10.4.08

"A vida como experiência dela mesma"

"Eu estava na esquina da avenida Bel-Air com a praça de la Nation. Estava sozinho, via aproximar-se a maré dos manifestantes, debaixo dos cartazes, de bandeiras vermelhas. Escutava o rumor dos cantos antigos.

Eu voltara, estava vivo.

Contudo, uma tristeza comprimia-me o coração, um desconforto surdo e pungente. Não era um sentimento de culpa, de jeito nenhum. Nunca entendi por que era preciso sentir-se culpado por ter sobrevivido. Aliás, eu não tinha sobrevivido de verdade. Não tinha a certeza de ser um verdadeiro sobrevivente. Tinha atravessado a morte, ela fora uma experiência de minha vida. Há idiomas que têm uma palavra para esse tipo de experiência. Em alemção diz-se Erlebnis. Em espanhol: vivencia. Mas não há palavra francesa para captar de uma só vez a vida como experiência de si mesma. Temos que empregar perífrases. Ou empregar a palavra 'vivido', que é aproximativa. E contestável. É uma palavra chocha e frouxa. Antes de mais nada, e sobretudo, é passivo, o vivido. E depois, é no passado. Mas a experiência da vida, que a vida faz dela mesma, de si mesma enquanto está vivendo, é ativa. E é no presente, necessariamente. Quer dizer que ela se alimenta do passado para se projetar no futuro.

Seja como for, não era um sentimento de culpa que me apunhalava. Esse sentimento é apenas derivado, vicariante. A angústia nua de viver é-lhe anterior: a angústia de ter nascido, saído do nada confuso por um acaso irremediável. Não há nenhuma necessidade de ter conhecido os campos de extermínio para conhecer a angústia de viver.

Eu estava vivo, portanto, de pé, imóvel, na esquina da avenida Bel-Air com a praça de la Nation."

Jorge Semprun, "A Escrita ou a Vida"

Nenhum comentário: