Esqueceram que Dantas era o acusado
Maria Inês Nassif
A primeira reação da mídia foi a de se refugiar em seu papel noticiarista: a prisão do banqueiro Daniel Dantas, de sua irmã e de outros parceiros de negócios foi acompanhada pelas lentes dos fotógrafos e dos cinegrafistas, e pelas diligentes anotações dos repórteres. Aí, os acusados eram Dantas e outros integrantes ou parceiros de negócios do Grupo Opportunity. Num segundo momento, os meios de comunicação embarcaram nos protestos do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que acusou o delegado da PF, Protógenes Queiroz, de sensacionalista, jogou pedras sobre o Ministério Público e soltou todos os presos, exceto os envolvidos diretamente na tentativa de suborno de um delegado. Foi quando os acusados passaram a ser a Polícia Federal e o Ministério Público. Em seguida, sob pressão da mídia, o ministro da Justiça, Tarso Genro, e a direção da Polícia Federal forçaram o afastamento dos delegados responsáveis pelo inquérito. A partir daí, os dedos acusadores da mesma mídia apontaram para o governo, que teria abortado a ação saneadora do delegado Protógenes, antes aquele que cometeu abusos contra acusados.
Exceto no primeiro capítulo da novela Daniel Dantas, o foco da mídia não foi o dos negócios do banqueiro - ou empresário, ou sócio de empresas fantasmas, ou seja lá o que for - que estava sob investigação da polícia, mas os supostos crimes cometidos pela PF, ou uma ação política do governo para esvaziar o inquérito produzido por delegados da PF antes acusados de cometer ilegalidades.
É difícil cobrar um comportamento sempre coerente da mídia: no calor dos fatos, reportar e julgar ao mesmo tempo, sem ter todas as informações, embute um enorme risco de erro. Mas é inegável que as oscilações abruptas de julgamento - e de foco - têm evidentes efeitos colaterais. A desautorização do inquérito da PF em determinado momento - desautorização pura e simples, sem ressalvas - serviu à defesa de Dantas. É certo que o inquérito cometeu erros crassos, misturou estações e interpretou de forma muito equivocada alguns grampos - e perdeu credibilidade ao misturar pessoas envolvidas nos negócios de Dantas com outras que simplesmente foram citadas e não tinham culpa nenhuma no cartório. Mas os meios de comunicação também não separaram as coisas. Primeiro, publicaram tudo como se fosse tudo verdade e, quando se depararam com a dificuldade de comprovar o envolvimento de alguns dos citados, a tendência foi a de generalizar a acusação de "abuso", como se prender alguém que mandou corromper um delegado fosse algo impensável, pelo menos quando essa figura é um banqueiro. Quando resolveram rever sua opinião sobre a polícia - e isso ocorreu quando foi possível acusar o governo de pressão política sobre a instituição - a guinada foi radical: a PF não era mais leviana, mas moralizadora, e era essa PF moralizadora o objeto das pressões de um governo.
Nesses dois extremos, a mídia também foi o veículo da sensacionalização. Se a PF foi sensacional, foi porque o fato dado a conhecimento foi reverberado pela mídia sem qualquer filtro. Daí foi a própria mídia a acusar o sensacionalismo e pressionar por uma posição de governo contra o que considerou abusos. E foram os próprios meios de comunicação quem, à ação corretiva dos superiores do delegado, acusaram sensacionalmente o governo de ter pressionado a instituição a não apurar fatos relativos ao inquérito contra Dantas e grupo.
Nesse processo, o resultado mais palpável foi que em alguns dias Daniel Dantas e suas ações pouco republicanas saíram rapidamente de foco e deram lugar a um debate surrealista sobre o que é um abuso policial e sobre até onde vai a autonomia da PF diante de uma pressão do governo (dada como certa e definitiva) sobre a instituição para não apurar os fatos - que, ao mesmo tempo, segundo a mesma imprensa, fez um inquérito que beirou o abusivo. É surrealista porque em nenhum momento a imprensa analisou o seu próprio papel no caso. E isso inclui o fato de que toda a informação que uma instituição vaza é publicada por algum veículo de comunicação. Se foi um abuso o vazamento de todo o inquérito, inclusive as partes relativas a pessoas que não são parte dos delitos cometidos pelo grupo de Dantas, de quem é o abuso? De quem vazou ou de quem publicou a informação vazada?
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o país vive ciclos em que uma ou outra instituição se impõe sobre as demais quando assume como exclusivamente seu o papel de repressão ao crime e de guardião da moralidade. O Ministério Público já esteve nessa situação, assim como os juízes de primeira instância. Agora é a vez da PF. Todas as vezes que uma instituição se excedeu, no entanto, foi porque encontrou eco na mídia. Foram os veículos de comunicação que deram guarida aos sucessivos vazamentos de investigações do MP ou de processos que corriam na Justiça; como hoje dão abrigo aos vazamentos da PF. Não raro, um vazamento de informação acaba justificando um pedido judicial da mesma instituição que fez o vazamento; ou é usado como pressão política contra partidos e governos; ou é exibido como prova de eficiência, em movimentos de valorização corporativa. Portanto, a informação, pretensamente acrítica, não é neutra. Ela tem usos políticos e corporativos.
Não dá para debater os eventuais abusos de instituições sem reconhecer que o jornalismo teve um papel fundamental nos processos de hipertrofia dos poderes de uma ou outra, em determinados períodos. É um engano imaginar que a informação acrítica é neutra. Ela é apenas acrítica - e isso não significa sequer ser independente. O próprio modus operandi de Dantas é prova disso. A farta produção de dossiês para destruir reputações de inimigos foi um fato. Se os jornais e revistas os publicaram, fizeram um favor a Dantas. Esse comportamento está longe de ser neutro. Se um inquérito policial atinge quem não deve atingir, e a imprensa não filtra essa informação, pode lançar o descrédito em todo o inquérito e contribuir para a impunidade dos que devem efetivamente ser punidos. Ou pode abalar as reputações de quem nada deve
28.7.08
22.7.08
O mágico
O mágico abre a porta de sua sala e seu público entra, incerto sobre a natureza de sua magia, o transcurso de sua ação, seu objetivo e se precisam mesmo de encantamento no mundo atual. Mas, hoje, o mágico não vai realizar nenhum truque – não vai adivinhar cartas escondidas ou abrir algemas sem usar chaves ou transformar varinhas em buquês de flores multicoloridos.
Trata-se de uma nova magia que é, em seu resultado, muito simples e, em seu processo, muito complicado. Ou o contrário. O encantamento principal consiste em fazer aparecer as palavras desaparecidas, através da estabilização dos sentidos do público (uma família, um casal ou um solitário). Os ouvidos voltam a escutar, as bocas articularão tudo o que a língua lhes permitir dizer, a voz retoma seu poder de ecoar, de um a outro, retomando sua materialidade perdida.
Por isso, o mágico usa palavras mágicas, ouvidas no silêncio da credulidade. Seu desejo é apenasque o público reconheça as suas próprias palavras, acolha-as até que elas completem seu ciclo, realizem sua volta e seu retorno, embarquem na viagem do nada a alguma coisa e, desta, ao nada novamente –de volta ao silêncio.
Trata-se de um mágico que não tira coelhos da cartola ou transforma lenços coloridos em pombas brancas. Não está, tampouco, interessado em serrar mulheres assustadiças no meio. A mágica consiste em transformar os sentidos de sua audiência, em possibilitar à natureza a realização de si própria, encaminhando o fenômeno ao seu plano original: retirar os impedimentos, aquilo que evitava que as palavras tivessem o peso que realmente tem. O mágico quer retirar o público de sua surdez e mudez voluntária.
Afinal, o mágico sabe que todos também realizamos os nossos truques, que todas as palavras são encantadas, capazes de feitiços, mas que sua magia, às vezes falha. Há silêncios intocados e intocáveis para as palavras, mesmo as mais poderosas: a mudez absoluta dos mortos, o silêncio perdido que antecede o primeiro grito dos recém-nascidos, a vastidão do espaço antes de ser capturado pelo verbo – Fiat lux! – este mesmo um feitiço.
O mágico retorna quando o encantamento das palavras adormece. Quando as palavras param de realizar seus feitiços – feitiços de transfiguração, de transformação, de multiplicação, de mutação, ilusionismos sem fim. As folhas de papel nunca são apenas folhas de papel, elas se transformam em cartas não escritas, em mensagens enigmáticas e nunca se apresentam como apenas brancura indizível, não mais que celulose em rede. As paredes da casa são sempre cor, prisão, segredo, limite, rebelião, mas, nunca, um amontoado de tijolos e massa e tinta, não mais que pó. O corpo é operador de prazeres, o lar de sofrimentos, da pulsão que cria o tempo, sempre muito mais que carne sem nome, um empilhado de órgãos num trabalho ritmado.
O mágico questiona, muitas vezes, qual sua função, para que serve sua ação? Se pode receber os agradecimentos do público, que pressente sua magia, mesmo que lhe dê outros nomes (“um anjo”). Afinal, o mágico sabe que a única garantia do encantamento é que o lugar do mágico permaneça, de certa forma, vacante – por isso, seu último ato, o “grand finale” é não mais que um número de desaparecimento, o desaparecimento, sem retorno, de si.
Trata-se de uma nova magia que é, em seu resultado, muito simples e, em seu processo, muito complicado. Ou o contrário. O encantamento principal consiste em fazer aparecer as palavras desaparecidas, através da estabilização dos sentidos do público (uma família, um casal ou um solitário). Os ouvidos voltam a escutar, as bocas articularão tudo o que a língua lhes permitir dizer, a voz retoma seu poder de ecoar, de um a outro, retomando sua materialidade perdida.
Por isso, o mágico usa palavras mágicas, ouvidas no silêncio da credulidade. Seu desejo é apenasque o público reconheça as suas próprias palavras, acolha-as até que elas completem seu ciclo, realizem sua volta e seu retorno, embarquem na viagem do nada a alguma coisa e, desta, ao nada novamente –de volta ao silêncio.
Trata-se de um mágico que não tira coelhos da cartola ou transforma lenços coloridos em pombas brancas. Não está, tampouco, interessado em serrar mulheres assustadiças no meio. A mágica consiste em transformar os sentidos de sua audiência, em possibilitar à natureza a realização de si própria, encaminhando o fenômeno ao seu plano original: retirar os impedimentos, aquilo que evitava que as palavras tivessem o peso que realmente tem. O mágico quer retirar o público de sua surdez e mudez voluntária.
Afinal, o mágico sabe que todos também realizamos os nossos truques, que todas as palavras são encantadas, capazes de feitiços, mas que sua magia, às vezes falha. Há silêncios intocados e intocáveis para as palavras, mesmo as mais poderosas: a mudez absoluta dos mortos, o silêncio perdido que antecede o primeiro grito dos recém-nascidos, a vastidão do espaço antes de ser capturado pelo verbo – Fiat lux! – este mesmo um feitiço.
O mágico retorna quando o encantamento das palavras adormece. Quando as palavras param de realizar seus feitiços – feitiços de transfiguração, de transformação, de multiplicação, de mutação, ilusionismos sem fim. As folhas de papel nunca são apenas folhas de papel, elas se transformam em cartas não escritas, em mensagens enigmáticas e nunca se apresentam como apenas brancura indizível, não mais que celulose em rede. As paredes da casa são sempre cor, prisão, segredo, limite, rebelião, mas, nunca, um amontoado de tijolos e massa e tinta, não mais que pó. O corpo é operador de prazeres, o lar de sofrimentos, da pulsão que cria o tempo, sempre muito mais que carne sem nome, um empilhado de órgãos num trabalho ritmado.
O mágico questiona, muitas vezes, qual sua função, para que serve sua ação? Se pode receber os agradecimentos do público, que pressente sua magia, mesmo que lhe dê outros nomes (“um anjo”). Afinal, o mágico sabe que a única garantia do encantamento é que o lugar do mágico permaneça, de certa forma, vacante – por isso, seu último ato, o “grand finale” é não mais que um número de desaparecimento, o desaparecimento, sem retorno, de si.
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