem não entende seus costumes, especialmente quando estes costumes são fatais: as rixas, as guerras, as mortes. Sei que não há sorrisos à toa, choros à toa ou caminho à toa, mas não sei para onde vão. E, mesmo com os “poderes” do Estado ao meu lado, sou vista muitas vezes como uma visita incômoda ou como francamente inimiga e, nestas horas, me falam numa língua de segredos, cheia de reticências.
A dificuldade é transformar toda a pegajosa boa vontade da psicologia em escuta, em estímulo à responsabilização e transformar a assistência social em mudança de condições de vida e cidadania. E tudo isso sem nunca, nunca, tomar uma posição de comando, de poder paternal sobre o outro, de “catequização” e “orientação”.
Lembro-me do texto de Manoel da Costa Berlink, “Psicanálise de Pixotes”, em que ele relata a tentativa de levar um atendimento psicológico a crianças em situação de rua, público extremamente refratário aos vínculos, no começo nos anos 1980. Assim que chegam à favela, o grupo de psicanalistas é batizado de “gringos”, o que os diverte um pouco até descobrirem que “gringo” é o cliente da boca-de-fumo que dá bandeira, que chama a atenção. O modo como são identificados só vai mudar quando o grupo passar a se associar ao padre da comunidade como pessoas que também poderiam “ajudar” – não havia espaço no imaginário daquela comunidade para o “psicanalista”.
Às vezes, sinto que ainda sou “gringa”; que, acompanhando uma família ao hospital ou um adolescente à escola, há algo que destoa na minha presença ali. Não renego esta estranheza – não estou à procura de identificações imaginárias ou de empatias vazias. Acho que é possível falar deste terreno estrangeiro onde me encontro, é possível escutar exatamente a partir da minha estranheza, aceitando a diferença do outro, pedindo que aceite a minha. Acredito em Isabelle Stengers e Philippe Pignarre quando afirmam, falando sobre as lutas do movimento feminista: “Não se trata mais de ter uma posição neutra ou de se colocar 'no lugar do outro'. O que importa é aceitar aprender através das provações que o outro impõe.”
Então, às vezes, no fim da tarde, recebemos uma ligação de uma mãe ou de um adolescente, que nos procura, que quer ser ouvido. E sinto que, talvez, iniciamos uma transição, que conseguimos criar um lugar no imaginário desta comunidade, um lugar que se associa à possibilidade de cuidado, apesar de toda a diferença.
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Aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação
Nos dias que tem comida, comemos comida com a mão.
E quando a polícia, a doença, a distância
Ou alguma discussão nos separam de um irmão,
Sentimos que nunca acaba de caber mais dor no coração.
Mas não choramos à toa, não choramos à toa.
Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização.
Falamos a sua língua, mas não entendemos seu sermão.
Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão.
Mas não sorrimos à toa, não sorrimos à toa.
Volte para o seu lar, volte para lá.
Aqui nesse barco ninguém quer a sua orientação.
Não temos perspectiva, mas o vento nos dá a direção,
A vida que vai a deriva é a nossa condução
Mas não seguimos à toa, não seguimos à toa
Volte para o seu lar, volte para lá
Arnaldo Antunes
Um comentário:
Uma pena, Sr. Isaac Casaubon, uma enorme pena....
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