31.5.10

Nota do Itamaraty

31/05/2010 – Com choque e consternação, o Governo brasileiro recebeu a notícia do ataque israelense a um dos barcos da flotilha que levava ajuda humanitária internacional à Faixa de Gaza, do qual resultou a morte de mais de uma dezena de pessoas, além de ferimentos em outros integrantes.

O Brasil condena, em termos veementes, a ação israelense, uma vez que não há justificativa para intervenção militar em comboio pacífico, de caráter estritamente humanitário. O fato é agravado por ter ocorrido, segundo as informações disponíveis, em águas internacionais. O Brasil considera que o incidente deva ser objeto de investigação independente, que esclareça plenamente os fatos à luz do Direito Humanitário e do Direito Internacional como um todo.

Os trágicos resultados da operação militar israelense denotam, uma vez mais, a necessidade de que seja levantado, imediatamente, o bloqueio imposto à Faixa de Gaza, com vistas a garantir a liberdade de locomoção de seus habitantes e o livre acesso de alimentos, remédios e bens de consumo àquela região.

Preocupa especialmente ao Governo brasileiro a notícia de que uma brasileira, Iara Lee, estava numa das embarcações que compunha a flotilha humanitária. O Ministro Celso Amorim, ao solidarizar-se com os familiares das vítimas do ataque, determinou que fossem tomadas providências imediatas para a localização da cidadã brasileira.

A Representante do Brasil junto à ONU foi instruída a apoiar a convocação de reunião extraordinária do Conselho de Segurança das Nações Unidas para discutir a operação militar israelense.

O Embaixador de Israel no Brasil está sendo chamado ao Itamaraty para que seja manifestada a indignação do Governo Brasileiro com o incidente e a preocupação com a situação da cidadã brasileira.

Carta de Iara Lee

Em alguns dias eu serei a única brasileira a embarcar num navio que integra a GAZA FREEDOM FLOTILLA. A recente decisão do governo israelense de impedir a entrada do acadêmico internacionalmente reconhecido Noam Chomsky nos Territórios Ocupados da Palestina sugere que também seremos barrados. Não obstante, partiremos com a intenção de entregar comida, água, suprimentos médicos e materiais de construção às comunidades de Gaza.

Normalmente eu consideraria uma missão de boa vontade como esta completamente inócua. Mas agora estamos diante de uma crise que afeta os cidadãos palestinos criada pela política internacional. É resultado da atitude de Israel de cercar Gaza em pleno desafio à lei internacional. Embora o presidente Lula tenha tomado algumas medidas para promover a paz no Oriente Médio, mais ação civil é necessária para sensibilizar as pessoas sobre o grave abuso de direitos humanos em Gaza.

O cerco à Faixa de Gaza pelo governo israelense tem origem em 2005, e vem sendo rigorosamente mantido desde a ofensiva militar israelense de 2008-09, que deixou mais de 1.400 mortos e 14.000 lares destruídos. Israel argumenta que suas ações militares intensificadas ocorreram em resposta ao disparo de foguetes ordenado pelo governo Hamas, cuja legitimidade não reconhece. Porém, segundo organizações internacionais de direitos humanos como Human Rights Watch, a reação militar israelense tem sido extremamente desproporcional.

O cerco não visa militantes palestinos, mas infringe as normas internacionais ao condenar todos pelas ações de alguns. Uma reportagem publicada por Amnesty International, Oxfam, Save the Children, e CARE relatou, “A crise humanitária [em Gaza] é resultado direto da contínua punição de homens, mulheres e crianças inocentes e é ilegal sob a lei internacional.”

Como resultado do cerco, civis em Gaza, inclusive crianças e outros inocentes que se encontram no meio do conflito, não têm água limpa para beber, já que as autoridades não podem consertar usinas de tratamento destruídas pelos israelenses. Ataques aéreos que danaram infraestruturas civis básicas, junto com a redução da importação, deixaram a população em Gaza sem comida e remédio que precisam para uma sobrevivência saudável. Nós que enfrentamos esta viagem estamos, é claro, preocupados com nossa segurança também. Anteriormente, alguns barcos que tentaram levar abastecimentos a Gaza foram violentamente assediados pelas forças israelenses. Dia 30 de dezembro de 2008 o navio ‘Dignity’ carregava cirurgiões voluntários e três toneladas de suprimentos médicos quando foi atacado sem aviso prévio por um navio israelense que o atacou três vezes a aproximadamente 90 milhas da costa de Gaza. Passageiros e tripulantes ficaram aterrorizados, enquanto seu navio enchia fazia água e tropas israelenses ameaçavam com novos disparos.

Todavia eu me envolvo porque creio que ações resolutamente não violentas, que chamam atenção ao bloqueio, são indispensáveis esclarecer o público sobre o que está de fato ocorrendo. Simplesmente não há justificativa para impedir que cargas de ajuda humanitária alcancem um povo em crise.

Com a partida dos nossos navios, o senador Eduardo Matarazzo Suplicy mandou uma carta de apoio aos palestinos para o governo de Israel. “Eu me considero um amigo de Israel e simpatizante do povo judeu” escreveu, acrescentando: “mas por este meio, e também no Senado, expresso minha simpatia a este movimento completamente pacífico…Os oito navios do Free Gaza Movement (Movimento Gaza Livre) levarão comida, roupas, materiais de construção e a solidariedade de povos de várias nações, para que os palestinos possam reconstruir suas casas e criar um futuro novo, justo e unido.” Seguindo este exemplo, funcionários públicos e outros civis devem exigir que sejam abertos canais humanitários a Gaza, que as pessoas recebam comida e suprimentos médicos, e que Israel faça um maior esforço para proteger inocentes. Enquanto eu esteja motivada a ponto de me integrar à viagem humanitária, reconheço que muitos não têm condições de fazer o mesmo. Felizmente, é possível colaborar sem ter que embarcar em um navio. Nós todos simplesmente temos que aumentar nossas vozes em protesto contra esta vergonhosa violação dos direitos humanos.

10.5.10

A mulher foge


Pode a morte de um menino real determinar a morte de um menino literário?


9.5.10

A ética, ainda...

Se os valores fossem derivados apenas da instância objetiva, a universalidade e a necessidade, consideradas separadamente da experiência afetiva, traduzir-se-iam numa generalidade abstrata e formal, irremediavelmente distante das práticas humanas. Essa dificuldade não pode ser resolvida por um meio-termo estabelecido entre as duas possibilidades, porque os valores devem ser, ao mesmo tempo, dotados de um teor de universalidade que nos incline a adotá-los por sua própria força, e vividos na individualidade singular do sujeito que age. A consciência da ação se manifesta de dois modos: na adesão a valores que me transcendem e na adesão a mim mesmo. À tensão que assim se constitui na ação acompanhada de consciência moral denominamos autenticidade.

Ética e situações-limite
Franklin Leopoldo e Silva

Revista CULT, Ano 13, N. 145

As cem primeiras páginas

A.L.,

Comecei a ler “Tête-à-Tête” e, claro, algumas coisas já começaram a se mexer.

Antes de tudo, me veio certa desconfiança, algum desconforto em como Sartre-Beauvoir foram alçados tão rapidamente a posição de parâmetros, de modelos a serem seguidos. Quando elegemos modelos, as nossas questões e perguntas são transferidas a eles e exigimos deles a resposta precisa e confiável (não por acaso, a adolescência é a época em que estamos à caça dos modelos). Diante deles, a margem de manobra é mínima: ou eles são autênticos e bem sucedidos e devemos segui-los sem hesitação (qualquer hesitação em repetir o modelo faz de nós covardes) ou eles são mentirosos e nos enganaram e fracassam, com eles mesmos, claro, mas fracassam especialmente conosco.

Então, se tomamos Sartre-Beauvoir como modelos, as formas de vê-los são muito reduzidas, esquemáticas: aceita-se ou condena-se. Enquanto mito, Sartre e Beauvoir têm este campo de força e atração que dificulta vê-los mais frágeis, mais falíveis, como um casal que, como outros, fez o convite de enfrentar juntos a aventura humana, equilibrando a necessidade de sobrevivência e a necessidade de risco, e tiveram que inventar e reinventar maneiras de fazê-lo. E, mais, fica difícil vê-los como indivíduos com os mesmo dilemas de todos nós, sujeitos que, não negando que a solidão é o grande pano de fundo da existência, se perguntam como aproximar-se de outro, cheios de desejo e medo também.

Ao que parece, Sartre-Beauvoir tinham, eles mesmos, um fascínio pelo seu próprio estilo de vida, um fascínio que queriam ver refletido nos olhares dos membros da “família” – basta lembrar que o casal recrutou pessoas bem mais jovens, fascinantes, mas também bastante fascináveis. Mexe com a minha sensibilidade – pequeno-burguesa, será? – que Simone seduzia alunas adolescentes, não tanto por conta do gênero das seduzidas, mas por suas idades (16,17 anos), sua clara subordinação emocional. E o mesmo fazia Sartre. Chama a atenção a facilidade com que essas adolescentes caíam nas malhas da família sartre-beauvoiriana, alternando os papéis de amantes, amigas, filhas, pupilas intelectuais, etc. Elas me parecem um pouco como objetos entre Sartre e Beauvoir, as únicas subjetividades em cena. Tanto que tenho a impressão de que Simone somente vai cumprir sua parte do pacto “amores contigentes versus amores necessários” proposto por Sartre, quando se apaixonar pelo jornalista americano, momento em que ela mais se afasta do filósofo. Me parece que só ali ela realmente assume algo seu apenas, que ela amadurece.

De outro lado, é quase imediato traduzir esta proposta de relação para termos psicanalíticos porque toca as questões do desejo. É como se Sartre e Simone dissessem um ao outro: “o meu desejo não se esgota em você e o fato de eu decidir viver esta outra parte do meu desejo longe de você, não exige que nos separemos”. Porque o desejo é isso, não tem certidão de nascimento nem data de batismo, ninguém sabe quando ou em que condições ele nasce, por que razão algumas imagens o animam e outras não, qual sua matriz, ninguém tem dele uma foto, um retrato falado, um “procura-se” que possa ser seguido com sucesso. Ele é cambiante e sobre ele não há controle.

Até mesmo dizer que Sartre era este Don Juan por causa da paixão que sentia pela própria mãe e da frustração que viveu com o casamento dela com o padrasto é muito pouco, diante da plasticidade e mobilidade do desejo. Se é possível fazer a equação – este homem extraordinariamente feio (e aqui nem adianta entrar na discussão de estrabismo convergente versus estrabismo divergente) buscando jovens excepcionalmente bonitas – a equação não fecha quando lemos sobre a rapidez com que ele se cansava delas, se entediava.

Proust fala deste personagem, Charlus: “o Sr. de Charlus era um desses homens que podem ser qualificados de excepcionais, porque, por numerosos que sejam, a satisfação, tão fácil em outros, de suas necessidades sexuais, depende da coincidência de muitas condições demasiado difíceis de encontrar”. Acho o que cabe para Charlus cabe para nós, na dificuldade em agrupar todas estas condições. A satisfação não é fácil para ninguém porque o desejo é como este carimbo, esta seta que foi carimbada em nós, mas que nós mesmos não sabemos direito para onde aponta. (“Assim, ‘marca’, em quimbundo, se diz Karimbu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentando na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato de cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. (...) só usadas na língua portuguesa no Brasil”, informa Luiz Felipe de Alencastro). Mas ninguém sabe exatamente o que diz este carimbo, dele só temos pistas que vamos acumulando ao longo da nossa vida amorosa, juntando nossos afetos dispersos e tentando pensar o que dizem sobre nós.

Para a psicanálise, é claro que Sartre não corresponde ao desejo inteiro de Simone e vice-versa. Não há possibilidade de realizar a totalidade do desejo porque o objeto de desejo já foi perdido, embrulhado num passado mítico do qual temos apenas lembranças vagas, enevoadas. Aqui, a questão não é saber se este encontro (mãe-bebê) aconteceu e foi, de fato, tão perfeito assim, mas perceber que este encontro absoluto permanece como referência diante da qual todos os encontros seguintes são pálidos. Não é que não se acredite na possibilidade de uma monogamia feliz, mas que, monogâmicos ou liberados, hetero, homo ou pan, todos devem se posicionar frente às complicações do seu desejo, do seu querer.

Quando Simone publicou o livro que em apresenta detalhes dos últimos dias de vida de Sartre foi bombardeada por vários setores da opinião francesa, que viu naquilo uma exploração da intimidade, do privado. Entretanto, basta você começar o ler o livro para perceber o quanto a palavra era importante para os dois: tudo é apresentado e discutido, com a exigência que segredos não permanecerão entre eles, como se o acontecido precisasse se tornar dito para alcançar uma existência plena. Não por acaso, o melhor da obra de Beauvoir – depois de “Segundo sexo” – é a sua autobiografia. E o amor deles também precisava virar palavra. Acho que, quando o Sartre morreu, ela precisou transformar a morte dele também em palavra, em escrita. (Mas, ao mesmo tempo, diante de tanto escrito e tanto dito, é de se estranhar que ela não tenha falado mais sobre suas relações com outras mulheres. Uma pena, aposto que ela teria coisas interessantes para dizer).

Abraço e sigo lendo,

J.

(Legenda da foto: "Also, here she and Sartre are having a staring contest to see who hemorrhages first under the objectifying look of the Other. Sartre just seems like he’s cheating because of his somewhat lazy eye.")