
Derevo - Espetáculo Ketzal
Nos quadros mais graves, há um compromisso com uma desvalorização completa de si. Eles fizeram um acordo, um voto para a morte e buscam desfazer cada um dos vínculos estabelecidos – inclusive comigo (numa supervisão, um professor me disse: “transferência não é para entender, é para suportar”). Parecem dizer, irredutíveis e orgulhosos, que há de uma porção de imbelicidade, de idiotia na saúde, quase que de covardia. É estranha – mas muito justo, eu acho – esta sensação que me abate, às vezes, de que eles é que estão certos, de que seus sintomas, travestidos por questões individuais, são denúncias cristalizadas da amplidão de nossa miséria social.
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Acho que vejo as coisas de um lugar infantilizado – e dizer “as coisas”, manter esta indefinição, é próprio da infância. É como um filtro, as lentes, o ponto na parede onde eu escolho abrir uma janela para ver o mundo, o olho mágico – eu vejo, sem abrir a porta – que me impede de me acostumar às responsabilidades adultas (trabalho, casamento, envelhecer) mesmo que eu esteja tentando fazer esta transição de uma maneira delicada. Este olhar, assustado, discrepante, esperançoso, eu o tenho porque me sinto frágil e ele me faz super dimensionar as experiências: vejo os encontros semanais da banda como a experiência política definitiva; vejo as reuniões de condomínio como demonstrações irrefutáveis da existência da “direita” e “esquerda” e da atualidade e urgência do embate entre estas duas; me esmero ao máximo para viver minha profissão, mas me deixa levemente chocada que alguém queira, de fato, me contratar; a fantasia e a imaginação são rotas de fuga que nunca falham; o amor faz viver várias vidas numa vida só; vou ao cinema e saio de lá me perguntando se não me transformei em outra pessoa neste meio tempo, alguém que se esconde quando eu olho no espelho, que assina nosso sobrenome com outra inclinação, eu me pareço com sua mãe, ela se parece com meu pai, usa meu rosto, mas de maneira diferente, com outras intenções, penso se não chegará o dia em que desaparecemos, juntas, dentro de uma gaveta... – e no fim, concluo, exausta, que a realidade é apenas uma possibilidade literária.