9.5.10

As cem primeiras páginas

A.L.,

Comecei a ler “Tête-à-Tête” e, claro, algumas coisas já começaram a se mexer.

Antes de tudo, me veio certa desconfiança, algum desconforto em como Sartre-Beauvoir foram alçados tão rapidamente a posição de parâmetros, de modelos a serem seguidos. Quando elegemos modelos, as nossas questões e perguntas são transferidas a eles e exigimos deles a resposta precisa e confiável (não por acaso, a adolescência é a época em que estamos à caça dos modelos). Diante deles, a margem de manobra é mínima: ou eles são autênticos e bem sucedidos e devemos segui-los sem hesitação (qualquer hesitação em repetir o modelo faz de nós covardes) ou eles são mentirosos e nos enganaram e fracassam, com eles mesmos, claro, mas fracassam especialmente conosco.

Então, se tomamos Sartre-Beauvoir como modelos, as formas de vê-los são muito reduzidas, esquemáticas: aceita-se ou condena-se. Enquanto mito, Sartre e Beauvoir têm este campo de força e atração que dificulta vê-los mais frágeis, mais falíveis, como um casal que, como outros, fez o convite de enfrentar juntos a aventura humana, equilibrando a necessidade de sobrevivência e a necessidade de risco, e tiveram que inventar e reinventar maneiras de fazê-lo. E, mais, fica difícil vê-los como indivíduos com os mesmo dilemas de todos nós, sujeitos que, não negando que a solidão é o grande pano de fundo da existência, se perguntam como aproximar-se de outro, cheios de desejo e medo também.

Ao que parece, Sartre-Beauvoir tinham, eles mesmos, um fascínio pelo seu próprio estilo de vida, um fascínio que queriam ver refletido nos olhares dos membros da “família” – basta lembrar que o casal recrutou pessoas bem mais jovens, fascinantes, mas também bastante fascináveis. Mexe com a minha sensibilidade – pequeno-burguesa, será? – que Simone seduzia alunas adolescentes, não tanto por conta do gênero das seduzidas, mas por suas idades (16,17 anos), sua clara subordinação emocional. E o mesmo fazia Sartre. Chama a atenção a facilidade com que essas adolescentes caíam nas malhas da família sartre-beauvoiriana, alternando os papéis de amantes, amigas, filhas, pupilas intelectuais, etc. Elas me parecem um pouco como objetos entre Sartre e Beauvoir, as únicas subjetividades em cena. Tanto que tenho a impressão de que Simone somente vai cumprir sua parte do pacto “amores contigentes versus amores necessários” proposto por Sartre, quando se apaixonar pelo jornalista americano, momento em que ela mais se afasta do filósofo. Me parece que só ali ela realmente assume algo seu apenas, que ela amadurece.

De outro lado, é quase imediato traduzir esta proposta de relação para termos psicanalíticos porque toca as questões do desejo. É como se Sartre e Simone dissessem um ao outro: “o meu desejo não se esgota em você e o fato de eu decidir viver esta outra parte do meu desejo longe de você, não exige que nos separemos”. Porque o desejo é isso, não tem certidão de nascimento nem data de batismo, ninguém sabe quando ou em que condições ele nasce, por que razão algumas imagens o animam e outras não, qual sua matriz, ninguém tem dele uma foto, um retrato falado, um “procura-se” que possa ser seguido com sucesso. Ele é cambiante e sobre ele não há controle.

Até mesmo dizer que Sartre era este Don Juan por causa da paixão que sentia pela própria mãe e da frustração que viveu com o casamento dela com o padrasto é muito pouco, diante da plasticidade e mobilidade do desejo. Se é possível fazer a equação – este homem extraordinariamente feio (e aqui nem adianta entrar na discussão de estrabismo convergente versus estrabismo divergente) buscando jovens excepcionalmente bonitas – a equação não fecha quando lemos sobre a rapidez com que ele se cansava delas, se entediava.

Proust fala deste personagem, Charlus: “o Sr. de Charlus era um desses homens que podem ser qualificados de excepcionais, porque, por numerosos que sejam, a satisfação, tão fácil em outros, de suas necessidades sexuais, depende da coincidência de muitas condições demasiado difíceis de encontrar”. Acho o que cabe para Charlus cabe para nós, na dificuldade em agrupar todas estas condições. A satisfação não é fácil para ninguém porque o desejo é como este carimbo, esta seta que foi carimbada em nós, mas que nós mesmos não sabemos direito para onde aponta. (“Assim, ‘marca’, em quimbundo, se diz Karimbu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentando na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato de cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. (...) só usadas na língua portuguesa no Brasil”, informa Luiz Felipe de Alencastro). Mas ninguém sabe exatamente o que diz este carimbo, dele só temos pistas que vamos acumulando ao longo da nossa vida amorosa, juntando nossos afetos dispersos e tentando pensar o que dizem sobre nós.

Para a psicanálise, é claro que Sartre não corresponde ao desejo inteiro de Simone e vice-versa. Não há possibilidade de realizar a totalidade do desejo porque o objeto de desejo já foi perdido, embrulhado num passado mítico do qual temos apenas lembranças vagas, enevoadas. Aqui, a questão não é saber se este encontro (mãe-bebê) aconteceu e foi, de fato, tão perfeito assim, mas perceber que este encontro absoluto permanece como referência diante da qual todos os encontros seguintes são pálidos. Não é que não se acredite na possibilidade de uma monogamia feliz, mas que, monogâmicos ou liberados, hetero, homo ou pan, todos devem se posicionar frente às complicações do seu desejo, do seu querer.

Quando Simone publicou o livro que em apresenta detalhes dos últimos dias de vida de Sartre foi bombardeada por vários setores da opinião francesa, que viu naquilo uma exploração da intimidade, do privado. Entretanto, basta você começar o ler o livro para perceber o quanto a palavra era importante para os dois: tudo é apresentado e discutido, com a exigência que segredos não permanecerão entre eles, como se o acontecido precisasse se tornar dito para alcançar uma existência plena. Não por acaso, o melhor da obra de Beauvoir – depois de “Segundo sexo” – é a sua autobiografia. E o amor deles também precisava virar palavra. Acho que, quando o Sartre morreu, ela precisou transformar a morte dele também em palavra, em escrita. (Mas, ao mesmo tempo, diante de tanto escrito e tanto dito, é de se estranhar que ela não tenha falado mais sobre suas relações com outras mulheres. Uma pena, aposto que ela teria coisas interessantes para dizer).

Abraço e sigo lendo,

J.

(Legenda da foto: "Also, here she and Sartre are having a staring contest to see who hemorrhages first under the objectifying look of the Other. Sartre just seems like he’s cheating because of his somewhat lazy eye.")

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