Se a marca do escritor não é mais que a singularidade de sua ausência, a marca dos leitores é a necessidade das palavras como mercadoria roubada para preencher os enormes vazios de suas almas
Olha, eu li ontem à noite esse seu comentário, e precisei de um tempo pra pensar. Abri um Tempranillo espanhol, jovem porém bastante maduro, estruturado, que entorpeceu minhas papilas gustativas na mesma proporção em que encheu minha cabeça de boas e frutíferas idéias. O quanto a gente pode escrever aqui neste espaço do blog? Bom, eu vou escrevendo até chegar ao fim do espaço. Eu concordo em termos com essa afirmação. Eu acho que muitos escritores têm uma enorme vontade de levantar a cabeça dos livros e sair pela vida executando papéis e vivendo personagens (não necessariamente o seu próprio), para dar vazão a seu lado criativo e aventureiro, mas a vida, do lado de fora dos livros, nem sempre é assim tão convidativa para quem quer brincar de viver. Pelo contrário, a vida pode ser áspera, as pessoas parecem habitar um reino sem qualquer gentileza. Ainda tem espaço? Então vamos lá. Por outro lado, ler e posteriormente escrever são formas seguras de assumir múltiplas personalidades, sem ter que se expor ou machucar com o lado real dos livros ou das letras. Eu, quando leio, vivo os sentimentos, aliás, me torno conhecedor das mais variadas sensações que podem ser experimentadas pelo ser humano, sem necessariamente me expor a elas. É como se ver de dentro pra fora de um espelho. Do lado de fora, o meu eu se observa, se arruma, se apresenta como um cidadão a ser aceito na sociedade. Do lado de dentro, o meu eu tem diversas formas, e debocha do jeito pretensamente sério e caricato do arrumadinho que está pronto pra enfrentar o cotidiano. O eu do lado de dentro do espelho pode ser imensamente triste e melancólico, como estupidamente alegre e bonachão. O que liberta o eu aprisionado dentro do espelho são as palavras, lidas, pensadas, mastigadas, cuspidas, digeridas. O alimento proveniente das palavras nos faz invencíveis, ou nos deprime até a raiz. E quem, como você, dona deste blog, consegue transpor o espelho e assumir no seu eu a forma do escritor, e passa furiosamente a transformar em palavras o turbilhão de sentimentos que povoam o mundo interior, aí você está sim realizando a sua vocação (entre tantas outras) de ser uma escritora de fato, como você é. A melancolia é sentimento indissolúvel nesse processo, mas só enriquecem a sua produção. A minha melancolia é não conseguir sair de dentro do espelho e colocar no papel todas as viagens da alma, como você coloca. Este blog comprova o prazer que a humanidade pode experimentar nas palavras de quem rompeu seus próprios limites.
Olá, Casaubon... Vou tentar algumas colocações aqui, precárias, sempre esperando por uma motivação para revisão. Concordo com você, muitíssimo, que falta gentileza neste reino. Mas, de outro lado, não creio que os escritores queiram executar papéis ou personagens fora de seus livros. Acho que a literatura já é em si, já demais. Proust mesmo pode nos dizer isso: enquanto escrevia, asmático, preso num quarto à prova de som, sua vida foi muito mais intensa do que quando freqüentou a alta burguesia – ou baixa nobreza? – de seu tempo. Borges, em seu mundo cego, também nos apontou isso: a literatura, ultrapassa, de longe, a vida; até que a vida ultrapasse, da sua parte, a linguagem. E são nestas ultrapassagens que a gente anda... Acho que a vida e a linguagem são sistemas diferentes, que se apóiam, mas nunca se mesclam. Nós temos esta ilusão, simplória, de que a linguagem ‘descreve’ a vida e mantém relações de representação com esta. Acho que não é assim. Acho que a linguagem é um sistema independente da vida – assim que aquele sentimento, aquela sensação, aquele afeto foi capturado pela linguagem, em que se acreditou, finalmente, conseguir descrever uma experiência... aquele pedaço de vida foi perdido – virou linguagem. (Linguagem aquém e além da vida). Criou-se uma outra coisa, nova, original, até então inexistente, coisa dentro da linguagem, em intersecção com a vida. Discordando, a gente faz diálogo. Acho que a escrita e a leitura nunca são sem riscos porque movimentam muita coisa, mesmo que não seja de forma tão à vista. Mesmo a leitura é atravessar o espelho correndo o risco de que parte fique do lado de fora e parte do lado de dentro, é desorganizar este equilíbrio precário de reflexos, correndo o risco de ver o que nunca quisemos ver até então. Quando pensei em melancolia, pensei nesta perda que cada escritor tem que conjurar. A perda de alguma coisa sua, própria, a perda de alguma coisa da linguagem (quando ele não alcança a palavra certa, a palavra justa), perda de alguma coisa da própria vida (quando ele alcança a palavra certa, a palavra justa). Deixo aqui um pouquinho de Clarice Lispector, mestre nos riscos da escrita, da leitura e da vida: "Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.”
5 comentários:
Se a marca do escritor não é mais que a singularidade de sua ausência, a marca dos leitores é a necessidade das palavras como mercadoria roubada para preencher os enormes vazios de suas almas
“Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo.” Marcel Proust, "O Tempo Redescoberto"
mas não será a literatura, já de si, vocação irrealizada?...
quem é mordido pela literatura tem que se acostumar à esta melancolia.
Olha, eu li ontem à noite esse seu comentário, e precisei de um tempo pra pensar. Abri um Tempranillo espanhol, jovem porém bastante maduro, estruturado, que entorpeceu minhas papilas gustativas na mesma proporção em que encheu minha cabeça de boas e frutíferas idéias. O quanto a gente pode escrever aqui neste espaço do blog?
Bom, eu vou escrevendo até chegar ao fim do espaço.
Eu concordo em termos com essa afirmação. Eu acho que muitos escritores têm uma enorme vontade de levantar a cabeça dos livros e sair pela vida executando papéis e vivendo personagens (não necessariamente o seu próprio), para dar vazão a seu lado criativo e aventureiro, mas a vida, do lado de fora dos livros, nem sempre é assim tão convidativa para quem quer brincar de viver. Pelo contrário, a vida pode ser áspera, as pessoas parecem habitar um reino sem qualquer gentileza.
Ainda tem espaço? Então vamos lá.
Por outro lado, ler e posteriormente escrever são formas seguras de assumir múltiplas personalidades, sem ter que se expor ou machucar com o lado real dos livros ou das letras. Eu, quando leio, vivo os sentimentos, aliás, me torno conhecedor das mais variadas sensações que podem ser experimentadas pelo ser humano, sem necessariamente me expor a elas. É como se ver de dentro pra fora de um espelho. Do lado de fora, o meu eu se observa, se arruma, se apresenta como um cidadão a ser aceito na sociedade. Do lado de dentro, o meu eu tem diversas formas, e debocha do jeito pretensamente sério e caricato do arrumadinho que está pronto pra enfrentar o cotidiano. O eu do lado de dentro do espelho pode ser imensamente triste e melancólico, como estupidamente alegre e bonachão. O que liberta o eu aprisionado dentro do espelho são as palavras, lidas, pensadas, mastigadas, cuspidas, digeridas. O alimento proveniente das palavras nos faz invencíveis, ou nos deprime até a raiz. E quem, como você, dona deste blog, consegue transpor o espelho e assumir no seu eu a forma do escritor, e passa furiosamente a transformar em palavras o turbilhão de sentimentos que povoam o mundo interior, aí você está sim realizando a sua vocação (entre tantas outras) de ser uma escritora de fato, como você é. A melancolia é sentimento indissolúvel nesse processo, mas só enriquecem a sua produção. A minha melancolia é não conseguir sair de dentro do espelho e colocar no papel todas as viagens da alma, como você coloca. Este blog comprova o prazer que a humanidade pode experimentar nas palavras de quem rompeu seus próprios limites.
Olá, Casaubon...
Vou tentar algumas colocações aqui, precárias, sempre esperando por uma motivação para revisão.
Concordo com você, muitíssimo, que falta gentileza neste reino.
Mas, de outro lado, não creio que os escritores queiram executar papéis ou personagens fora de seus livros. Acho que a literatura já é em si, já demais. Proust mesmo pode nos dizer isso: enquanto escrevia, asmático, preso num quarto à prova de som, sua vida foi muito mais intensa do que quando freqüentou a alta burguesia – ou baixa nobreza? – de seu tempo. Borges, em seu mundo cego, também nos apontou isso: a literatura, ultrapassa, de longe, a vida; até que a vida ultrapasse, da sua parte, a linguagem. E são nestas ultrapassagens que a gente anda...
Acho que a vida e a linguagem são sistemas diferentes, que se apóiam, mas nunca se mesclam. Nós temos esta ilusão, simplória, de que a linguagem ‘descreve’ a vida e mantém relações de representação com esta. Acho que não é assim. Acho que a linguagem é um sistema independente da vida – assim que aquele sentimento, aquela sensação, aquele afeto foi capturado pela linguagem, em que se acreditou, finalmente, conseguir descrever uma experiência... aquele pedaço de vida foi perdido – virou linguagem. (Linguagem aquém e além da vida). Criou-se uma outra coisa, nova, original, até então inexistente, coisa dentro da linguagem, em intersecção com a vida.
Discordando, a gente faz diálogo.
Acho que a escrita e a leitura nunca são sem riscos porque movimentam muita coisa, mesmo que não seja de forma tão à vista. Mesmo a leitura é atravessar o espelho correndo o risco de que parte fique do lado de fora e parte do lado de dentro, é desorganizar este equilíbrio precário de reflexos, correndo o risco de ver o que nunca quisemos ver até então.
Quando pensei em melancolia, pensei nesta perda que cada escritor tem que conjurar. A perda de alguma coisa sua, própria, a perda de alguma coisa da linguagem (quando ele não alcança a palavra certa, a palavra justa), perda de alguma coisa da própria vida (quando ele alcança a palavra certa, a palavra justa).
Deixo aqui um pouquinho de Clarice Lispector, mestre nos riscos da escrita, da leitura e da vida:
"Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem.
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.”
Abraço,
j.
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