15.4.09

Para R.G.

"O primeiro motivo dessa alegoria consiste em interpretar o triunfo de Ulisses sobre as Sereias como o de uma forma emergente de racionalidade sobre o mito, mais precisamente, como a transformação da magia em arte. Enquanto monstros imemoriais, aquáticos e femininos, as Sereias encarnam os poderes mágicos anteriores ao sujeito como identidade racional e determinada. Sua força mágica de sedução provém da atração da saudade que continua exercendo a representação de uma indistinção feliz entre o si (selbst) e o mundo, lembrança da in-distinção entre o recém-nascido e sua mãe, segundo Freud; mas sucumbir à sedução dessa felicidade também significa desistir da individuação e, portanto, arriscar a própria existência: os viajantes que se entregaram às Sereias foram por elas devorados. Ulisses resiste às Sereias, mas não abdica do gozo (incompleto) de escutar seu canto: reconhece o encanto, mas não cede ao encantamento. Neste gesto, os poderes da magia são condenados á ineficácia e, simultaneamente, reconhecidos e mantidos como expressão de beleza e transcendência: são transformados em expressão artística. Se a arte surge, então, da magia como sua forma mais racional e mais pura, ela também emerge como beleza impotente, sem eficácia, uma expressão sem conseqüências práticas, uma mera forma separada da ação. Adorno e Horkheimer enfatizam tanto a beleza quanto a impotência da arte. O que a estética clássica caracterizou como sua grandeza, a saber sua relação como nobre exercício da contemplação (em grego, theoria), ou seu caráter de "finalidade sem-fim" (Kant), também é sinônimo de fraqueza maior: não ter mais poder de ação. Somente assim, aliás, a arte é tolerada em uma sociedade fundada sobre a dominação."

"Resistir às sereias", Jeanne Marie Gagnebin

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