21.7.07

O acidente da TAM, a mídia e o psicanalista...

Do site "Imprensa Marrom" (http://www.imprensamarrom.com.br/):

"A seguir, seleciono alguns trechos do que saiu na mídia, tudo com meus comentários em seguida:

17/07 - Folha Online, “Pensata”, Eliane Cantanhêde“Quando vai ser o próximo? - A cada nova crise nos aeroportos, a cada novo movimento dos controladores, a cada derrapada de avião, a cada pane no sistema de rádio ou nos radares, uns sempre diziam e outros sempre pensavam: “Quando vai ser o próximo acidente?” (…) As circunstâncias eram todas desfavoráveis: chovia, a pista estava escorregadia, a reforma mal (em duplo sentido) terminou e, afinal das contas, não pode ser pura coincidência que o maior acidente da história acontecer exatamente em Congonhas, no dia seguinte à derrapagem de um pequeno avião da Pantanal.”

Eliane não esperou para escrever; seu texto foi publicado no mesmo dia do acidente (17/07). A morte de tantas pessoas, sem dúvida, mexe com a emoção de todos. Mas não se pode publicar um texto, tratando de questão eminentemente técnica, sem pelo menos um mínimo de apuração.

Na pressa de culpar a pista, Eliane diz que “não pode ser pura coincidência” o fato de ter havido uma derrapagem no mesmo aeroporto, no dia anterior. E como a jornalista explica o fato de que um avião da TAM, exatamente um Airbus, ter pousado com sucesso cinco minutos antes do acidente, na mesmíssima pista (e tantos outros aviões que pousaram sem qualquer problema)? Isso sim é que “não pode ser pura coincidência”.

Continuemos:

19/07 - Folha de São Paulo, “Cotidiano”, Francisco Daudt - psicanalista e colunista da “Revista da Folha”“O Que Ocorreu Não Foi Acidente, Foi Crime - Gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. O assassino não é só aquele que enfia a faca, mas o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime. (…) Sinto pena de não ter estado na abertura do Pan, de não ter engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente não se importe tanto, afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós (…) O governo sairá da inação, da omissão criminosa? Alguém será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Talvez condenem a mim, por ter deixado o coração explodir. Pagarei o preço alegremente”

Se o psicanalista se meteu a ser “expert” em aviação, sinto-me no direito de tentar analisá-lo. Que negócio é esse de ter a “dor amenizada por uma manchete que estampasse (…) GOVERNO ASSASSINA MAI DE 200 PESSOAS”?

O articulista sentiria menos dor? Isso resolveria parte de seu problema? Não sei se é preciso ser freudiano, lacaniano, ou algum “ano”, para notar que o articulista fala menos em fatos e mais em sentimentos.

Quanto ao episódio das vaias, ele sente “pena de não ter estado na abertura do Pan”. E ao chamar o Bolsa-Família de Bolsa-Esmola, claro, deixa claríssima sua posição nas trincheiras partidárias. Não precisaria disso, mas o forte de Daudt não é seu estilo.

Por fim, diz que pagará “alegremente” o eventual preço de ser preso, por conta do que dissera em seu artigo. Viram só? Primeiro, ele teria sua dor amenizada por uma manchete. Depois, sentiu pena por não ter vaiado Lula e diz que pagaria o preço (de uma condenação) com alegria.

Sentimentos, e não fatos. Opiniões pessoais, praticamente íntimas. E não há nada mais íntimo que um sentimento, ora pois! O maior jornal do país, na hora de analisar um triste fato repleto de circunstâncias técnicas, usa como articulista alguém que não emite apenas sua “opinião”, mas sim expõe “sentimentos” e predileções e oposições político/partidárias.

E o psicanalista (que definitivamente não é jurista) se coloca numa situação complicada, ao dizer que não houve acidente, mas sim um “crime”. Imputou um crime, portanto, a alguém.

Mais um trechinho (na verdade, um post “na íntegra”):

19/07 - Veja, blog do Reinaldo Azevedo“Crime Estratégico - Todo o dinheiro gasto pelo governo federal no aeroporto de Congonhas, e não foi pouco, evidencia a falta de planejamento na área. Na ponta do lápis, Congonhas deveria ser paulatinamente desativado. Em vez disso, resolveram incrementá-lo. Investiu-se na suntuosidade do prédio, embora as pistas sejam universalmente reconhecidas como inseguras. Nunca antes nestepaiz…”

Ressaltemos apenas o último trecho: “AS PISTAS SEJAM UNIVERSALMENTE RECONHECIDAS COMO INSEGURAS”. Hm… “Universalmente”? A qual “universo” Reinaldo se refere?

Vejamos o que publicou HOJE, em seu blog, Fernando Rodrigues (Folha de São Paulo):

“Parecer Técnico do IPT Não Encontra Problemas Na Pista Principal de Congonhas - O parecer técnico parcial nº12792-301-ii realizado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) na pista principal do aeroporto de Congonhas não identificou restrições ao uso da mesma. O documento é datado de ontem (19/07/2007). O resultado desse parecer é baseado, entretanto, em dados coletados até o dia 18 de julho de 2007 e também antes do acidente de terça-feira.”

E agora, Reinaldo Azevedo? Os técnicos do IPT, do Governo do Estado de São Paulo, que é gerido pelo PSDB, emitiram parecer segundo o qual não há problemas na pista principal. Repita-se: NÃO HÁ PROBLEMAS.

O blogueiro, à medida que surgia algum novo dado que prejudicava o uso oposicionista do acidente, dizia ter apenas uma única certeza: a pista seria imprópria para o pouso na chuva. Agora vem o IPT, órgão de um governo estadual do PSDB, e diz que a pista não tinha problema algum.

De um lado, Reinaldo Azevedo, sem sair de sua cadeira e formado em letras e jornalismo; de outro, técnicos do IPT, com formação técnica adequada, que visitaram o local e realizaram exames e análises. Quem parece mais qualificado para falar sobre a qualidade da pista?
Pois é… Mas temos o seguinte: de seu lado, Reinaldo fala em um conhecimento “universal”. Já os técnicos do IPT, mediante os procedimentos adequados, emitem um parecer sem esses adjetivos todos. A comparação não é apenas desigual. É desleal.

Depois das notícias sobre o problema com o “airbus”, bem como diante desse parecer do IPT, fica muito frágil a tese (que parecia lógica e claríssima, na emoção do momento) da pista como fator predominante (ou mesmo exclusivo) para o acidente.

Mas uma parcela considerável da mídia, antes de explicar e analisar, preferiu partir para o discurso político/partidário. O psicanalista citado, por exemplo, reuniu no texto uma série de escândalos que não têm relação entre si, falou até das vaias da abertura do Pan, para dizer que afinal de contas houve um “crime”. É um sofisma partidário de péssimo gosto (e detestável qualidade intelectual).

Nada disso diminui a dor das famílias que perderam seus entes queridos, tanto menos trará de volta aqueles que se foram no terrível acidente. A imprensa deveria deixar o populismo de lado nessas horas; e isso também vale para seus articulistas menos preocupados com a isenção.

Depois de um acidente desse tipo, qualquer um sabe muito bem o que o “povo quer ler”. O povo quer um culpado para ser apedrajado, o povo quer gritar em protesto contra alguém. O mais fácil – e leviano – a se fazer é oferecer um suposto algoz para que todos o malhem. Isso vende jornal, isso faz com que o texto seja reproduzido em N e-mails, isso sacia a quase escatológica sanha de uma parcela da população.

O mais difícil e correto, porém, é esperar laudos e demais fatores para começar a emitir algum tipo de juízo de valor minimamente adequado. Fernando Rodrigues deu uma aula de jornalismo para alguns colegas da Folha, e mostrou com muita clareza quão diferente é seu ofício daquele praticado por Reinaldo Azevedo.

E o psicanalista… Bom, esse daí só nos fez entender aquele negócio de que tais profissionais devem permanecer calados, aguardando o desenrolar dos fatos, a fim de colher elementos bastantes para uma análise razoável."

1.7.07

Clientes Especiais

Clientes Especiais
Maria Rita Kehl (especial para a Folha de São Paulo)

Antes de mais nada, como já se notou, existe o viés social.

De um lado existem "jovens" que ocasionalmente cometem atos delinqüentes. É o caso de Júlio, Leonardo e seus colegas, espancadores da Barra [cinco acusados de agredir e roubar uma empregada doméstica na zona oeste do RJ no domingo passado]. Inspiram-nos cuidado semelhante ao que dispensamos aos nossos filhos. Tentamos compreender: o que aconteceu? (Psicólogos são chamados a justificar.)

E existem os outros, os que já são bandidos antes de chegar (quando chegam) diante do juiz.

A execução sumária confirma, a posteriori, o veredito que a imprensa divulga sem questionar: "A polícia matou 18 "suspeitos" em confrontos com supostos "bandidos'"... Ninguém persegue o resultado das investigações sobre as tantas chacinas que caem no esquecimento.

O que distingue uns dos outros é o número do CEP: na Barra, nos Jardins [em SP], no Plano Piloto [em Brasília] vivem os jovens.

Os outros, adultos anônimos desde os 14, vêm de bairros que não figuram no mapa: "Periferia é periferia em qualquer lugar".

Qualquer delegado de bom senso percebe na hora a diferença. Se a cor da pele confirmar o veredito, melhor. A sociedade, representada pelo dr. Ludovico Ramalho, pai de Rubens Arruda, se tranqüiliza: as travessuras dos "jovens", adultos infantilizados das classes A e B, não ameaçam a segurança da gente de bem.

Espancaram uma doméstica, mas pensavam que fosse prostituta. Ah, bom.

Nos bairros onde vivem os jovens não há solidariedade com os chacinados das favelas, com os executados a esmo em Queimados [na noite de 31 de março de 2005, 29 pessoas foram assassinadas em diferentes pontos dos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense], com os meninos abatidos na praça do Jaraguá, em SP [em 6/5, quando sete pessoas foram mortas em praça da zona norte da capital].

Os movimentos "pela paz" nunca se manifestam por eles.

Ninguém de fora
Mas, quanto mais o Brasil maltrata seus pobres, quanto mais a polícia sai impune dos excessos cometidos contra os anônimos cujas famílias não protestam por temor de represálias, quanto mais o país confia na lógica do "nós cá, eles lá", mais o gozo da violência se dissemina entre todas as classes sociais.

Para pacificar o país, seria preciso redesenhar o mapa do respeito e da civilidade de modo a não deixar ninguém de fora.

Uma sociedade que assiste sem se chocar, ou sem se mobilizar, ao extermínio dos pobres -bandidos ou não- está autorizando o uso da violência como modo de resolução de conflitos, à margem da lei.

Tomemos o ato de delinqüência cometido pelos meninos "de família" da Barra, no Rio. Que a culpa seja dos pais, vá lá. As declarações do pai de Rubens Arruda são reveladoras. Não que ele não transmita valores a seu filho.

Mas serão valores relacionados à vida pública? Não terá o dr. Ludovico educado seu filho para "levar vantagem em tudo"? Esse pai não admite que o filho seja punido pelo crime que cometeu.

Há aqueles que não admitem que a escola reprove o jovem que tirou notas baixas, os que ameaçam o síndico do condomínio que mandou baixar o som depois das 22h etc.

Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor: se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres) pela lógica da vida privada, como fizeram as elites portuguesas desde a colonização.

Quem disse que os jovens não lhes obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas, humilham os empregados -igualzinho a seus pais.

Vez por outra, quando os pais precisam impor alguma interdição, já não se sentem capazes.

O que nos coloca a pergunta: que valores, que representações, no imaginário social, sustentam o exercício necessário da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma mãe, hoje, se sentem autorizados a coibir ou mesmo punir seus filhos?

A autoridade não é um atributo individual das figuras paternas. A autoridade dos pais -e da escola, que também anda em apuros (quem viu "Pro Dia Nascer Feliz", de João Jardim?) -deriva de uma lei simbólica que interdita os excessos de gozo.

Uma lei que deve valer para todos. O pai que "tem moral" com seus filhos é aquele que também se submete à mesma lei, traduzida em regras de civilidade, de respeito e da chamada boa educação.

Cliente especial
Mas em nome de que, no imaginário social, a lei simbólica se transmite? Já não falamos em "Deus, pátria e família", significantes desmoralizados em nome dos quais muitos abusos foram cometidos, sobretudo no período de 1964 a 1980.

No lugar deles, no entanto, que outros valores ligados à vida pública foram inventados pela sociedade brasileira? Em nome de que um pai que diz "não pode" responde à inevitável pergunta: "Não posso por quê"?

Ocorre que a palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo (onde todos são chamados, mas poucos os escolhidos) é: você pode. Você merece. Não há limites pra você, cliente especial.

Que o apelo ao narcisismo mais infantil vise a mobilizar apenas a vontade de comprar objetos não impede que narcisismo e infantilidade governem a atitude de cada um diante de seus semelhantes -principalmente quando o tal semelhante faz obstáculo ao imperativo do gozo.

O que queriam os rapazes que espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto? Um celular usado? Um trocado para comprar mais um papel? Descontar a insegurança sexual?

"No limits", diz um anúncio de tênis. Ou de cigarro, tanto faz. E os meninos obedecem. No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites, pode contar com eles.

derevo ainda...

…conventos, manicômios, prisões, a História, Salpetrière, o andar histérico ao lado do sono histérico, corpos humanos antes dos gestos humanos (gente antes de gente existir), homens-rãs, mulheres-rãs, sem sobrancelhas, feiras medievais e freiras, negociações, tocas, cães, virando cães, cadelas, pássaros, virando bicos, virando do avesso, virando ossos, virando panos, panos e águas, outras cores, um guerreiro, um pele vermelha, um apache, um samurai, duas metades, uma e outra metade não formam um outro, um inteiro, pernas que dançam sem corpos, Joana d’Arc, o nascimento de Jesus Cristo, o nascimento de larvas, larvas de gente, sem sobrancelhas, sem pêlos, sem fios de cabelo, sem sexo, só sexo, pênis como punhos fechados, raios vermelho-luminosos-neon-elétricos que saem do ânus, um longo delírio para os sãos, um pesadelo cíclico para os delirantes, um quadro de Bosh, o sol imenso, a lua dentro de um buraco, homens-ponteiro, mulheres-segundo, mãos maquínicas, mãos-rosto, sem rosto, rostos tortos, corpos tortos, sem pêlos, sobrancelhas, tremedeiras, freudianos, rabos, pernas, capuzes, panos...

[Grupo Derevo, espetáculo “Ketzal”, MIT-CCBB, Brasilia, 24 de junho de 2007]